Ninguém quer lembrar-se do que a mente nos reserva durante a noite.
Os meus pais pariram-me sonhador. Na minha mente crescem sonhos como crescem morangos na terra ao sol. E nem preciso de os regar. O problema é que, num duelo à faroeste entre mim e a minha mente, quem vence é sempre ela. Porque sabe onde ferir.
"Calma lá, cowboy dos sonhos, que conversa vem a ser essa?", perguntas tu. Nem te dás conta. Não te dás conta porque, como disseste naquela manhã entre sono e cigarros, ao acordares nunca te lembras do que sonhaste. E ainda bem para ti: ninguém quer lembrar-se do que a mente nos reserva durante a noite.
Os pesadelos são poções fabricadas em caldeirão pela nossa mente - escolhendo os ingredientes certos a dedo e misturando-os "generosamente" - e administradas pela noite ao nosso corpo, via intravenosa. É uma matemática simples: durante o dia, o trabalho do corpo que não dá tréguas à cabeça; durante a noite, o veneno da cabeça que não dá descanso ao corpo. Olho por olho, dente por dente. E se por vezes a dose é pouca, vezes tem que é veneno mata-ratos, de concentração muito para lá da dose letal.
A nossa cabeça conhece-nos bem. Sabe com precisão milimétrica e a papel químico o que mexe connosco. O que nos assusta de morte, o que nos dá suores frios e o que nos dá sete coronhadas no estômago sem sequer nos tocar. Mesmo quando nós próprios não sabemos. Mas tu não percebes. Não fazes ideia do que isso é. Não sabes o que é veres-te num cenário tão real que não sabes distinguir se estás a dormir ou se estás acordado. As paisagens, os sons, os cheiros!, os rostos.
Tu - para quem, não lembrando, tudo será sempre novo, de novo - não farás ideia do que é, noite após noite, regressar ao mesmo sonho. Ao mesmo pesadelo. Às mesmas salas e recantos obscuros que já exploraste n vezes antes, mas que, enquanto novo sonho, terás de tornar a explorar. Com o mesmo medo com que exploraste da primeira vez. Já sabendo e antecipando o que vem lá por detrás daquela próxima porta.
Não sabes o que é estar no centro de acontecimentos tão grotescos que te deixam de mãos e pés atados e com o coração na boca e que, por te lembrares quando acordas, és obrigado a reviver. Vi o meu pai morrer brutalmente baleado, em plena emboscada islâmica, por exemplo. Vezes e vezes sem conta. À frente dos meus olhos. Sem poder impedi-lo e sem ter para onde fugir. E como esse, tinha outros tantos para partilhar contigo. As minhas partidas nocturnas de xadrez contra os meus medos, em que o meu Rei está sempre em Xeque; eu refém de mim próprio. Eu a ratoeira e eu o rato.
Invejo-te. Ninguém quer lembrar-se do que a mente nos reserva durante a noite. Eu lembro-me. E preferia não me lembrar.
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