Eu juro que estava curado.
Estava finalmente curado de ti.
Já não pensava em ti de dia e de noite deixei de sonhar sonhos teus. Deixou de me incomodar o perfume a que cheiras e esqueci a forma do teu corpo nos meus braços e na minha roupa. Deixei de sentir o teu coração no meu peito e nos meus ouvidos. Deixei de ouvir a tua voz no meu silêncio.
Mas porra. A tua música faz vibrar todas as cordas em mim. Todas as cordas sem excepção. Vibro e vibro e vibro e, de súbito, dou por mim sem forças nas pernas, entregue e rendido, entregue e perdido, a tudo o que foste e tudo o que fomos juntos.
A música toca e vibro mais um pouco e sou atirado de volta à primeira sala de cinema onde tímidos e envergonhados chorámos juntos. Onde a própria alegria de estar contigo, na essência mais pura e mais humilde do amor, me fazia chorar também, de pêlos eriçados e pele arrepiada, desde o duche que te antecipava em música e borboletas em êxtase ao deitar de coração bem entregue e em paz.
E vibro e sinto de novo, aqui e agora, a tua mão na minha, de dedos entrelaçados, sempre fria à procura de calor em mim. Da mão na mão aos braços nos abraços. Aos abraços que, de tão doce e fragilmente apertados, me roubavam o ar que me restava daquele que perdi no dia em que te conheci.
E a música entra mais em mim e eu vibro e sou agora sugado para os passeios à beira-rio, sob as também frias luzes de Natal, ao som das ondas que se vão atirando contra o cais. E vibro e estremeço nova vez e sou inundado pelo teu perfume que agora sei nunca ter esquecido e sinto-o na roupa, na pele e até nos lábios, como que acabado de roubar do teu pescoço.
E soa mais um acorde e mais uma nota no ponto, no meu ponto, na minha frequência, e eu estilhaço mais um pouco quando sinto agora os teus lábios de novo, quentes, vivos, nesses tantos milhares de pores-do-sol mundo fora, doces e salgados nos vários prados e praias que quisemos explorar só a dois.
A música atinge o clímax e em vício e veneno de ti eu não me atrevo a separar-me dela, como cola, como se na dor fossem os últimos segundos de ti que me eram permitidos antes da derradeira ressaca da droga que me foste. E aí vibro com ainda maior intensidade e vibro e vibro, e fragmentos de mim chocalhando e chovendo a toda a volta em pó e fragmentos de ti, fugazes, disparando em flash diante dos meus olhos como se bem aqui estivesses, anos em mil fracções, ribombando a cada acorde e cada corda e toda a voz dela ressoando e tinindo em mim e de repente em nós, agora já nos últimos nanossegundos que me sobram de novo de ti.
E depois silêncio.
No ar e em mim.
Silêncio, uma lágrima e um vazio.
terça-feira, janeiro 29, 2019
sábado, janeiro 26, 2019
De Tudo Pouco ou Nada
Sinto-me tão perdida às vezes...
Olha em teu redor.
Como foi que chegámos aqui? Virámos Licenciados, Mestres e Doutores. Tornámo-nos especialistas das ciências, da Matemática, da Contabilidade e da Tecnologia, e desenvolvemos e utilizámos o nosso mais apurado intelecto para construir o mundo de hoje. Criámos o topo-de-gama em tudo, em todas as coisas: nos telefones, nos computadores, nos tablets, nos carros, nas motas, nos aviões, nas roupas, nas organizações, nas start-ups, nas redes sociais...
Vimos virar o mundo de uma era de escassez para uma era de abundância (à parte, é claro, das regiões desfavorecidas de que fingimos não nos lembrarmos), onde a dificuldade deixou de se medir em "ter ou não ter", mas em "qual escolher?". Hoje temos tudo. E orgulhamo-nos tanto disso, de empregarmos com tanto sucesso no mundo o nosso intelecto e exímia capacidade de raciocínio, que tanto nos distingue enquanto Seres Humanos.
