Eu podia ter muitos defeitos, mas se havia coisa que eu era, quando não me dava para ser procrastinadora, era determinada. Quando era para ser, era para ser! E então lá enchi os pulmões de coragem, saltei da cama e enfrentei o mundo para lá da porta. Nem me dei tempo para me vestir apropriadamente para a ocasião.
É claro que o alvo invisível que tenho desenhado na testa fez efeito de imediato e de súbito tinha vinte pares de olhos, incluindo os da florista da esquina, a sondar cada quilo e centímetro a mais do meu corpo e cada poro da minha pele que há anos não via o sol. Escondi o embaraço por entre os meus cabelos oleosos e hesitei por meio segundo. Mas era a última vez que veria cada uma daquelas caras, cada um daqueles esgares afectados e enojados, portanto eles que olhassem. Pavoneei-me até um pouco, para sentir o sabor, para quebrar por segundos os hábitos já velhos.
A escolha do local ainda me proporcionou alguns debates acesos. Aparentemente temos todos uma ideia muito diferente do que é o sítio ou a forma ideal. Para uns é através de comprimidos, para outros a linha de comboio, para outros a forca caseira... Para mim era claro, não havia grande discussão. Era atirar-me de um ponto alto para o vazio, de coração aberto e olhos fechados, e esperar com todas as forças que Deus me apanhasse a meio caminho, ou depois dele, e me resolvesse todos os meus problemas.
Dentro da opção, pessoalmente, sempre achei a ideia da ponte absurda. Romântica e poética de mais, como se na água doesse menos. Dizem que antes do embate batemos a bota por asfixia, mas, amigos, àquela altura, água é cimento. Betão armado, de braços abertos à nossa espera. No entanto... cimento por cimento, foi precisamente pela ponte que optei. Pensei para mim que talvez me soubesse bem, intimamente bem, ter por cenário o pôr-do-sol sobre o rio Tejo, que é uma coisa que sempre quis ver e, obviamente, nunca vi. Além disso, da ponte é muito mais prático: não se empata o trânsito nas horas seguintes.
Avancei tranquilamente por Lisboa, na mota da minha irmã, despedindo-me em silêncio daquelas ruas que mal conhecia, e encostei calmamente a meio do tabuleiro da 25 de Abril, encenando uma paragem para manutenção de emergência.
O trânsito do fim de tarde prosseguiu normalmente atrás de mim e isso sossegou-me. Tinha aquele momento para mim. Então, inspirei fundo como nunca antes tinha inspirado. Ali, de cintura pressionada contra o corrimão da ponte, não havia medo. Não havia sufoco. Não havia ódio, nem nojo. Não havia obsessão. Não havia quilos a mais. Não havia a vontade de devorar tudo, nem a culpa de ter devorado. Não havia cortes nem cicatrizes na pele. Não havia o sabor a bílis e a sangue na boca. Não havia amígdalas inchadas. Não havia queda de cabelo nem tão-pouco queda de amor próprio. Havia, sim (para lá do trânsito e do odor nauseabundo da gasolina), o bater das ondas nas docas lá em baixo, o cheiro húmido da maresia no ar, as gaivotas cacarejando ao longe e o insubstituível pôr-do-sol lisboeta, com o sol espelhado em mil reflexos na água e o céu do mais bonito laranja que pode haver. Acho que esbocei um sorriso e, por uma vez, me senti viva e livre dentro deste corpo morto que teima em aprisionar-me. Hoje venço eu.
O relógio no meu pulso apita. São 20h30, é hora de ir. Às 21h darei à costa, já livre se Deus quiser, e os meus pais e a minha maninha terão a despedida que eu não fui capaz de lhes dar. Avisei-os só de que hoje não jantava.
Debruço-me para a frente e começo a escorregar pelo corrimão, de frente para o pôr-do-sol. Fecho os olhos. Respiro fundo e com toda a calma do mundo dou o impulso final. De olhos fechados, já solta, sinto-me em queda livre atrás do peso da minha cabeça... É agora. Finalmente.
Só espero que não doa.