Sonhei contigo.
Sonhei contigo e acordei com um vazio estúpido de ti. Com uma comichão que não tem como coçar... Parece-me que no canto do teu sossêgo e do teu silêncio consegues ser mais sombra minha do que eu próprio, perseguindo-me pé ante pé sem que o saibas. Os fragmentos de ti em mim são resquícios de uma pólvora meia apagada; fuligem e estilhaços de uma mina armadilhada que um dia pisei sem querer.
Não dou pelo tempo, mas sei que passou e vai passando depressa. Oiço o burburinho dos ponteiros do relógio sussurrando na sala de estar e volta e meia apercebo-me ao longe de doze badaladas roucas. O tempo voa tremido e fugaz como os aviões de papel que punha em órbita em criança e é o veleiro que, ao sabor da maré e embalado em brisas, me afasta de ti e me guia a novos portos e horizontes.
Concluí com sucesso o curso de piloto-aviador. Saí de casa. Casei com a mulher que é a metade de mim e que me é por inteiro. Tenho dois filhos, um rapaz e uma rapariga como sempre quis, ele forte e reguila e ela a princesa dos meus olhos. Brincam neste momento no jardim do outro lado do vidro, enquanto escrevo, na casa que sempre quis ter. Uma vivenda em madeira com um quintal relvado, num bairro tranquilo e com boa vizinhança, com a mesma avózinha passeando-se todos os dias de leggings e fita na cabeça, toda desportiva e sorridente, em modo de jogging. Tenho um pastor alemão cachorrinho, pouco maior que o meu antebraço.
Tenho tudo.
E tenho um vazio de ti.
terça-feira, junho 28, 2016
terça-feira, junho 14, 2016
Castelos de Sonhos
Se em matéria de matéria somos essencialmente água, em matéria de alma somos essencialmente sonhos.
Era isto que a minha avó tentava explicar-me. Tu és o teu castelo de sonhos. O género de castelo é lá contigo; tu decides se empilhas sonho sobre sonho, como blocos de pedra, e constróis um castelo no cume de uma montanha, ou se os dispões antes lado a lado, ao comprido, e constróis uma muralha tão infinita quanto infinitamente saibas sonhar.
O que é certo, dizia-me ela, é que não basta ser-se sonhos. Para se ser sonhos é apenas preciso atirar com carvão e lenha para dentro do forno da imaginação e soprar as brasas. O que é preciso é vivê-los. É correr loucamente atrás deles como leões atrás de gazelas, de garras para fora.
Quando te olhas ao espelho, despe-te de roupas, de penteados e de caras. Quantos sonhos vês? Quando sobes para a balança, cega os teus olhos para números e medidas. Quantos sonhos vês? Quando olhas pela janela, para o mundo lá em baixo e à tua volta, solta-te das tuas próprias correntes, dos teus medos e das tuas dúvidas. Quantos sonhos vês?
Não importa se é aquela ida ao ginásio na porta ao lado mas que parece tão distante, aquele café com o amigo quase esquecido, aquele telefonema que andas há séculos para fazer, aquele perdão que andas a adiar, aquela viagem até ao outro lado do globo, aquele curso superior que querias e não o que alguém queria para ti, aquele emprego que é a tua cara, a conclusão daquele projecto pessoal pendente, a publicação daquele livro ou uma completa viragem de 180º. Nunca é tarde de mais.
Recorda que os teus sonhos são o teu castelo e que não é esperado que alguém o construa por ti. Relembra que todas as jornadas, por longas que sejam, começam com a coragem de um primeiro passo. E antes que a palavra "fracasso" se forme na tua mente, como justificação cansada para desistires de ti, lembra-te que em criança não começaste a andar sem antes tropeçar e sem antes cair. Uma, duas e três vezes.
Como me disse um amigo, todos os puzzles começam com as peças dispersas, baralhadas. O que é preciso é saber juntá-las, uma a uma. Sonho a sonho.
Era isto que a minha avó tentava explicar-me. Tu és o teu castelo de sonhos. O género de castelo é lá contigo; tu decides se empilhas sonho sobre sonho, como blocos de pedra, e constróis um castelo no cume de uma montanha, ou se os dispões antes lado a lado, ao comprido, e constróis uma muralha tão infinita quanto infinitamente saibas sonhar.
O que é certo, dizia-me ela, é que não basta ser-se sonhos. Para se ser sonhos é apenas preciso atirar com carvão e lenha para dentro do forno da imaginação e soprar as brasas. O que é preciso é vivê-los. É correr loucamente atrás deles como leões atrás de gazelas, de garras para fora.
Quando te olhas ao espelho, despe-te de roupas, de penteados e de caras. Quantos sonhos vês? Quando sobes para a balança, cega os teus olhos para números e medidas. Quantos sonhos vês? Quando olhas pela janela, para o mundo lá em baixo e à tua volta, solta-te das tuas próprias correntes, dos teus medos e das tuas dúvidas. Quantos sonhos vês?
