quinta-feira, outubro 26, 2017

Inferno

Fui subitamente arrancado do sono por um primeiro grito, bem perto no negrume da noite. Senti-lhe o pavor na voz estridente. O horror forçando a sua entrada em mim pelos meus ouvidos e estilhaçando-me da cabeça aos pés, osso por osso, e retesando cada músculo do meu corpo. Uma corrente de alta voltagem humana atravessando-me ali, fria, nua e crua.

Para lá dos vidros, o céu clareava. Contrariando a inércia forçada do choque, apressei-me primeiro até à janela e depois até à porta da rua. Por cinco segundos, desejei com todas as minhas forças que tudo não passasse do pior pesadelo da minha vida... Ao sexto segundo, fui socado de frente, na cara, selvagem e quente, pelo incêndio letal que tão perto lavra a terra. A minha terra.

As chamas estão já aqui, baloiçando loucamente a escassos metros, avançando na nossa direcção. Inclinam-se para nós, mais e mais, e crescem e uivam e enrolam-se nas árvores para as estrangular e desfazer em pó. As pessoas correm desenfreadamente em círculos, sem rumo, para os carros, para dentro e para fora das casas, por entre a cortina de fumo.

O sufoco adensa-se a cada segundo.

Sufoco físico, nos pulmões asfixiados que lutam para beber o pouco oxigénio que ainda sobra no ar. No nariz e na garganta que me rasgam e me queimam por dentro a cada inalação; nos olhos que gritam de dor para se manterem abertos, agredidos pelo fumo, poeiras em brasa e fagulhas que se retorcem no ar; nos tímpanos, dos gritos acutilantes que continuamente cortam o silêncio da noite a toda a volta; na pele, soterrada na espessa fuligem negra, do inferno ardente que nos cerca.

Sufoco psicológico, em tudo o resto. O cérebro pára, morre ali afogado no fumo que nos entra por todos os poros. E ao mesmo tempo vive a todo o vapor, despoletando e processando mil informações em simultâneo. O pânico, a adrenalina, o medo, o instinto de fuga, o terror, a urgência de salvar a nossa família e a nossa casa - que construímos a custo de uma vida de suor e lágrimas -, a aflição, o socorro dos vizinhos em apuros, a falta de ar nos pulmões...

Tusso e oiço tossir. À minha volta, bem diante dos meus olhos incrédulos, o fogo desbrava e devora a floresta, engole casas e incinera vidas. Os corpos em brasa deambulam até que caem, rastejam até que morrem, entre murmúrios e gemidos.

Apercebo-me de que tenho a minha mulher pela mão e quero protegê-la, mas estou velho, impotente e sem forças. Apercebemo-nos os dois de que também a nossa casa está já nas presas do fogo, com línguas de chamas irrompendo das janelas e erguendo-se do telhado, estalando violentamente. O fumo forma uma cortina cada vez mais alta, cada vez mais negra, cada vez mais cerrada. O calor derrete-nos por fora e corrói-nos por dentro. O oxigénio escasseia e respirar torna-se doloroso.

Procuramos uma saída a custo. Voltamo-nos para o nosso carro, estacionado como sempre à porta de casa, mas também ele já sucumbiu à destruição, cobiçado pelo fogo. As árvores estão caídas e os trilhos cortados. O círculo fecha-se sobre nós. É tarde demais. Percebemos que estamos encurralados e que vamos morrer aqui.

quarta-feira, outubro 18, 2017

Out of the Body

Hoje venho falar-te de ti.

Dei conta de que passo os meus dias a falar-te de mim nas linhas que escrevo. Da minha infância, da minha avó, das minhas viagens, do meu tempo na guerra, dos meus amores e dos meus desamores, das minhas alegrias e das minhas dores, do meu casamento, da minha família, da minha casa, da minha velhice e até da minha morte. Do teu canto, do teu silêncio, lês-me atentamente até adormeceres; ouves-me palavra por palavra, como se te embalasse a voz muda na tinta das minhas letras. E, no entanto, sobre ti nem uma palavra.

Pois hoje o meu tempo é teu, na esperança de que os teus últimos cinco minutos deste dia, na tua assídua leitura nocturna, já na cama, sejam de ti para ti.

