Mas, afinal de contas, interessa-te a pérola ou a concha da ostra?
A resposta parece óbvia, não parece? É que a mim parece-me e muito. O teu problema é teres nascido e crescido no seio desta cultura da imagem, a cultura das carapaças, onde as conchas prevalecem sobre as pérolas e onde, à conta disso, estas últimas se vão tornando numa raridade. Procura-se a concha bonita, a carapaça pitoresca e cativante, e esquece-se constantemente tudo o resto que habita dentro e para lá dela, por trás dessas paredes que não são mais do isso: paredes. E a concha adapta-se rígida e repetidamente a esse meio venenoso que, por obra do destino ou do Senhor, a acolheu no mundo. E então, debaixo do fatal fogo cruzado de preconceitos e olhares e críticas e censuras - que geralmente não vêm sós, nem fundamentadas - a concha fecha-se gradualmente, passo a passo, até que encerra de vez as suas portas, esquece as boas maneiras e as saudações de boas-vindas e ergue as barras daquilo que, daí em diante, passa a ser prisão ao invés de casa.
E chegamos ao mundo em que vivemos, não é? Outrora tínhamos pérolas nos mais variados sítios. Ou assim creio, pelo menos. Sim... aposto que os meus antepassados se cruzavam diariamente com tesouros como esses; imagino-os caminhando serenamente, deixando escapar um esporádico mas sincero «bom dia!», falando de pérola para pérola, ao passarem uns pelos outros nas ruas. De conchas abertas, abertas às gentes e ao mundo, brilhando até na mais escura das noites. E hoje? Hoje ao cair do sol, nas noites sem lua, vês... preto. Escuro... nada. Porque aquilo que antes reluzia e palpitava, hoje vive tapado pelas muralhas que então se fizeram levantar, à custa dessa vã vassalagem e desse tão cego amor à imagem. Muralhas, é que nem mais: afinal de contas, e repetindo-me, interessa-te num reino a majestosidade do castelo ou as qualidades e as capacidades do seu rei soberano?
Pergunta segunda: põe-te no lugar da pérola ora aprisionada. Como é que te sentirias? Diminuído, não é? Como se todo o mundo se inclinasse e se precipitasse na tua direcção a todo o vapor, de tochas acesas e armas empunhadas, ameaçando ruir e desabar-se sobre a tua concha, a tua casa, teu castelo e prisão, esmagando-te. Sufocante, não é? E tu repetes: «sim, é». Então se é e se tu sabes que é, por que raio insistes em ser o mundo que se inclina e se precipita na direcção das pérolas de pistola em riste, pronto a premir o gatilho antes do primeiro passo em falso? És mais do que quem te rodeia? Tens uma concha mais bonita do que a de quem vive ao teu lado e à tua volta? Variam as cores, os brilhos e as formas, mas conchas serão sempre conchas. E se não percebes isso, então és mais idiota do que alguma vez pensei e provavelmente em ti há apenas cinzas daquilo que, se calhar, em tempos foi uma pérola, uma pedra preciosa.
Quanto a mim, a minha concha é a minha porta e a minha janela e não as paredes atrás das quais me escondo. Guardo e seguro uma pérola e podes vê-la e tocá-la sempre que quiseres. Não tenho medo nem vergonha de ser quem sou e se tu, ou quem quer que venha da tua parte, tiveres algum problema com isso, podes sempre enfiar as mãos no fundo dos bolsos, pegar nos teus pézinhos, dar meia volta e pôr-te a andar.