Hoje venho falar-te de ti.
Dei conta de que passo os meus dias a falar-te de mim nas linhas que escrevo. Da minha infância, da minha avó, das minhas viagens, do meu tempo na guerra, dos meus amores e dos meus desamores, das minhas alegrias e das minhas dores, do meu casamento, da minha família, da minha casa, da minha velhice e até da minha morte. Do teu canto, do teu silêncio, lês-me atentamente até adormeceres; ouves-me palavra por palavra, como se te embalasse a voz muda na tinta das minhas letras. E, no entanto, sobre ti nem uma palavra.
Pois hoje o meu tempo é teu, na esperança de que os teus últimos cinco minutos deste dia, na tua assídua leitura nocturna, já na cama, sejam de ti para ti.
Se escrevo com frequência, na solidão do meu conforto, saberás que falo bastante menos, preferindo usar o meu tempo lá fora ouvindo e observando. Não estou distraído, nem alheado da realidade; estou, sim, atento ao mais ínfimo zumbido e ao mais milimétrico detalhe do que me rodeia. E é muito isso que faço quando estás por perto.
E apercebi-me, nesse jogo que jogo sozinho, de que, por debaixo dessa máscara em que te escondes diariamente, és um diamante em bruto. Envolto apenas num lençol de poeira que vestes sem saber. E eu gostava que soubesses.
A parte mais difícil de escrever é começar. E é começar porque diante de ti tens uma página em branco, olhando-te ameaçadoramente nos olhos, em tom de desafio. Desalenta-te. O talento está todo lá, esvoaçando livremente pela tua cabeça, deslizando depois até ao peito, rodopiando no coração e ziguezagueando até à ponta dos teus dedos. Mas a folha continua branca. Faltam-te as ideias, faltam-te as directrizes, falta-te o método, falta-te a forma. Falta-te quem te oriente, quem te diga o que fazer e, mais importante que isso, quem te diga como fazê-lo. Falta-te encontrar a inspiração, porque é a inspiração que te faz saber o quê e o como.
Para mim, do que observei, é assim que és. Bem, não como tu és, mas como tu estás. É assim que acabas vivendo os teus dias, dia após dia. Como o escritor de frente para a folha em branco. Em que tu és o escritor, com todo o talento aprisionado, e a folha em branco é a tua vida, um livro aberto à espera de que o escrevas. A inspiração... bom, essa não a encontras porque a vida acontece. E quando a vida acontece, dizendo-te o que tens de fazer, como tens de fazer e como tens de ser, tu desligas a voz do teu coração, a força indomável dos teus sonhos, e confinas-te ao que o mundo espera que sejas, porque o mundo não está preparado para a tua grandeza.
Sabes aquela expressão da moda, do "out of the box"? Eu gostava muito que fosses não out of the box, mas out of the body. Sai do teu corpo e sai, sobretudo, do corpo do mundo, que o corpo do mundo tem uma mente tóxica. Sai e olha de frente para ti. Para a tua própria folha em branco. Olhos nos olhos, olhos na alma. Desculpa-me a foleirada, prometi-me a mim próprio deixar de ser foleiro há anos, mas tu és linda da cabeça aos pés. Cada centímetro teu. Cada centímetro cúbico teu, desculpa-me, que antes de escritor sou engenheiro. És linda. És, por muito que não o vejas, por muito que o teu espelho o distorça e por muito que o mundo alegue e te convença que não. És!
Mas ficaria muito aquém da análise de ti se me quisesse e me deixasse ficar pelo teu exterior. O teu exterior é pouco mais que o rascunho primeiro da tua história, pouco mais do que a sombra da tua luz. O que achei realmente enternecedor foi descobrir a tua verdadeira faceta, o teu verdadeiro Eu, quando o teu verdadeiro Eu é tão diferente daquele que levas e mostras ao mundo quando sais do teu esconderijo e passas por aquela porta. Bates a porta atrás de ti e toda tu acusas confiança, segurança e dureza. É quase possível ouvir-te a amargura na voz e cheirar-te, à distância, o desprezo na pele. Ler-te um vazio nos olhos que só me ordena que me afaste.
O engraçado é quando percebes que essa é a percepção mais antagónica de ti que se pode ter, quando tudo em ti é exactamente o extremo oposto. Não que não sejas confiante, não que não sejas segura, não que não sejas forte. És. Mas és ao mesmo tempo suave, doce; és frágil, és medrosa e és, surpreendentemente, muito sentimental. Confronta-se a máscara e aos poucos rompem-se as barreiras que ergues em teu redor. E entra-se num lugar só teu onde emanas amor no lugar de ódio. Onde atrais, quando tudo o que procuras é repelir. Onde tens sonhos e ambições maiores do que eu sei medir, quando tu decidiste ceder e acreditar que és só mais um peixe no aquário. E um daqueles de uma barbatana só, que nem direito nada.
A mensagem que te quero deixar é a de que tu vales toda a pena. A viagem ao centro de ti tem entusiasmado os meus dias e eu adorava dar-te em mão um bilhete para que a fizesses comigo. Para que soubesses dar o passo para out of the body e olhar para ti mesma com olhos de sentir. Para que soubesses largar a tua máscara e atirá-la para longe, bem para lá de nunca mais, e abraçasses contra o peito e contra o mundo o valor inestimável que tens.
Todavia, essa é uma viagem que deves fazer pelo teu próprio pé, com a tua própria vontade. Assim, despedindo-me, deixo-te o bilhete sobre a cabeceira para que o pegues pela manhã.
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