Se escrevo com frequência, na solidão do meu conforto, saberás que falo bastante menos, preferindo usar o meu tempo lá fora ouvindo e observando. Não estou distraído, nem alheado da realidade; estou, sim, atento ao mais ínfimo zumbido e ao mais milimétrico detalhe do que me rodeia. E é muito isso que faço quando estás por perto.

E apercebi-me, nesse jogo que jogo sozinho, de que, por debaixo dessa máscara em que te escondes diariamente, és um diamante em bruto. Envolto apenas num lençol de poeira que vestes sem saber. E eu gostava que soubesses.

A parte mais difícil de escrever é começar. E é começar porque diante de ti tens uma página em branco, olhando-te ameaçadoramente nos olhos, em tom de desafio. Desalenta-te. O talento está todo lá, esvoaçando livremente pela tua cabeça, deslizando depois até ao peito, rodopiando no coração e ziguezagueando até à ponta dos teus dedos. Mas a folha continua branca. Faltam-te as ideias, faltam-te as directrizes, falta-te o método, falta-te a forma. Falta-te quem te oriente, quem te diga o que fazer e, mais importante que isso, quem te diga como fazê-lo. Falta-te encontrar a inspiração, porque é a inspiração que te faz saber o quê e o como.

Para mim, do que observei, é assim que és. Bem, não como tu és, mas como tu estás. É assim que acabas vivendo os teus dias, dia após dia. Como o escritor de frente para a folha em branco. Em que tu és o escritor, com todo o talento aprisionado, e a folha em branco é a tua vida, um livro aberto à espera de que o escrevas. A inspiração... bom, essa não a encontras porque a vida acontece. E quando a vida acontece, dizendo-te o que tens de fazer, como tens de fazer e como tens de ser, tu desligas a voz do teu coração, a força indomável dos teus sonhos, e confinas-te ao que o mundo espera que sejas, porque o mundo não está preparado para a tua grandeza.

Sabes aquela expressão da moda, do "out of the box"? Eu gostava muito que fosses não out of the box, mas out of the body. Sai do teu corpo e sai, sobretudo, do corpo do mundo, que o corpo do mundo tem uma mente tóxica. Sai e olha de frente para ti. Para a tua própria folha em branco. Olhos nos olhos, olhos na alma. Desculpa-me a foleirada, prometi-me a mim próprio deixar de ser foleiro há anos, mas tu és linda da cabeça aos pés. Cada centímetro teu. Cada centímetro cúbico teu, desculpa-me, que antes de escritor sou engenheiro. És linda. És, por muito que não o vejas, por muito que o teu espelho o distorça e por muito que o mundo alegue e te convença que não. És!

Mas ficaria muito aquém da análise de ti se me quisesse e me deixasse ficar pelo teu exterior. O teu exterior é pouco mais que o rascunho primeiro da tua história, pouco mais do que a sombra da tua luz. O que achei realmente enternecedor foi descobrir a tua verdadeira faceta, o teu verdadeiro Eu, quando o teu verdadeiro Eu é tão diferente daquele que levas e mostras ao mundo quando sais do teu esconderijo e passas por aquela porta. Bates a porta atrás de ti e toda tu acusas confiança, segurança e dureza. É quase possível ouvir-te a amargura na voz e cheirar-te, à distância, o desprezo na pele. Ler-te um vazio nos olhos que só me ordena que me afaste.

O engraçado é quando percebes que essa é a percepção mais antagónica de ti que se pode ter, quando tudo em ti é exactamente o extremo oposto. Não que não sejas confiante, não que não sejas segura, não que não sejas forte. És. Mas és ao mesmo tempo suave, doce; és frágil, és medrosa e és, surpreendentemente, muito sentimental. Confronta-se a máscara e aos poucos rompem-se as barreiras que ergues em teu redor. E entra-se num lugar só teu onde emanas amor no lugar de ódio. Onde atrais, quando tudo o que procuras é repelir. Onde tens sonhos e ambições maiores do que eu sei medir, quando tu decidiste ceder e acreditar que és só mais um peixe no aquário. E um daqueles de uma barbatana só, que nem direito nada.