Mas... A que preço...? Será que aquilo que nos distingue como Humanos é mesmo - e sobretudo só - a nossa capacidade intelectual, a nossa capacidade de processar números e lógica e de, com isso, criar tanto excesso, tanto material? A nossa capacidade de injectar no mundo necessidades de que, em boa verdade, não necessitamos assim tanto? E de, com isso, injectarmos também a ânsia e a busca desenfreada por felicidade por via dessas "necessidades" e por via de as mostrar ao mundo, em ostentação plena, a troco de Gostos e Partilhas? Será mesmo este o sinónimo de evolução...?
Esquecemo-nos de que viemos a este mundo sem nada e que dele sairemos sem nada também. E, no entanto, perdemos todos os segundos da nossa hora e todas as horas do nosso dia a lutar por "aquela coisa" que nos fará realmente felizes e a discutir por "aquele problema" que, reforço encarecidamente, não levaremos desta vida.
Esquecemo-nos da nossa essência mais básica. Esquecemo-nos do afecto; da capacidade humana de nos ligarmos emocionalmente com todos os outros seres iguais a nós em tudo. Esquecemo-nos do amor e, pior, envergonhámo-nos da palavra "amor" e fizemos o exercício de a esquecer em nós, porque alguém nos fez acreditar que amar é ser-se frágil. Porque alguém nos fez acreditar que o amor é um sentimento, uma emoção; que o amor é dependência e ser dependente é inadmissível nos dias que correm.
E se eu tentasse explicar-te que amor que é amor não é um sentimento, mas sim um comportamento? Que é, em comportamento, a fusão de tudo aquilo que, enquanto Humanos, temos de melhor? Que é altruísmo, que é respeito, que é carinho, que é bondade, que é generosidade, que é paciência? Que é servir? E que, enquanto comportamento, advém puramente de uma escolha, de uma decisão? O outro antes do eu?
Para mim é esta capacidade de escolher o amor o nosso maior trunfo como Seres Humanos. Essa capacidade de fazer o dia de alguém um pouco melhor em cada pequeno gesto, em cada palavra, em cada sorriso e em cada abraço. Essa capacidade de contagiar positivamente a energia de quem nos rodeia e de, aos poucos, contagiar a energia do mundo. Essa capacidade de tornar o mundo um lugar melhor e sobretudo mais Humano. Mais frágil, mas mais terno e mais alegre.
Mas nós esquecemo-nos e virámos ego. Virámos Eu, em vez de Eles e em vez de Nós, desde o momento em que abrimos os olhos e pomos os pés no chão pela manhã, decididos a ser o próximo herói da História. Mas fará sentido querer ser o herói da História se não formos antes o herói da nossa família? O herói dos nossos pais, dos nossos irmãos e dos nossos filhos...?
Um pequeno gesto de generosidade, de amor, pode fazer tremer o mundo de alguém. E não há melhor sensação no mundo do que essa. Talvez valha a pena pensar um pouco nisso, na próxima consulta entre Facebook e Instagram, antes que seja tarde de mais.
Olha em teu redor.
Como foi que chegámos aqui? Virámos Licenciados, Mestres e Doutores. Tornámo-nos especialistas das ciências, da Matemática, da Contabilidade e da Tecnologia, e desenvolvemos e utilizámos o nosso mais apurado intelecto para construir o mundo de hoje. Criámos o topo-de-gama em tudo, em todas as coisas: nos telefones, nos computadores, nos tablets, nos carros, nas motas, nos aviões, nas roupas, nas organizações, nas start-ups, nas redes sociais...
Vimos virar o mundo de uma era de escassez para uma era de abundância (à parte, é claro, das regiões desfavorecidas de que fingimos não nos lembrarmos), onde a dificuldade deixou de se medir em "ter ou não ter", mas em "qual escolher?". Hoje temos tudo. E orgulhamo-nos tanto disso, de empregarmos com tanto sucesso no mundo o nosso intelecto e exímia capacidade de raciocínio, que tanto nos distingue enquanto Seres Humanos.
