Deixei de ver com 20 anos.
Hoje, com 25, aprendi a pintar o meu mundo imaginário com as minhas cores. Com cores que, enquanto via, enquanto tive a bênção e o dom da visão, nem sequer sonhava existirem.
O teu problema é que nunca foste cego. Nunca soubeste o que é abrir as pálpebras e não haver luz para lá dos teus olhos. Não haver dia, não haver cor. E não haver nem céu nem mar. Não haver mais o rosto de alguém para quem um dia amaste olhar.
Nunca soubeste o que é esta escuridão de quem divaga livre mas preso na prisão infinita da mente. A prisão de quem não vê, mas tudo sente.
E porque nunca foste cego, nunca foste capaz de ver para além dos olhos ou de sentir para além do tacto. Para além dos instintos básicos e primários que florescem em ti através do que vês e do que tocas. E para ti, para quem é essa a realidade do mundo e a cor da vida, isso é tudo o que conheces e tudo quanto baste. É essa a tua paleta de cores. E por isso eu aceito que não compreendas a obra de arte que desenhei para mim no meu mundo às escuras, sem luz nem cor.
A verdade é que aprendi nestes cinco anos a apreciar a minha escuridão, esta cortina de sombra que me separou do que antes via. E não querendo parecer presunçoso, hoje sinto que, sem ver, vejo perfeitamente. Hoje sei que a tua visão imaculada é na verdade um daltonismo grave, acromático, oscilando num espectro pobre e neutro de pretos e brancos. E a culpa não é tua, porque foi assim que te ensinaram a ver. É assim que o mundo vê.
E então era isso que hoje queria partilhar contigo. As verdadeiras cores da vida - e, sobretudo, das pessoas - estão muito para lá daquilo que vês e daquilo que tocas. Atreve-te a ver mais do que apenas caras e corpos. Atreve-te a tocar mais do que apenas pele. Atreve-te e vê por exemplo a forma como ela olha para ti. Vê como lhe gela a respiração quando tem medo e procura segurança em ti. Vê como a consome a saudade da tua presença. Vê como são salgadas as lágrimas que chora quando está magoada. Vê como treme quando tem frio e como se lhe acalma a pulsação quando se comprime contra o calor do teu peito. Vê como lhe fervilha o sangue de emoção quando estás por perto. Vê como soa o riso tímido dela quando está feliz. Vê a graciosidade do sorriso dela quando te aperta nos seus braços e a musicalidade da sua voz quando te fala ao ouvido. Vê como canta a melodia do seu coração. Vê. Atreve-te e vê.
Atreve-te e vê com todos os teus sentidos como lhe dança a alma.
E nesse dia saberás o que é ser cego como eu.