De repente esqueci-me por que estávamos a lutar.
Era a minha terceira jornada em guerra, longe de casa e fora do meu país. Nesse período, vi muita coisa. Testemunhei mais do que desejava e assisti às cicatrizes a brotarem-me à flor da pele e à flor do coração. Fragmentos de explosões, golpes de faca e ferimentos de balas. Irmãos de armas mortos, amputados, desfigurados e tantos outros feridos. Mas aquela imagem fez parar o mundo.
Tínhamos acabado de abrir caminho em território hostil. Um lamaçal nas imediações dos destroços que sobravam daquela terriola. Achava-a deserta, já que não tínhamos avistado ninguém. Nem um pio. Só o vento varrendo as ruínas, os motores dos jipes e os passos secos de quem, como eu, seguia a pé. E os chocalhos da água nos cantis e das fivelas nos capacetes.
Atrás de nós vinham em coluna dois carros de combate, artilharia pesada. Ao atravessar o lamaçal, os carros abriam fendas na terra e as fendas depressa cediam lugar a poças, de uma água mais acobreada que os nossos coletes. E do silêncio asfixiante, uma criança de meio metro, escondida apenas entre pele, ossos salientes e uma coragem do tamanho do universo, arrasta-se para fora das ruínas e afoga a boca nas poças que deixávamos para trás, secando uma por uma. Via-lhe o coração bater por debaixo da pele seca, tal a magreza. De cérebro congelado, consegui apenas antes de seguir caminho deixar-lhe cair, como ali a mim tudo me caía, o cantil que trazia à cintura.
Sei contar de trás para a frente a história de todas as minhas cicatrizes, mas não encontro palavras à altura daquela nova que acabava de ganhar.
Há verdades que ferem mais que balas.
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