Mas... A que preço...? Será que aquilo que nos distingue como Humanos é mesmo - e sobretudo só - a nossa capacidade intelectual, a nossa capacidade de processar números e lógica e de, com isso, criar tanto excesso, tanto material? A nossa capacidade de injectar no mundo necessidades de que, em boa verdade, não necessitamos assim tanto? E de, com isso, injectarmos também a ânsia e a busca desenfreada por felicidade por via dessas "necessidades" e por via de as mostrar ao mundo, em ostentação plena, a troco de Gostos e Partilhas? Será mesmo este o sinónimo de evolução...?
Esquecemo-nos de que viemos a este mundo sem nada e que dele sairemos sem nada também. E, no entanto, perdemos todos os segundos da nossa hora e todas as horas do nosso dia a lutar por "aquela coisa" que nos fará realmente felizes e a discutir por "aquele problema" que, reforço encarecidamente, não levaremos desta vida.
Esquecemo-nos da nossa essência mais básica. Esquecemo-nos do afecto; da capacidade humana de nos ligarmos emocionalmente com todos os outros seres iguais a nós em tudo. Esquecemo-nos do amor e, pior, envergonhámo-nos da palavra "amor" e fizemos o exercício de a esquecer em nós, porque alguém nos fez acreditar que amar é ser-se frágil. Porque alguém nos fez acreditar que o amor é um sentimento, uma emoção; que o amor é dependência e ser dependente é inadmissível nos dias que correm.
E se eu tentasse explicar-te que amor que é amor não é um sentimento, mas sim um comportamento? Que é, em comportamento, a fusão de tudo aquilo que, enquanto Humanos, temos de melhor? Que é altruísmo, que é respeito, que é carinho, que é bondade, que é generosidade, que é paciência? Que é servir? E que, enquanto comportamento, advém puramente de uma escolha, de uma decisão? O outro antes do eu?
Para mim é esta capacidade de escolher o amor o nosso maior trunfo como Seres Humanos. Essa capacidade de fazer o dia de alguém um pouco melhor em cada pequeno gesto, em cada palavra, em cada sorriso e em cada abraço. Essa capacidade de contagiar positivamente a energia de quem nos rodeia e de, aos poucos, contagiar a energia do mundo. Essa capacidade de tornar o mundo um lugar melhor e sobretudo mais Humano. Mais frágil, mas mais terno e mais alegre.
Mas nós esquecemo-nos e virámos ego. Virámos Eu, em vez de Eles e em vez de Nós, desde o momento em que abrimos os olhos e pomos os pés no chão pela manhã, decididos a ser o próximo herói da História. Mas fará sentido querer ser o herói da História se não formos antes o herói da nossa família? O herói dos nossos pais, dos nossos irmãos e dos nossos filhos...?
Um pequeno gesto de generosidade, de amor, pode fazer tremer o mundo de alguém. E não há melhor sensação no mundo do que essa. Talvez valha a pena pensar um pouco nisso, na próxima consulta entre Facebook e Instagram, antes que seja tarde de mais.
quinta-feira, janeiro 17, 2019
Fénix
Estupor.
Meu pequeno estupor.
Pensei ter deixado bem claro que eu preciso de plano e de ordem, em alinhamento perfeito, na minha Vida. Que não reajo particularmente bem a surpresas e alterações de última hora. E achei que tínhamos combinado, a bem da tua integridade física, não pregar partidas um ao outro. Não assim, sem aviso prévio. Muito menos um desvio tão fora de rota.
Já cá não estás para te agredir por me deixares só e entregue a mim mesma, naquela agressão que pouco mais te fazia do que cócegas, e, no entanto, não consigo ficar sequer aborrecida contigo.
Fizeste-me sonhar em vida. Meu pequeno estupor. Fizeste-me desenterrar e reacender todos os sonhos inocentes de criança que trazia em mim e que até então a Vida não me deixara sonhar. Vieste ser faísca, ser rastilho e ser da minha cinza fénix.
Foste borboletas no meu estômago. Cativaste-me no teu olhar e, mais ainda, na tua alma pura. Prendeste-me nos teus braços e deixaste-me divagar liberta na leveza do meu ser. Foste amor de Verão, primeiro, e amor de filme de Hollywood, daqueles que não existem nunca, todos os dias depois desse.