Não importa se é aquela ida ao ginásio na porta ao lado mas que parece tão distante, aquele café com o amigo quase esquecido, aquele telefonema que andas há séculos para fazer, aquele perdão que andas a adiar, aquela viagem até ao outro lado do globo, aquele curso superior que querias e não o que alguém queria para ti, aquele emprego que é a tua cara, a conclusão daquele projecto pessoal pendente, a publicação daquele livro ou uma completa viragem de 180º. Nunca é tarde de mais.
Recorda que os teus sonhos são o teu castelo e que não é esperado que alguém o construa por ti. Relembra que todas as jornadas, por longas que sejam, começam com a coragem de um primeiro passo. E antes que a palavra "fracasso" se forme na tua mente, como justificação cansada para desistires de ti, lembra-te que em criança não começaste a andar sem antes tropeçar e sem antes cair. Uma, duas e três vezes.
Como me disse um amigo, todos os puzzles começam com as peças dispersas, baralhadas. O que é preciso é saber juntá-las, uma a uma. Sonho a sonho.
sexta-feira, junho 03, 2016
E Viveram Felizes Para Sempre
"E viveram felizes para sempre."
Só que não.
É engraçado. Vivi uma infância embalada pelos mágicos filmes Disney (quem não?), esculpido ponto a ponto, sem que me apercebesse, pelas sábias lições de vida escondidas para lá das bonecadas. Inspirado, na minha inocência de criança, pelas mensagens de esperança de um mundo melhor e de uma vida plena, quantas vezes ao som de "E viveram felizes para sempre". Bem ou mal, isso reflectiu-se em mim, na minha forma de ser e estar na vida e na minha forma de projectar o meu futuro. Até há uma semana.
Neste quarto não há muito que fazer senão cansar-me de ler jornais e de ver os mesmos canais de televisão vezes sem conta. Nem meio vazio, nem meio cheio, apagar a televisão não se revela melhor opção, porque à falta desse ruído de fundo há só a minha respiração esquisita e os apitos intervalados desta maquineta irritante, que se me liga por uma agulha ao pulso. Nem a porra de uma mosca se ouve.
Então, enquanto esperava, optei por falar com os meus botões. Revi todos os cenários possíveis, ansiando pelos melhores e preparando-me para os piores. Sei lá, na altura pareceu-me uma boa ideia. Sempre gostei de ser racional e até hoje a vida não me tinha falhado nesse aspecto: a coisa da vida é que tudo se resume a uma questão de perspectiva. E nos meus breves anos de vida eu já carrego um histórico pesado de termos de comparação, que me faz olhar para tudo num paradigma de simplificação e de aceitação. Separar coisas importantes de coisas irrisórias ou acessórias.
A verdade é que vi partir amigos injustamente, vi partir irmãos e irmãs de amigos cedo demais, alguns deles de formas tão estúpidas quanto o ser humano pode ser estúpido. Onde me situo eu, neste circo de atrocidades, para poder sentir-me infeliz ou injustiçado com aquilo que tenho ou aquilo que me falta? Ao lado daqueles, que são problemas dignos desse nome, os meus eram anedotas. E daquelas más.
E assim relativizei a questão e ensaiei os cenários na minha cabeça. Embora fizesse all-in no "E viveram felizes para sempre" (porque, convenhamos, ainda tinha muito para viver), ao fim de muito ensaio neste palco decrépito sentia-me em paz com qualquer coelho que o médico pudesse tirar da cartola quando voltasse.
O problema - agora sim - é que, quando ele regressou e passou por aquela porta, entre mim e essa célebre frase tão cheia de sonhos e ambições surgiram duas palavras:
"É cancro".
Deixei de me ouvir respirar.
Deixei de me ouvir respirar e esqueci-me de todas as falas dos meus ensaios, de toda a apaziguada aceitação do meu destino deixado aos ventos.
"É cancro", naquele tom de voz sem réstia de alento, é o copo de vidro que nos escorrega das mãos; que deixamos cair aos nossos pés descalços e se desfaz ali em mil bocados e que te deixa petrificado, imóvel, com receio de assentares um dedo que seja no centímetro quadrado de chão errado. E o zumbido que fica nos ouvidos do vidro a quebrar-se, igual ao som de tudo em ti a quebrar-se também por dentro.
Ninguém te prepara para isto. Engasgas-te a responder, até que desistes de tentar formular uma resposta. Enquanto tu e o teu corpo digerem essa realidade, dás por ti a viajar mentalmente até à tua família, até aos teus amigos, até à tua miúda; a dar-lhes aquele último abraço e aquele discurso de despedida que na verdade não vais dar, porque sabes que quem cá fica são eles e só seria pior se soubessem.
