"Mãe". Duas chamadas não atendidas. Do outro lado da linha, a voz saía-lhe tremida, entre soluços e gaguejos, num pranto descontrolado. Filtrei-lhe as palavras "a tua irmã". Queria não ter filtrado, queria não ter percebido. "A tua irmã", repetiu ela, vincando as palavras e pregando-as a sangue frio na minha incredulidade.
Três palavras bastaram para eu cair em mim. Para eu me despenhar em mim como se despenha contra o solo um avião. Um embate brusco no meu fundo, uma explosão em cadeia e depois estilhaços e destroços ardendo por toda a parte.
Era a noite dos dezasseis anos dela. Como de costume, juntáramos a família na casa dos nossos pais e jantáramos juntos uma vez mais, à luz do sorriso fulminante dela. Horas antes, cantámos-lhe os parabéns e ela soprou as velas. Desde que celebrara o primeiro ano de vida era aquele o momento do dia dela que mais a fascinava. Vencer de um só sopro todas as velas do bolo. E eu teci-lhe o habitual comentário de que me recusaria a comer uma fatia que fosse, com receio de engolir os perdigotos dela. E apesar de provavelmente cansada da piada, ela respondeu-me mais uma vez com aquela gargalhada de criança que lhe era característica.
Era a noite dela e ela, que sempre fez tudo tão certo, apenas pediu para, no conforto da excepção, ficar até um pouco mais tarde no café com as amigas. E assim a vimos sair pela porta, depois de nos apertar no abraço mais ternurento do mundo, de olhos a brilhar. Mal imaginávamos nós que aquela era a derradeira despedida.
Os sweet sixteen dela perpetuaram-se agridoces na passadeira daquela estrada, no lugar certo à hora errada, às mãos de alguém demasiado apressado para esperar só mais dez minutos para responder a uma SMS. Sem saber em que mais pensar agora, posso só procurar consolo na esperança de que, na sua inocência pura, ela não tenha chegado a dar pelo automóvel e que se tenha mantido radiante até ao último segundo, desfilando alegremente pelos traços pretos e brancos no seu vestido azul. É assim que quero recordá-la...
Eram três da manhã quando o telefone tocou e me arrancou do sono.
Não. Eram três da manhã quando o telefone tocou e te arrancou de mim.
Até já, Miúda.
Até já, Miúda.
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