Desde criança que acredito em almas. Enquanto todos acreditavam em Deus, na Vida depois da Morte, no Céu e no Inferno, eu acreditava somente em almas. E era gozado por isso.
É claro que a princípio não entendia a complexidade que o conceito envolvia. Na mente do meu eu pequeno, as almas eram imaginadas como minúsculos seres azuis conduzindo os corpos das pessoas à minha volta, sentados ao volante das suas vidas nos cockpits das suas cabeças. De cinto apertado e tudo. O cabelo no topo das cabeças servia, como era óbvio, para não deixar as almas ao frio.
Com o passar dos anos, a minha visão mudou um pouco e as pequenas almas azuis dissolveram-se num pó invisível que corria no sangue das pessoas, nessa encruzilhada de veias e artérias que eram como auto-estradas para elas. Se antes imaginava as pequenas criaturas azuis mais gordas ou mais magras consoante a figura ou a personalidade de cada pessoa, nesta fase media as diferentes almas em termos de densidades e formas desses pós, ainda que invisíveis. Quanto mais denso e quanto maior a dimensão das suas partículas, dos seus grãos, mais vincada e mais audaz a alma. Agradava-me a perspectiva científica da questão.
E então caiu-me nas mãos, como um pára-quedas furado, a expressão de alma gémea. A ideia baralhou-me. Como assim, "gémea"? Seriam dois pós congéneres? Alojados algures num mesmo quadrado imaginário da tabela periódica? Ou duas substâncias diferentes, soluto e solvente, com elevado coeficiente de solubilidade, capazes de se fundir na perfeição?
Mas de que forma estava isso relacionado com o amor, de todo o modo? E então como funcionava essa conversa que tanto ouvia, entre choros e soluços dos mal-amados, de que "nada dura para sempre" e de que "o que é bom acaba depressa"? Uma solução perfeita não se inverte assim tão facilmente, tão espontaneamente.
Então, num esforço mental, aceitei a hipótese de a alma ser não um pó, mas algo de imaterial. E, aceitando, porque não estender à alma imaterial a teoria de Lavoisier, de que "na Natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma"? Poderão as almas desviar-se das auto-estradas do sistema sanguíneo e saltar de corpo em corpo? Poderão as almas gémeas escolher um dia habitar noutra casa, num outro corpo, dando lugar a uma com quem a nossa alma incorpórea não se identifique mais...?
Fica-me a dúvida. Mas quero acreditar que sim. Talvez assim os amores não tenham sempre um fim, como dizem, mas apenas uma mudança de rumo. Talvez deixem de dar vida e brilho a um par de olhos e passem a dá-los a um par diferente. Então não acaba. Temos só de seguir espreitando na janela de cada um dos outros corpos em redor, até (re)encontrarmos, no seu cockpit vago e indefinido, o nosso soluto ou o nosso solvente.
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