Recordo-me do vulto súbito no meio da estrada, da guinada no volante e do chiar agressivo dos pneus... Num segundo fazíamos um agradável passeio nocturno, no outro despistávamo-nos para fora da estrada, contra o tronco de uma árvore. Um ribombar nos meus ouvidos e em todos os ossos do meu corpo. E depois silêncio.
Aos poucos recuperei a lucidez. Mexi os dedos dos pés à cautela. As dores em todo o corpo - e em especial no pescoço, no sufoco de um colar cervical - acordavam-me numa tortura lenta, ao som de um apito compassado, agudo e robótico. Tentei abrir os olhos logo que retomei o controlo de mim, mas o ardor era tal que desisti da ideia em menos de meio segundo.
Demorei a perceber que estava num hospital. Depois estranhei o colar, as ligaduras, os fios em que estava envolto, o catéter enfiado no meu braço e por fim as próprias dores. Juntei as peças e então recordei o veado na estrada e o nosso acidente... E então pensei nela.
Foi nesse preciso instante que o meu ouvido registou a primeira coisa para além dos bips que me martelavam a cabeça, de um médico para outro: "as lesões na medula são irreversíveis". Não, não, não!, esperem lá... "Confirmaram os resultados?", continuaram eles. Sentia partidos todos os ossos das minhas mãos, dentro das talas metálicas, mas cerrei os maxilares e os olhos com toda a força e cruzei mentalmente os dedos para nos desejar sorte. Talvez estivessem enganados. "Confirmámos, Doutor. Ela não tornará a andar." Ouvi bem. Sim, ouvi bem... Ela, a minha Ela, não voltará a andar.
Recuei no tempo sem mais nem ontem, sentindo já uma lágrima, dez lágrimas, a deslizar-me pela cara. Conheci-a aos 24, aquela doçura de miúda. Iniciámos o namoro aos 25, de borboletas na barriga, casámos aos 27, ela absolutamente magnífica, e aos 28, enquanto falávamos de ter um primeiro filho, tivemos um acidente de carro.
O tempo pára à tua volta e a tua bússola genética perde o norte e gira mil vezes sobre ti mesmo, para no fim te dizer que não sabe que caminho deves seguir. O teu mundo desaba pedra sobre pedra ao teu lado e tu nem consegues ouvi-lo ruir. Mas tens, queira Deus que te salvou desta, pelo menos quarenta anos pela frente e a tua mulher nunca mais voltará a andar.
Consegui abrir os olhos finalmente, para na cama ao lado encontrar os dela, já em lágrimas, postos em mim. Li-lhe neles quase um pedido de desculpas, como se houvesse nela qualquer tipo de culpa ou ressentimento. Como se não tivesse sido eu a virar o volante e a atirar-nos para estas camas de hospital e ela para uma cadeira de rodas para o resto da vida dela.
Lembro o nosso casamento como se tivesse sido não ontem, mas hoje de manhã. Lembro as alianças que trocámos, a aliança que lhe pus no dedo no dia mais feliz da minha vida. Lembro os votos dela, lembro os meus votos. E lembro que, ao enlaçar nela o meu amor, me comprometi com ela na saúde e na doença, até que a morte nos separe.
Então estendi-lhe a mão, apertei a dela nas minhas talas e abafando um grunhido de dor abanei a cabeça. Daqui não saio. Daqui não saio e carregar-te-ei para onde quiseres ir, até que as minhas peles se me engelhem na cara e no corpo e me faltem as forças. Dar-te-ei banho, pequeno-almoço, almoço e jantar, dentro e fora, e todo o amor em excesso que tenho para te dar, até que também eu, já de velho, deixe de poder andar.
E aí teremos todo o tempo do mundo.
sábado, outubro 29, 2016
domingo, outubro 09, 2016
Carta de Amor
Gostava genuinamente de ter nascido há cinquenta anos atrás.