Foste dança na chuva. Foste mar e pele salgada. Foste noites de céu estrelado. Foste gestos aleatórios de bondade. Foste o meu lado de fora do passeio nos passeios pela calçada. Foste chocolate incógnito em cima da minha cama quando o meu mundo virou do avesso. Foste boleia até à porta de casa porque uma donzela não deve ser deixada na rua sozinha depois de o sol se pôr no horizonte. Foste pinhas e lenha e lareira e chocolate quente no inverno. Foste quilómetros de estrada - terra, céu e mar - entre nós para roubar de mim um sorriso; por vezes um beijo não autorizado.
Foste ordem no meu caos. Foste porto de abrigo na minha insegurança. Foste harmonia na minha impulsividade. Foste ousadia na minha disciplina. Foste piano em eco no meu silêncio. Foste doce na minha amargura e boa disposição no meu mau feitio. Foste calor no meu peito e, acima de tudo, foste Luz em mim e meu caminho, quando toda eu me sentia trevas e noite fria.
Foste paz no meu coração.
E hoje soube que és filho no meu ventre.
Meu pequeno estupor.
Pensei ter deixado bem claro que eu preciso de plano e de ordem, em alinhamento perfeito, na minha Vida. Que não reajo particularmente bem a surpresas e alterações de última hora. E achei que tínhamos combinado, a bem da tua integridade física, não pregar partidas um ao outro. Não assim, sem aviso prévio. Muito menos um desvio tão fora de rota.
Já cá não estás para te agredir por me deixares só e entregue a mim mesma, naquela agressão que pouco mais te fazia do que cócegas, e, no entanto, não consigo ficar sequer aborrecida contigo.
Fizeste-me sonhar em vida. Meu pequeno estupor. Fizeste-me desenterrar e reacender todos os sonhos inocentes de criança que trazia em mim e que até então a Vida não me deixara sonhar. Vieste ser faísca, ser rastilho e ser da minha cinza fénix.
Foste borboletas no meu estômago. Cativaste-me no teu olhar e, mais ainda, na tua alma pura. Prendeste-me nos teus braços e deixaste-me divagar liberta na leveza do meu ser. Foste amor de Verão, primeiro, e amor de filme de Hollywood, daqueles que não existem nunca, todos os dias depois desse.
Foste dança na chuva. Foste mar e pele salgada. Foste noites de céu estrelado. Foste gestos aleatórios de bondade. Foste o meu lado de fora do passeio nos passeios pela calçada. Foste chocolate incógnito em cima da minha cama quando o meu mundo virou do avesso. Foste boleia até à porta de casa porque uma donzela não deve ser deixada na rua sozinha depois de o sol se pôr no horizonte. Foste pinhas e lenha e lareira e chocolate quente no inverno. Foste quilómetros de estrada - terra, céu e mar - entre nós para roubar de mim um sorriso; por vezes um beijo não autorizado.
Foste ordem no meu caos. Foste porto de abrigo na minha insegurança. Foste harmonia na minha impulsividade. Foste ousadia na minha disciplina. Foste piano em eco no meu silêncio. Foste doce na minha amargura e boa disposição no meu mau feitio. Foste calor no meu peito e, acima de tudo, foste Luz em mim e meu caminho, quando toda eu me sentia trevas e noite fria.
Foste paz no meu coração.
E hoje soube que és filho no meu ventre.
quinta-feira, dezembro 06, 2018
Som do Coração
O meu coração quis ir contigo desde o primeiro dia em que te viu.
O meu coração quis ir contigo e não voltar. Quis ficar. Quis viajar em ti e viajar contigo. Quis rir e quis chorar: chorar de chorar e chorar de rir. Quis sorrir. Quis ser feliz. Quis fazer-te feliz. Quis guardar-te todos os dias e ter a certeza de que eras a mais feliz entre todas, porque é a tua felicidade o valor que fala mais alto.
