Ninguém gosta de pontas soltas. Por isso, listei num pequeno bloco todas as pontas que me faltavam atar e dia após dia comecei a riscar-te da minha vida. Ponto por ponto.
Precisava urgentemente de te arrancar de mim, de te extinguir do meu corpo como se extingue um fogo. E, por fim, de varrer e soprar da minha alma a tua cinza e os teus pós. Grão a grão. Ponto por ponto.
Comecei pelo que tinha mais à mão. As fotografias. Esses fantasmas que me observavam silenciosamente de todos os cantos da casa. Aquele, em particular, que me olhava fixamente da mesa-de-cabeceira enquanto dormia e que me saudava, a mim e à minha mágoa, todas as madrugadas de sorriso aberto e de faca em riste, pronto a cravar-ma entre as costelas.
Despedi das prateleiras e móveis todas as molduras que encontrei. Despedi-as, despedi-me delas e guardei-as onde nunca mais me lembraria de as procurar. De seguida, passei um pano no pó e na memória que sobrava delas em todo o lado, para não deixar vestígios. No lugar delas ficou apenas um vazio inocente.
Seguiram-se as tuas coisas. Os bocados de ti que ainda guardava sob o meu tecto. Arrumei-as uma por uma, com a saudade prenunciada de quem se despede dos filhos partindo para a guerra, e empacotei-as para tas fazer chegar dentro de breve.
Ias partindo aos poucos, à medida que riscava da lista os estilhaços da tua recordação em mim. Envolvendo-te mais e mais numa neblina difusa, como quem se distancia numa noite de nevoeiro.
Esqueci a tua voz.
A vida tratará de me fazer esquecer também o teu cheiro, o sabor dos teus lábios, o teu toque, o vício dos teus hábitos e, a seu tempo, as tuas feições. Há-de queimar de mim essa tua droga de que ainda ressaco.
E depois silêncio. O ar puro à minha volta e o eco do meu coração batendo livremente no meu peito. Apenas e só.
Ninguém gosta de pontas soltas. Por isso, listei num pequeno bloco todas as pontas que me faltavam atar e dia após dia risquei-te da minha vida. Ponto por ponto.
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