Consegui finalmente engolir aquele bolo, a seco, e não precisei de mais palavras. Arranquei do pulso a porcaria do fio, saltei da cama e fui viver os últimos dias da minha vida, antes de me deitar aqui de vez.
Não deu para tudo, mas consegui um serão em família e dar o último adeus em silêncio a grande parte dos meus. Para terminar, hoje assisti pela última vez a um jogo de vólei da minha equipa, sem eles saberem. E ganhámos...! Ganhámos e ganhámos bem, com um mérito irrepreensível, e só por isso, mesmo não seja "para sempre", eu vou daqui feliz.
Um abraço amigo.
Só que não.
É engraçado. Vivi uma infância embalada pelos mágicos filmes Disney (quem não?), esculpido ponto a ponto, sem que me apercebesse, pelas sábias lições de vida escondidas para lá das bonecadas. Inspirado, na minha inocência de criança, pelas mensagens de esperança de um mundo melhor e de uma vida plena, quantas vezes ao som de "E viveram felizes para sempre". Bem ou mal, isso reflectiu-se em mim, na minha forma de ser e estar na vida e na minha forma de projectar o meu futuro. Até há uma semana.
Neste quarto não há muito que fazer senão cansar-me de ler jornais e de ver os mesmos canais de televisão vezes sem conta. Nem meio vazio, nem meio cheio, apagar a televisão não se revela melhor opção, porque à falta desse ruído de fundo há só a minha respiração esquisita e os apitos intervalados desta maquineta irritante, que se me liga por uma agulha ao pulso. Nem a porra de uma mosca se ouve.
Então, enquanto esperava, optei por falar com os meus botões. Revi todos os cenários possíveis, ansiando pelos melhores e preparando-me para os piores. Sei lá, na altura pareceu-me uma boa ideia. Sempre gostei de ser racional e até hoje a vida não me tinha falhado nesse aspecto: a coisa da vida é que tudo se resume a uma questão de perspectiva. E nos meus breves anos de vida eu já carrego um histórico pesado de termos de comparação, que me faz olhar para tudo num paradigma de simplificação e de aceitação. Separar coisas importantes de coisas irrisórias ou acessórias.
A verdade é que vi partir amigos injustamente, vi partir irmãos e irmãs de amigos cedo demais, alguns deles de formas tão estúpidas quanto o ser humano pode ser estúpido. Onde me situo eu, neste circo de atrocidades, para poder sentir-me infeliz ou injustiçado com aquilo que tenho ou aquilo que me falta? Ao lado daqueles, que são problemas dignos desse nome, os meus eram anedotas. E daquelas más.
E assim relativizei a questão e ensaiei os cenários na minha cabeça. Embora fizesse all-in no "E viveram felizes para sempre" (porque, convenhamos, ainda tinha muito para viver), ao fim de muito ensaio neste palco decrépito sentia-me em paz com qualquer coelho que o médico pudesse tirar da cartola quando voltasse.
O problema - agora sim - é que, quando ele regressou e passou por aquela porta, entre mim e essa célebre frase tão cheia de sonhos e ambições surgiram duas palavras:
"É cancro".
Deixei de me ouvir respirar.
Deixei de me ouvir respirar e esqueci-me de todas as falas dos meus ensaios, de toda a apaziguada aceitação do meu destino deixado aos ventos.
"É cancro", naquele tom de voz sem réstia de alento, é o copo de vidro que nos escorrega das mãos; que deixamos cair aos nossos pés descalços e se desfaz ali em mil bocados e que te deixa petrificado, imóvel, com receio de assentares um dedo que seja no centímetro quadrado de chão errado. E o zumbido que fica nos ouvidos do vidro a quebrar-se, igual ao som de tudo em ti a quebrar-se também por dentro.
Ninguém te prepara para isto. Engasgas-te a responder, até que desistes de tentar formular uma resposta. Enquanto tu e o teu corpo digerem essa realidade, dás por ti a viajar mentalmente até à tua família, até aos teus amigos, até à tua miúda; a dar-lhes aquele último abraço e aquele discurso de despedida que na verdade não vais dar, porque sabes que quem cá fica são eles e só seria pior se soubessem.
Consegui finalmente engolir aquele bolo, a seco, e não precisei de mais palavras. Arranquei do pulso a porcaria do fio, saltei da cama e fui viver os últimos dias da minha vida, antes de me deitar aqui de vez.
Não deu para tudo, mas consegui um serão em família e dar o último adeus em silêncio a grande parte dos meus. Para terminar, hoje assisti pela última vez a um jogo de vólei da minha equipa, sem eles saberem. E ganhámos...! Ganhámos e ganhámos bem, com um mérito irrepreensível, e só por isso, mesmo não seja "para sempre", eu vou daqui feliz.
Um abraço amigo.
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