O meu coração sonhou e quis sonhar. Quis completar-te. Quis tornar-se teu. Quis tornar-te dele. Quis ser abraço, quis ser casa. Quis ser carro, quis ser mesa, quis ser cama. Quis ser porto de abrigo e ter um porto de abrigo em ti. Quis sentar-se contigo à volta da fogueira a tocar guitarra e cantar juntos. Quis ser música. Quis ter conversas profundas. Quis rir mais. Quis contar e ouvir histórias. Quis ser história conjunta. Quis dançar à chuva. Quis esconder-se contigo debaixo de cobertores no inverno. Quis preparar-te o chá quente. Quis ver as luzes de Natal nas ruas. Quis montar a nossa árvore de Natal. Quis sentir contigo o verão na pele, o sal na cara e a areia nos pés. Quis piscina e mar pela noite. Quis serões e cartadas no alpendre.
O meu coração quis olhar-te no coração e pentear-te o cabelo para trás das orelhas. Quis dizer-te que és linda todos os dias, quando acordas e enquanto dormes. Quis a tua voz, o teu sussurro, no ouvido. Quis beijar-te a testa, o nariz, os lábios e o pescoço. Quis amar-te. Quis ser amado. Quis dar-te um lar. Quis dar-te um casamento. Quis dar-te um filho e depois outro. Quis beijar-te a barriga grávida. Quis sentir os primeiros pontapés e todos os outros. Quis segurar-te a mão durante o parto, com a certeza de que desmaiaria no processo. Quis passeios de mão dada. Quis o calor do teu sorriso. Quis ser o brilho dos teus olhos.
Quis envelhecer contigo. Quis partilhar todas as moradas, incluindo a última, contigo.
Mas tu disseste-lhe que não.
O meu coração quis ir contigo e não voltar. Quis ficar. Quis viajar em ti e viajar contigo. Quis rir e quis chorar: chorar de chorar e chorar de rir. Quis sorrir. Quis ser feliz. Quis fazer-te feliz. Quis guardar-te todos os dias e ter a certeza de que eras a mais feliz entre todas, porque é a tua felicidade o valor que fala mais alto.
O meu coração sonhou e quis sonhar. Quis completar-te. Quis tornar-se teu. Quis tornar-te dele. Quis ser abraço, quis ser casa. Quis ser carro, quis ser mesa, quis ser cama. Quis ser porto de abrigo e ter um porto de abrigo em ti. Quis sentar-se contigo à volta da fogueira a tocar guitarra e cantar juntos. Quis ser música. Quis ter conversas profundas. Quis rir mais. Quis contar e ouvir histórias. Quis ser história conjunta. Quis dançar à chuva. Quis esconder-se contigo debaixo de cobertores no inverno. Quis preparar-te o chá quente. Quis ver as luzes de Natal nas ruas. Quis montar a nossa árvore de Natal. Quis sentir contigo o verão na pele, o sal na cara e a areia nos pés. Quis piscina e mar pela noite. Quis serões e cartadas no alpendre.
O meu coração quis olhar-te no coração e pentear-te o cabelo para trás das orelhas. Quis dizer-te que és linda todos os dias, quando acordas e enquanto dormes. Quis a tua voz, o teu sussurro, no ouvido. Quis beijar-te a testa, o nariz, os lábios e o pescoço. Quis amar-te. Quis ser amado. Quis dar-te um lar. Quis dar-te um casamento. Quis dar-te um filho e depois outro. Quis beijar-te a barriga grávida. Quis sentir os primeiros pontapés e todos os outros. Quis segurar-te a mão durante o parto, com a certeza de que desmaiaria no processo. Quis passeios de mão dada. Quis o calor do teu sorriso. Quis ser o brilho dos teus olhos.
Quis envelhecer contigo. Quis partilhar todas as moradas, incluindo a última, contigo.
Mas tu disseste-lhe que não.
domingo, novembro 04, 2018
Geometria de Avó
À medida que fui crescendo fui aprendendo a apaixonar-me por alguns temas da Vida. Um deles é o da forma curiosa como funciona o nosso cérebro. E, em particular, a forma curiosa como ele gera, gere e processa os sonhos. As causas, as formas e os efeitos.