A mensagem que te quero deixar é a de que tu vales toda a pena. A viagem ao centro de ti tem entusiasmado os meus dias e eu adorava dar-te em mão um bilhete para que a fizesses comigo. Para que soubesses dar o passo para out of the body e olhar para ti mesma com olhos de sentir. Para que soubesses largar a tua máscara e atirá-la para longe, bem para lá de nunca mais, e abraçasses contra o peito e contra o mundo o valor inestimável que tens.

Todavia, essa é uma viagem que deves fazer pelo teu próprio pé, com a tua própria vontade. Assim, despedindo-me, deixo-te o bilhete sobre a cabeceira para que o pegues pela manhã.

quarta-feira, outubro 04, 2017

Ausência

Cheguei a casa estoirada do trabalho e segui a minha habitual rotina de inverno. Lareira acesa, banho quente demorado enquanto o meu cubículo aquecia, pijama confortável, luzes apagadas e música de fundo - Torn, na voz de Natalie Imbruglia.

E quando me tentava abstrair da montanha-russa do dia, lá me apareceste tu mais uma vez, pavoneando-te nos meus pensamentos. Não escolho pensar em ti, não escolhia se pudesse, mas a verdade é que não posso, nem consigo. Já tentei de tudo. Lareira apagada, luz acesa, Netflix, televisão com um qualquer filme do Die Hard com tiros a cada segundo, filmes de terror, filmes de princesas, música para dormir, música pesada, sudoku, ler um livro. Mas o meu último pensamento és sempre tu.

Onde andarás? Estarás feliz? Estarás com alguém? Estarás sozinho? Terás quem te aqueça o corpo e o coração no meu lugar? Pensarás em mim? Pensarás muito de vez em quando ou muitas vezes? Lembra-te-ás dos nossos momentos a dois? Tê-los-ás apagado da tua memória? Terás contigo o relógio que te ofereci? A fotografia do nosso último passeio que te ofereci no último natal?

Bem sei que, se pudesses escutar os meus pensamentos, me acharias louca. Se calhar estou. Fui eu, afinal de contas, quem te despediu de mim sem que sequer tu te pudesses despedir devidamente. E hoje já nem sei por que o fiz. Nem sei se me interessa. Não sei se algum dia interessou. Não sei em que pensei na altura. Não sei o que penso hoje. Mas sem pensar queria-te aqui. Neste sofá que já foi também teu. Para me aqueceres os pés gelados enquanto a lareira não faz o trabalho que lhe é devido. Para depois te mandar para o chão quando estivesse com calor. Para te ouvir resmungar enquanto acedias ao meu pedido, sem nunca antes falhares o beijo na minha testa, com uma ternura do tamanho do mundo. Para me tapares quando adormecesse no sofá, após a lareira apagada. Para me pegares ao colo e me levares até à cama, ainda que seja a dez passos do sofá. Para acordar para um sorriso e não para um espelho mal humorado. Para chegar ao final do dia e ter os teus ouvidos prontos para me ouvir reclamar do meu dia e os teus braços prontos para num abraço apertado espantar de mim os males.

Depois, a vozinha irritante da minha consciência, a minha vozinha que eu não sei como suportavas, atira-me lá do fundo que fui eu que te amachuquei e joguei fora, qual embrulho de natal, sem mais nem porquê. Egoísmo, diz-me. Sinto-me chorar. Achar-me-ás egoísta? Guardar-me-ás rancor no lugar de amor? Desprezo no lugar de saudade? Choro mais. Talvez esteja mesmo louca. Que guardas de mim? Quando nos cruzamos na rua e nos fingimos meros amigos, quando me lanças o olhar doce de sempre, que sentimento esconde ele? Que pensas de mim? Que pensas de nós? Teríamos dado certo? Estaríamos agora a falar a dois de casamento, de filhos, de futuro? Em vez de em monólogo sobre o passado?

Os pensamentos disparam, uns atrás dos outros, ao som da música. Estou cansada de pensar, cansada de mim. Perco-me na falta de sentido. Mas é irónico, não é? Acabei contigo - no sentido literal, destrutivo, da palavra - sem querer saber o que pensavas e hoje não saber o que pensas - de mim, de nós - acaba comigo.