O chão e as paredes tremeram pela primeira vez.
Estava frio na cave; a electricidade já tinha ido abaixo e o inverno ríspido instalava-se-nos nos ossos. Sem luz nem radiador, a escuridão era interrompida apenas pela tímida nesga de luz que descia pela brecha de janela junto ao tecto. Apertava contra mim a minha mulher e os meus dois filhos, que tremiam como o chão e as paredes, enquanto nos envolvia no único cobertor que consegui encontrar.
Ninguém falava.
O meu pai costumava dizer-me em miúdo que o medo tem cheiro e que sempre que um Homem tem medo é possível senti-lo no ar. Ouvia-lhe agora a voz sussurrar-mo ao ouvido e prolongando-se na minha cabeça, tão claramente quanto há 30 anos atrás. Se na altura, em tenra idade, lhe tomei o conselho como incentivo a não demonstrar o medo, hoje reconhecia-lhe a razão. Cheirava-se efectivamente no ar. No nosso ar, na cave - na minha mulher, nos meus filhos e, Deus, até em mim -, e no ar lá fora, nas ruas desertas, nos pelotões de homens armados do Führer e nos carros blindados que patrulhavam a cidade a cada meia hora, nos latidos dos cães ao longe, nas caves atulhadas de famílias como a nossa e agora no chão e nas paredes que tremiam.
Além de nos cheirar o medo, eu era capaz de nos ouvir bater os corações, sem ritmo certo e cada vez mais fortes, como se quisessem saltar-nos do peito e esgueirar-se pela janela junto ao tecto para fugirem dali. Mas, embora não pudesse dizer-lhes nada quanto a isso, em especial aos dois miúdos que o negrume da cave já não me permitia ver, eu sabia que para nós era tarde demais.
O chão e as paredes tremeram segunda vez.
As bombas começaram a cair.
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