Não pensava em ti até nos cruzarmos no metro.
No rescaldo do nosso encontro, atabalhoado entre os guarda-chuvas e casacos a que aquele dia de inverno indeciso obrigava, o primeiro pensamento que me invadiu foi o de que tinha saudades tuas.
Decidi deixar assentar a poeira do meu alvoroço interior. A Vida e a idade, as pegadas dos passos que fui dando, ensinaram-me que, em matérias do coração, é preciso saber parar. É preciso parar para respirar fundo, deixar o ar puro revolver-se em nós e senti-lo em cada extensão de nós. É preciso respirar fundo e pôr a cabeça em ordem. Respirar fundo, sentir a paz em nós e pôr em ordem também o coração, para depois poder escutá-lo.
Escutei-o.
Disseram-me um dia que é preciso destruir o velho para construir o novo, para construir de novo, para construir melhor. Que é preciso morrer para poder nascer de novo. Que, na Vida, é preciso morrer várias mortes; que temos, a cada uma dessas mortes, de perder uma parte de nós, do nosso actual Eu, para dar espaço à construção de uma nova parte de nós, uma versão renovada de nós mesmos.
A primeira destas mortes será a morte de irromper para o mundo, a morte de abandonar o conforto quente e seguro do ventre; de um jeito muito irónico, próprio do curso natural das coisas neste plano terreno, a primeira morte é o próprio milagre da Vida.
A esta primeira morte, muitas outras se seguem. Umas são mais evidentes, tais como a perda dos nossos avós ou de alguém igualmente próximo, um pai ou um irmão, porque é uma parte de nós que desaparece para todo o sempre do mapa, obrigando ao crescimento de uma cicatriz no lugar do vazio. Existirão, contudo, outras mais subtis. E fez-me sentido que outras mortes, dentro dessas mais subtis, possam ter lugar quando se perde um amor, porque, de algum modo, é também uma parte de nós que vai e não volta. Um vazio que se rasga, cresce e fica, aguardando ser preenchido.
Então entendi que aquilo que senti em mim não eram saudades tuas. Eram antes, no lugar disso, no teu lugar, saudades de estar apaixonado por ti. Pela ideia que eu tinha de ti. Pela ideia que eu tinha de nós dois e da minha idealização egoísta de planos a dois, contigo.
As saudades que eu tinha eram, nesse estado, saudades do calor reconfortante da tua presença. Eram saudades do nervosinho frio no estômago quando sentia o teu perfume ao meu lado no cinema. Eram saudades da ânsia de ouvir a tua voz do outro lado da linha e da calma que ela me trazia à alma. Saudades da electricidade que me percorria o corpo, da cabeça aos pés, sempre que te segurava a mão, também ela fria. Eram as saudades da expectativa irrequieta enquanto te esperava à porta de tua casa, com os quatro piscas ligados, mal estacionado na passadeira. Eram saudades de te ver chegar ao carro, com aquele vestido deslumbrante e o sorriso que desarmava a máscara dura que usava sempre que não estava contigo. Eram saudades de não ter a linha do telefone entre a tua voz e o meu ouvido, entre a tua voz e o meu coração. Eram saudades de, por umas horas, baixar a guarda para o mundo, de pôr de lado o escudo e de me deixar apenas Ser. Eram saudades de ser frágil e vulnerável. Saudades de me sentir visível e compreendido, num mundo que já não sabe ver nem compreender. Eram saudades de me sentir válido, de me sentir seguro e de me sentir amado num abraço apertado teu. Eram, talvez, saudades de ter saudades.
Mas eram, sobretudo, saudades de não saber, de não me lembrar, que tu nunca me amaste.