A minha avó tinha um entendimento muito próprio sobre a vida e sobre as coisas.
Era professora de desenho e de alguma forma isso talhara-a para ver o mundo de um modo diferente. Ela compreendia melhor do que ninguém a geometria da Natureza, por exemplo. As simetrias, as curvaturas, a disposição angular, os padrões, as cores. Compreendia-a e deleitava-se com ela.
Não raras vezes, enchia-nos os bolsos com conselhos de vida através das suas pequenas lições de desenho, enquanto nos observava a rabiscar umas folhas de papel com lápis e canetas de cor. Esta noite, por alguma razão, sonhei comigo sentado de novo no alpendre dela, com talvez 8 anos, com ela ao lado baloiçando-se na sua cadeira e espreitando por cima dos óculos o desenho que então eu fazia.
Estava a delinear a caneta preta todo o esboço que fizera a carvão, quando a voz dela me interrompeu, clara como se me falasse hoje ao ouvido: "Pousa a caneta preta, filho. Nada nesta vida tem contornos definidos".
No meu sonho, vi-me parar quase mecanicamente e pousar a caneta. Depois disso, quando captou a minha atenção, a minha avó divagou numa conversa que naquela altura não passou, para mim, de um comboio de palavras soltas. E que, no entanto e sem saber, mantive guardada para mim todo este tempo. Dizia ela:
"Nada nesta vida tem contornos; somos nós que os impomos. Desde cedo. Os primeiros desenhos são sempre contornos coloridos, mas sem preenchimento. Bonecos desenhados a caneta de feltro ou a lápis de cera, arrojados e alegres. Uns anos mais tarde, passamos a preferir, como tu, o lápis de carvão. A grafite. E a borracha, é claro. Preferimos construir primeiro uma base, um sustento mais sólido, perfeito à nossa medida. Depois, a cor. E durante alguns anos experimentamos vários tipos de cor: lápis de cor, lápis de cera, canetas de feltro, tons de grafite, guache, aguarelas... E no fim, sempre no fim, o contorno a preto."
Lembro-me de nesse instante voltar-me para o contorno inacabado no meu desenho.
"A fase seguinte é a da tinta da China. Porque é para sempre. E para nós o para sempre é sempre melhor. Dá-nos estabilidade e segurança. Um contorno a lápis ou a caneta é frágil demais. Com o avançar da idade, vamos pondo de parte o hábito e o rigor da tinta da China e desistimos de desenhar contornos. Se encheres uma tela com tinta e a virares de pernas para o ar logo de seguida, o que é que acontece?"
"A tinta escorre...?", arrisquei.
"A tinta escorre. Escorre, pinga e estraga toda a pintura. Acabamos por largar a tinta da China porque percebemos que o 'para sempre' é o tempo que traz. Não o contorno, não a definição forçada. É preciso esperar que a tinta seque; que o papel absorva. Então deixamos a cor do preenchimento fazer o seu próprio contorno, moldar as suas próprias curvas. E é aí que os desenhos se tornam mais reais, mais limpos. Mais bonitos.
E aí sorriu-me. Sorriu-me e eu acordei, com a voz dela e o ranger da cadeira de baloiço ainda a zumbir-me ao ouvido. Vinte anos depois aquele comboio de palavras soltas ganhou forma em mim e levou-me a ver a vida com outros olhos. Os olhos dela.
Sem contornos.
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