O amor dos tempos modernos é uma cozedura rápida em lume brando. Serve-se em copo meio cheio, que é como quem diz meio vazio, e é posto de parte e substituído à primeira comichão. Mas tu e eu sabemos que o amor não é para ser vivido nem rápida, nem brandamente. E é para fazer comichão, que amor que é amor é intenso!
Gostava de ter nascido há cinquenta anos atrás só para te escrever uma carta de amor. Só pela aventura de investigar desenfreadamente a tua morada, pelo desafio de escolher as palavras certas, à tua medida, e pelo sabor de a deixar finalmente no correio. Pela ânsia da espera e pela imaginação do teu sorriso quando a lesses. Sim, isso valer-me-ia todo o trabalho, todo o tempo.
Mas hoje... Hoje não há tempo. Não há tempo para dedicar à nossa dita cara-metade, que hoje é uma e amanhã é outra; que as marés e os ventos vêm e voltam, sopram e levam umas coisas e trazem outras. Hoje é, com sorte, uma fotografia no Facebook, pirosa, foleira, enquanto se vê a bola com os amigos ou enquanto se vai às compras com as amigas; uma enxurrada de palavras melosas retiradas do Google e coladas a cuspo açucarado na publicação, ou numa mensagem pelo WhatsApp, com um relatório de entrega e por fim um Snap da cara-metade do momento a agradecer.
Perdeu-se a alma, perdeu-se a magia, e eu por mim, que sou pelo amor, não consigo sequer pensar em não te dedicar uma parte do meu dia. Todas as partes do meu dia, até, porque eu inteiro sem ti sou vazio. Podia passar horas a escrever-te, horas a escrever sobre ti, porque não passo sem esse sorriso que me ilumina e me incendeia e não vivo sem esse espírito indomável que te habita.
Por isso, sim. Gostava genuinamente de ter nascido há cinquenta anos atrás. Escrevia-te à mão uma carta de amor onde quer que parasses neste mundo, nem que tivesse eu próprio de o atravessar de uma ponta à outra.
Um beijo na testa
O amor dos tempos modernos é uma cozedura rápida em lume brando. Serve-se em copo meio cheio, que é como quem diz meio vazio, e é posto de parte e substituído à primeira comichão. Mas tu e eu sabemos que o amor não é para ser vivido nem rápida, nem brandamente. E é para fazer comichão, que amor que é amor é intenso!
Gostava de ter nascido há cinquenta anos atrás só para te escrever uma carta de amor. Só pela aventura de investigar desenfreadamente a tua morada, pelo desafio de escolher as palavras certas, à tua medida, e pelo sabor de a deixar finalmente no correio. Pela ânsia da espera e pela imaginação do teu sorriso quando a lesses. Sim, isso valer-me-ia todo o trabalho, todo o tempo.
Mas hoje... Hoje não há tempo. Não há tempo para dedicar à nossa dita cara-metade, que hoje é uma e amanhã é outra; que as marés e os ventos vêm e voltam, sopram e levam umas coisas e trazem outras. Hoje é, com sorte, uma fotografia no Facebook, pirosa, foleira, enquanto se vê a bola com os amigos ou enquanto se vai às compras com as amigas; uma enxurrada de palavras melosas retiradas do Google e coladas a cuspo açucarado na publicação, ou numa mensagem pelo WhatsApp, com um relatório de entrega e por fim um Snap da cara-metade do momento a agradecer.
Perdeu-se a alma, perdeu-se a magia, e eu por mim, que sou pelo amor, não consigo sequer pensar em não te dedicar uma parte do meu dia. Todas as partes do meu dia, até, porque eu inteiro sem ti sou vazio. Podia passar horas a escrever-te, horas a escrever sobre ti, porque não passo sem esse sorriso que me ilumina e me incendeia e não vivo sem esse espírito indomável que te habita.
Por isso, sim. Gostava genuinamente de ter nascido há cinquenta anos atrás. Escrevia-te à mão uma carta de amor onde quer que parasses neste mundo, nem que tivesse eu próprio de o atravessar de uma ponta à outra.
Um beijo na testa
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