Sou refém na minha própria casa.
Refém dele, de uma ira que não sei de onde vem.
Perdemo-nos um do outro com o tempo. Perdemo-nos na rotina. Na obsessão com o trabalho e na gradual desvalorização de todas as outras coisas fundamentais na nossa vida, desenhada para ser vivida a dois. E somos dois, mas somos um e um, duas pessoas em mundos cada vez mais afastados, muito embora sob um só tecto. Duas marionetas dançando ao som do vento em pontas opostas do mesmo palco.
Fui perdendo espaço, fui perdendo brilho. Aos poucos perdi a voz. Mas ele, para quem a minha voz se tornou zumbido de mosca e dores de cabeça, para além de de mim, perdeu-se dele, como se alguém tivesse cortado as cordas da sua marioneta. Transformou-se numa máquina. Deixou de saber olhar-me, deixou de saber tocar-me e deixou de saber falar-me, salvo para me mandar trazer-lhe mais uma cerveja ou não sair de casa sem a sua autorização, sob ameaça - não, sob promessa - de agressão. E eu deixei de o conhecer, sem no entanto conseguir deixar de o amar, de amar a memória dele, e passei a temê-lo, da ponta dos meus pés à ponta dos meus cabelos. Mas em silêncio, sempre em silêncio, incapaz de fugir. A minha sentença é amá-lo tanto.
É hora de jantar e a raiva dele telefonou-me há pouco. Está a caminho de casa e vai usar-me outra vez para descarregar a doença que o corrói por dentro. Apressei-me a esconder-me num armário da cozinha, por debaixo do lava-loiças, para adiar o inevitável. E agora espero.
Oiço a porta de casa escancarar-se e oiço-o gritar o meu nome três vezes. Oiço-lhe os passos pesados, provavelmente bêbados, cambaleando pelo corredor fora. Oiço as portas serem abertas e fechadas com um estrondo à medida que passa. E reconhecendo os cantos à casa sei que já me procurou na sala, no quarto, no quarto de visitas, na casa-de-banho e na despensa. Oiço-o cada vez mais próximo e o meu corpo vai antecipando já a dor das pancadas que se avizinham. O meu coração bate a mil, tão forte que receio que consiga ouvir-me aqui dentro.
A porta da cozinha abre-se com aquilo que me parece ser um pontapé. Abre o primeiro armário e fecha-o com uma brutalidade tal que oiço qualquer coisa a partir-se. Pressinto que há qualquer coisa de errado. Parece-me mais violento do que o costume. Então reconheço o som da faca de cozinha a deslizar para fora do suporte e ele torna a berrar. "ONDE ESTÁS, MINHA CABRA?!"
Engulo em seco. Não sei o que vai acontecer e nunca senti tanto pânico na vida. Estou prestes a vomitar.
Há cinco armários na cozinha onde podia ter-me escondido e ele já rebentou com quatro.
O meu é o próximo.
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