Deixei por resignação que as circunstâncias da vida me encurralassem e se empilhassem à minha volta, como pedras erguendo um poço. E era no fundo desse poço que me encontrava nos últimos tempos. Cansada de lutar, encostei-me à parede rugosa e deixei-me deslizar até ficar sentada a um canto, sobre dois dedos de água fria, ao som do meu próprio eco.
O meu corpo navegava em piloto-automático. Da cama para a cozinha - para dar o pequeno-almoço aos miúdos -, de casa para a escola deles, da escola para o escritório, do escritório para a escola, da escola para o supermercado, do supermercado para casa, da garagem para a cozinha para lavar a roupa e preparar o jantar, da cozinha para a mesa e da mesa para a secretária para fazer contas às facturas, à saúde e à vida. As últimas quatro horas do dia passava-as algures entre o sofá, com a televisão a cantar para ninguém, e a cama, grande demais para uma pessoa só. Uma parte de mim assistia em primeira fila a toda essa rotina que tocava em repeat, a outra consumia as últimas forças de mim para se espremer contra o canto mais sombrio do meu poço imaginário.
Tanto assim que, naquele dia em que o céu cinzento resolveu desfazer-se numa chuvada torrencial e tornar-me o dia mais negro, não reconheci o rosto que, quando parti o salto e me espalhei ao comprido no open space do escritório, me estendeu um sorriso e uma mão amiga para me levantar. Sabia em mim que já o teria visto por lá, ou noutro lado qualquer, mas nunca fiz por saber o seu nome, de onde vinha ou o que fazia. E no entanto ali estava ele, quando tudo o resto se limitava a olhar, com escárnio estampado no rosto.
O meu piloto-automático entrou em curto-circuito. A ternura do seu sorriso sabia ao mesmo a que sabe um cobertor pesado numa noite de inverno, ou quiçá roupas quentes, secas, num dia de chuva. Por uns segundos, quando deixei que me tomasse a mão, as duas metades de mim - a do escritório e a do poço - uniram-se numa sinfonia silenciosa. Senti estremecer as pedras do meu poço e sobre a sua sombra vi cair um feixe de luz.
No momento seguinte, estava de pé e depois sentada, de volta aos meus papéis e dossiers, de volta ao meu piloto-automático, e ele de volta ao gabinete ao fundo do corredor. Procurando uma nesga de controlo sobre o meu corpo, desviei para ele o olhar. Via-o cirandar através da porta, de vidro, falando para o ar e escutando e acenando de seguida, como se conversasse com um amigo que em boa verdade não existia. E ria-se de novo. Tive a certeza de que era a única pessoa naquele open space a assistir àquela loucura.
E então, quando deixou de falar, como se pudesse sentir-me a observá-lo, levantou a cabeça e olhou-me fixamente. Sustive a respiração, invadida, e recolhi-me em mim. Sorriu-me uma última vez, o calor terno atravessando o corredor que nos separava, e então dirigiu-se à janela mais próxima, girou lentamente a maçaneta, trepou e pulou para o vazio.
Retesei-me subitamente, pregada à cadeira. Foi como se me passasse um comboio por cima. Incapaz de me mover, engoli em seco e senti-me a ser de novo arrastada para o fundo do meu poço, o desgosto a apoderar-se de mim e o alento a fugir-me algures entre duas respirações consecutivas. Resignei-me de novo: havia sempre carros e gente a passar na rua, lá em baixo; de ouvido atento, esperei no conforto do meu abismo pelo estrondo do seu corpo pesado sobre um carro, pelo estilhaço de vidros vaporizando-se e pelos gritos de pânico esganiçados que se seguiriam.
Esperei um segundo, depois outro. Depois outro e...
Nada. Apenas o silêncio do escritório e um leve travo a chuva e buzinas lá fora, que me chegava através daquela janela aberta.
Confusa, e ciente de que era a única a aperceber-se de todo aquele cenário caricato, atirei com a cadeira para trás, corri descalça até à janela e debrucei-me sobre o parapeito, a chuva e as luzes e as buzinas a beijarem-me docemente a cara.
Olhei a toda a volta.
Mas não havia sinal d'Ele.
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