sexta-feira, março 17, 2017

Folhas de Papel

Expliquei-te há três dias ao almoço, entre duas fatias gordas de sashimi, que acredito nas energias do Universo. Tu, claro, riste-te.

A coisa é que fazia nesse dia um ano que te falei da minha avó. A minha avó falecida, a minha avó professora de desenho, a minha avó que, como um desenho, via a Vida sem contornos. Um ano. E, nem a propósito, nesse dia tornei a sonhar com ela.

Estávamos de volta ao alpendre dela. Não sei se foi de facto aí que aconteceu ou se é já a mente pregando em mim partidas, mas ali estávamos os dois. Desta vez, era eu quem ocupava a cadeira de baloiço dela. Ela, por seu turno, bebericava o seu chá na mesinha de madeira, com um pôr-do-sol alaranjado recostando-se lá ao longe.

Via-me a mim próprio girar entre os dedos das mãos mais um desenho; para mim mais uma tentativa falhada da perfeição que procurava atingir, à minha pequena medida. Então vi-me a amachucar bruscamente o desenho numa bola desajeitada, num súbito acesso de fúria e frustração, e a pô-lo de parte na minha colecção de fracassos.

"Tomás...", murmurou-me naquele tom sempre impávido e sereno, detendo-se para soprar o seu chá quente. Pensei para comigo que se avizinhava um raspanete sobre o gasto de papel e as árvores mortas; em vez disso, a minha avó soprou-me uma daquelas coisas sem sentido que eu não tinha como entender. "... cada desenho que atiras para o chão é uma parte de ti que deitas fora."

Senti um silêncio esquisito em mim, como se aquela frase tivesse interrompido as sinapses no meu cérebro. E ela deve ter-se apercebido disso mesmo pela minha expressão, sentindo-se então na obrigação de rematar aquilo com um "Nós somos muito como os desenhos e as folhas de papel."

Não ajudou em muito a minha causa.

"Porque amachucas e deitas fora os teus desenhos?", insistiu ela, depois de um trago de chá. Ora, que pergunta... Encolhi os ombros, achando óbvia a resposta: "Porque não estavam bem." Aí ela questionou-me o que significava para mim os desenhos não estarem bem. Desta vez o meu cérebro não parou, mas revolveu-se; eram duas perguntas fáceis de seguida e a minha avó nunca fazia isso. Então eu percebi que ela não precisava de mim para descobrir a resposta, mas sim que queria que eu pensasse nela. Mais ainda, queria que eu entendesse isto mesmo antes de lhe dar a resposta final, para que repensasse e remoesse o assunto para além do óbvio.

Conferenciei com os meus botões, o meu olhar alternando entre o meu vazio, o pôr-do-sol lá atrás e as mil folhas amachucadas no chão, e inspirei toda a sabedoria que pairava no ar para, no lugar de um "Significa que estão feios" ou de um "Significa que estão tortos", lhe responder que não estava a conseguir reproduzir aquilo que idealizava. Soube pelo sorriso sorrateiro dela que era aquela a resposta que ela procurava.

"É quando fazes um traço torto e te apercebes de que ele está torto que te corriges e passas a fazê-lo direito. Cada traço errado ensina-te um traço certo. Cada borrão com a mão sobre o carvão do lápis ensina-te a levantar a mão e a cuidar do teu desenho. Como degraus, cada erro teu ensina-te a chegar mais perto do que idealizas aqui", disse-me, tamborilando com o dedo na sua cabeça. "Então, em tudo na tua vida, não podes ter um sem ter o outro. O certo sem o errado. O sucesso sem o fracasso. E tens, por isso, de guardá-los para ti ao mesmo nível, lado a lado, com o mesmo carinho."

Dei por mim a recolher do chão todas as bolas de papel que havia espalhado pelo alpendre durante aquela tarde. Coloquei-as a todas no meu colo, voltando a baloiçar-me na cadeira. A minha avó acenou em aprovação.

"Esses são os teus erros e os teus defeitos. E são erros e defeitos bonitos; não os amachuques. Agarra-os, abraça-os e trata-os bem, pois são eles que fazem de ti quem és. Ah!, e mais..." A minha avó esperou que eu olhasse de novo para ela. "... Trata bem também os erros e os defeitos dos teus amigos, porque nós somos muito como os desenhos e as folhas de papel...

Comigo de olhos nela, a minha avó desembrulhou uma das minhas bolas de papel, que ela própria tinha apanhado do chão sem que eu desse conta.

"E quando amachucamos uma folha de papel, ela nunca mais volta ao sítio."

[Primeira parte em: http://vidadepoetamilitar.blogspot.pt/2016/03/contornos.html?m=1 ]

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