Ela tinha uma tara por relógios.
Na noite em que a conheci, entrava à pressa pelo pub para fugir à tempestade que fustigava as ruas lá fora. Abrigava-se desajeitadamente debaixo de uma capa, ensopada dos pés à cabeça, de cabelos molhados colados ao rosto. Naquela noite o pub enchera; o espaço era acolhedor, quente e seco, e a música celta de fundo quase fazia esquecer o alvoroço da chuva e da trovoada.
Sentou-se ao balcão, no lugar vazio ao lado do meu, e pediu um chá quente. Depois, enquanto esperava, fixou-se no relógio que trazia no pulso, também ele encharcado pelo dilúvio. Apressou-se a enxugá-lo e demorou o olhar no mostrador, como que confirmando que os ponteiros não tinham atrasado um segundo que fosse. Mas não fiz caso; o perfume dela estava já demasiado entranhado em mim, sussurrando-me perigosamente.
Um chá e uns shots mais tarde, entrávamos pelo apartamento dela enrolados, selvagens, e no caminho até à bancada da cozinha atirávamos para o lado as botas, os sapatos e as roupas que nos separavam do sexo. Tudo saiu fora, excepto o relógio dela. Mas ela era fogo e eu não quis saber.
Depois do sexo, já na cama, ela acendeu um cigarro e dirigiu-se lentamente à janela, nua e de relógio no pulso. A chuva tinha parado. O luar entrava pela janela e descia-lhe pelos seios firmes, pela barriga e depois pelas coxas, num sensual jogo de luz e sombra. Do alto daquele décimo andar, observou o horizonte nocturno, olhou para o relógio e então respirou fundo, com uma satisfação que não compreendi. Depois, com um sorriso renovado nos lábios, serpenteou até à cama para uma nova dose.
Durante o dia não nos víamos, nem nos falávamos; não sabia o que fazia da vida ou tão-pouco o seu nome. Sabia apenas que tínhamos encontro tacitamente marcado no pub e assim as noites com ela repetiram-se dia após dia. E de todas as vezes, repetia-se o ritual. Quando conseguia tirar-lhe o relógio juntamente com a roupa, o relógio era a primeira coisa que ela colocava quando terminávamos. Depois o cigarro nos lábios, o caminho até à janela, a verificação milimétrica da hora no relógio e o sorriso vitorioso no fim.
As coisas começaram a ficar esquisitas quando no telejornal surgiu a notícia de uma brutal vítima de homicídio, numa vila tão pacata quanto aquela. E depois outra e outra e outra. Todos os dias uma vítima nova e todos os dias uma autópsia de tortura e uma combinação de golpes graves, minuciosos, metódicos, estrategicamente desferidos para deixar a presa esvair-se em sangue, com o tempo contado.
Todas as noites uma mulher estranha, todas as noites a obsessão com o relógio, todas as noites um ritual cronometrado, todas as noites um sorriso indecifrável, todas as manhãs uma morte misteriosa. Era-me inevitável procurar uma ponte entre os eventos, impossível dissociar os acontecimentos... Mas uma vez mais deixei-me seduzir.
Nessa noite, após o sexo, ela acendeu o cigarro e deslocou-se para a janela. Todavia, desta vez não fitou o horizonte. Em vez disso, voltou-se, olhou cinco segundos para o seu relógio e depois fixamente para mim.
Então percebi que era a minha hora.