Hoje sonhei de novo com a minha Avó. E é engraçado como vou sonhando com ela de tempos em tempos e como vou, a cada sonho, retirando para mim lições de Vida cada vez mais significativas e mais plenas.
Nunca te contei, mas apesar de professora de Desenho, a minha Avó ajudava-me muito nos meus primeiros contactos com a Matemática, sobretudo, claro, na parte da Geometria. E, mais tarde, nas forças da Física. Foi com uma dessas sessões de estudo acompanhado que sonhei esta noite.
Por alguma razão, desta vez não consigo recordar-me da envolvente lá de fora, para lá das paredes da cabana dela e para lá do alpendre. Não sei se foi num dia soalheiro, daqueles que pintava o céu no horizonte de um tom dourado, ou num dia de chuva rigorosa de inverno. Fiquei retido na mensagem das palavras dela. Na melodia que elas me cantavam, uma sílaba de cada vez.
Com exemplos práticos, perceptíveis para uma criança, ela ensinou-me a caracterizar um vector, de acordo com as suas três dimensões: direcção, sentido e intensidade. Ilustrava-mos por desenhos, naturalmente, em que uma das partes era um esboço dela, na qualidade de minha Avó - já curvada sobre a bengala dela, com os óculos meia-lua e o cabelo meio desalinhado e apanhado num carrapito -, e a outra era eu, num esboço com metade do tamanho do dela (era a escala real, porque apesar de Gigante no coração ela era pequenina, até para mim), com as bochechas bolachudas e rosadas.
No rascunho dela, entre nós dois, desenhava aquilo que para mim eram apenas umas setas. E explicava-me que as setas traduziam um movimento. Por exemplo o movimento descrito pela mão dela quando me oferecia em mãos um "chocolate da vaca" (não me perguntes, sempre foi assim que em casa lhes chamávamos, pela vaquinha que vinha desenhada no rótulo). A direcção era entre nós, a linha invisível que nos unia. O sentido era dela para mim. A intensidade não percebi bem.
Então ela explicou-me que se relacionava com a força do movimento ou, de novo em termos práticos, com a sua velocidade. Apercebi-me pela expressão no seu rosto de que ela se debatia internamente com uma forma fácil de me fazer compreender o conceito. Uns segundos depois, ela debruçou-se sobre o desenho, apagou as setas que nos separavam e no seu lugar desenhou uma mesa. Debaixo de cada um de nós uma cadeira. Em cima da mesa, do meu lado, uma bola do tamanho do meu punho.
"Se eu te pedir para me passares a bola com cuidado, a intensidade deste vector, que descreve o movimento da bola do teu lado da mesa para o meu... ", desenhou uma seta minúscula a azul enquanto falava, saindo da bola, "... vai ser pequena. Vais fazer pouca força na bola porque eu te pedi para teres cuidado. Entendes?"
Lembro-me de acenar cautelosamente.
"Mas se, por outro lado, eu te disser para me passares a bola com a máxima força que conseguires, tu vais bater na bola. A palmada mais valente que já deste! E ela vem a voar para mim com toda a velocidade" e desenhou uma segunda seta, desta vez a vermelho, com talvez o triplo do tamanho da anterior. E o meu mundo ficou mais claro.
A partir daqui a conversa ficou mais difusa para os meus 11 anos da altura. E manteve-se assim durante os 15 anos que se seguiram, até à noite de hoje.
"Os vectores são uma das coisas mais importantes do teu dia-a-dia e, por isso, é importante que os compreendas bem. Queiras ou não, vais criar vectores com todas as pessoas que conheceres, em todas as direcções. Entre ti e cada uma delas. Uns mais importantes, outros menos; uns mais intensos e outros menos. E com diferentes sentidos também. Uns unilaterais, de ti para eles, de dentro para fora; outros unilaterais, deles para ti, de fora para dentro. Uns bilaterais, de ti para eles e deles para ti, em comunhão. Outros sem sentido."
