E partiste.
Não sei quem disse que quando já se está à espera é mais fácil. Porque não é. Não é... Não é estar à espera que torna mais fácil sentir-te afrouxar a minha mão. Não é estar à espera que torna menos doloroso ver os teus olhos perderem a tua luz imensa. Não é estar à espera que me faz aceitar melhor o teu último fôlego. Não é estar à espera que torna mais suportável escutar o bip da máquina esmorecer até ficar monocórdico, prolongando-se no ar, no vazio. No teu vazio.
Estamos todos à tua volta, mas foi o vazio que me preencheu. A pouco e pouco, a início, e depois todo de uma vez só. Deixei de os ouvir, deixei de os ver. Fechei-te os olhos para te deixar dormir o teu último sono e ficámos os dois sozinhos na sala. Eu sentado ao teu lado, segurando ainda a tua mão sem força, e tu deitado, bem ali, mas já longe algures.
O coração pulsa-me ao ouvido. No estômago, no peito, na garganta e na boca. Fomos adiando esta despedida, eu sei, mas não consigo despedir-me de ti. Não sei, aliás, despedir-me de ti. Vivemos muito, mas deixei tanto por dizer e tu deixaste tanto por ouvir, tanto por rir, tanto por partilhar... Despedir-me de ti é despedir-me de metade de mim, de mais de metade de mim, e eu simplesmente não sei fazê-lo. Não sei o que dizer, muito menos como dizer. Não encontro as palavras, as certas ou as erradas...
Ocorre-me só um agradecimento, o maior que algum dia endereçarei a alguém, já que te devo muito de quem sou hoje, de em quem me tornei. Posso agradecer-te em silêncio? Será que o ouves? Será que consegues sentir e medir a profundidade da minha gratidão...?
Choro sobre a tua mão, apercebi-me agora. Peço-te que me perdoes.
Da gratidão que te dirijo com carinho, do canto onde me encolho pequenino, vêm-me à memória os nossos episódios mais felizes. E não evito uma gargalhada murcha quando dou conta de que todos eles giram à volta de comida. Esboço um meio sorriso por entre as lágrimas. A comida e tu, tu e a comida. O pensamento aquece-me o coração.
E aquecendo, de um momento para o outro vejo-nos aos dois na casa da Costa, na mesa sob o toldo, a fazer macacadas enquanto a Avó aquecia as febras no forno. Tu com a gaita, que alternavas às escondidas com umas fatias de mortadela, e eu com a pandeireta. E ela fora de si com o chinfrim que fazíamos na rua, cirandando para trás e para diante, a gritar-te que eras pior do que eu. Sem ela ver, olhavas para mim, trincavas mais um pouco do farnel e encolhias os ombros, rindo. Separavam-nos praticamente 55 anos, mas formávamos uma dupla imbatível!
Uma lágrima atinge-me na mão e a memória esvanece-se como fumo no ar, tão depressa quanto aparecera, e de repente estamos de novo só os dois e sombras à volta. Sinto-te frio e fico gelado. As emoções descontrolam-se e disparam em todas as direcções e depois entram em parafuso, sem saída, como pescadinha de rabo na boca. Não te conheço sem calor, não te reconheço sem alegria, sem música, sem graça. Sem Vida.
Desculpa, não tenho palavras...
Partiste há três minutos e eu já morri dez vezes de saudades.
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