Para mim nunca deixou de chover.
As nossas vidas entrelaçaram-se pela primeira vez debaixo de chuva, quando dobrámos aquela esquina em sentidos contrários. Chocámos de frente, tu deslumbrante e eu desajeitado. O meu mundo tremeu (assim como os meus joelhos) e eu senti-te arder no meu peito, num coração há muito adormecido, cinzento como aquele dia.
Embaraçado, pedi-te desculpa, atrevi-me a custo a pedir-te o nome e fotografei para mim, com todos os detalhes que consegui, o teu sorriso e o modo como o sorrias. Decorei-te em segredo os cabelos colados à cara e as roupas ajustadas ao corpo; deixei-me assaltar e invadir pelo perfume que trazias. E guardei em mim a chuva que caía a toda a volta, num burburinho copioso, banda sonora daquele primeiro dia.
Devolveste-me o pedido de desculpas entre gargalhadas refreadas, tímidas, e a tua voz, doce aveludada, percorreu-me como electricidade. Palmilhou os meus sentidos; retesou-me os músculos e arrepiou-me a pele. Ecoaste em cada centímetro cúbico meu e viraste melodia. Viraste, nessa mesma noite, sonho. E, de novo, a chuva a toda a volta.
Na manhã seguinte, ainda a chuva lá fora contra os estores, acordei com a certeza de que não queria nada mais no mundo senão ver-te de novo, só mais uma vez. Imaginava, já sem querer, o teu perfume no ar, pairando-me sobre a cabeça, e questionei-me a que saberia ter-te ali ao acordar. Só uma vez, primeiro. E talvez todas as manhãs, depois.
Arrastei-me até ao duche deixando-me levar pela ideia.
Mais tarde nessa semana, sem mais notícias ou sinais teus, saí do trabalho para a chuva e deixei-me ficar ali, só, sem guarda-chuva nem jeito. Perdia a esperança de reencontro e, de alguma forma, a chuva eras tu e deixar-me ali era viver-te de novo, fugaz, fria e húmida e ao mesmo tempo quente, em cores mil. Sentia-te a voz vibrando de novo em mim e era música; era valsa e tango, sapateado e piano e lareira em dia de inverno.
E então ouvi a tua gargalhada ténue, ali bem perto, envolvida pela chuva. O meu coração galopou como cavalo selvagem.
Abri os olhos sem demoras e vasculhei o ar em redor em busca do teu riso. E lá estavas tu, com a mesma graciosidade de antes; o mesmo sorriso rasgado, o mesmo calor, a mesma luz. Cruzámos olhares, desta vez à distância, e sorriste-me um sorriso terno, os olhos sorrindo e brilhando de igual modo. Acenaste-me com a alegria de quem mata saudade e, de súbito, senti-me parar no tempo.
Eu e o meu mundo tornámos a tremer. De algum modo, soube, ali mesmo, que estava destinado a ser. E não estava disposto a arriscar perder-te de novo.
Sem pensar duas vezes, despi-me da minha timidez, atravessei a chuva que nos separava a correr e convidei-te a entrar no café da esquina para um chocolate quente a dois, para nos aquecermos. Por dentro e por fora.
Para mim nunca deixou de chover. E hoje, chovendo de novo lá fora, dormes profundamente a meu lado e eu já sei a que sabe acordar todos os dias a teu lado. Sabe também a chocolate quente, mas sabe, sobretudo, a ser feliz.