Ajeitou os óculos no nariz e sorriu-me com aquele sorriso terno, doce.
"A grande maioria desses vectores não vais poder controlar, não na totalidade, pelo menos: as direcções vão existir sempre, enquanto linha invisível que te liga a cada pessoa no Mundo. Mas podes controlar o sentido delas, no que te diz respeito. Não podes controlar o que vem de fora para dentro, é claro, mas podes controlar o que vai de dentro para fora, na bondade, na gentileza e no amor. E podes - e deves - sobretudo controlar a intensidade desse sentido de dentro para fora, que é o sentido mais importante da Vida, naquilo que dás de ti a cada dia, nessa bondade, nessa gentileza, nesse amor. Em cada palavra e em cada gesto. E não tenhas nunca medo de os dar em demasia, em excesso, porque de excesso de bondade e gentileza e amor podem apenas resultar coisas maravilhosas.
E quanto mais de ti deres ao Universo, melhor ele cuidará de ti, porque para cada força, para cada acção, haverá a seu tempo uma reacção. Mas isso já é Física e portanto fica para outro dia."
Hoje sonhei de novo com a minha Avó. E é engraçado como vou sonhando com ela de tempos em tempos e como vou, a cada sonho, retirando para mim lições de Vida cada vez mais significativas e mais plenas.
Nunca te contei, mas apesar de professora de Desenho, a minha Avó ajudava-me muito nos meus primeiros contactos com a Matemática, sobretudo, claro, na parte da Geometria. E, mais tarde, nas forças da Física. Foi com uma dessas sessões de estudo acompanhado que sonhei esta noite.
Por alguma razão, desta vez não consigo recordar-me da envolvente lá de fora, para lá das paredes da cabana dela e para lá do alpendre. Não sei se foi num dia soalheiro, daqueles que pintava o céu no horizonte de um tom dourado, ou num dia de chuva rigorosa de inverno. Fiquei retido na mensagem das palavras dela. Na melodia que elas me cantavam, uma sílaba de cada vez.
Com exemplos práticos, perceptíveis para uma criança, ela ensinou-me a caracterizar um vector, de acordo com as suas três dimensões: direcção, sentido e intensidade. Ilustrava-mos por desenhos, naturalmente, em que uma das partes era um esboço dela, na qualidade de minha Avó - já curvada sobre a bengala dela, com os óculos meia-lua e o cabelo meio desalinhado e apanhado num carrapito -, e a outra era eu, num esboço com metade do tamanho do dela (era a escala real, porque apesar de Gigante no coração ela era pequenina, até para mim), com as bochechas bolachudas e rosadas.
No rascunho dela, entre nós dois, desenhava aquilo que para mim eram apenas umas setas. E explicava-me que as setas traduziam um movimento. Por exemplo o movimento descrito pela mão dela quando me oferecia em mãos um "chocolate da vaca" (não me perguntes, sempre foi assim que em casa lhes chamávamos, pela vaquinha que vinha desenhada no rótulo). A direcção era entre nós, a linha invisível que nos unia. O sentido era dela para mim. A intensidade não percebi bem.
Então ela explicou-me que se relacionava com a força do movimento ou, de novo em termos práticos, com a sua velocidade. Apercebi-me pela expressão no seu rosto de que ela se debatia internamente com uma forma fácil de me fazer compreender o conceito. Uns segundos depois, ela debruçou-se sobre o desenho, apagou as setas que nos separavam e no seu lugar desenhou uma mesa. Debaixo de cada um de nós uma cadeira. Em cima da mesa, do meu lado, uma bola do tamanho do meu punho.
"Se eu te pedir para me passares a bola com cuidado, a intensidade deste vector, que descreve o movimento da bola do teu lado da mesa para o meu... ", desenhou uma seta minúscula a azul enquanto falava, saindo da bola, "... vai ser pequena. Vais fazer pouca força na bola porque eu te pedi para teres cuidado. Entendes?"
Lembro-me de acenar cautelosamente.
"Mas se, por outro lado, eu te disser para me passares a bola com a máxima força que conseguires, tu vais bater na bola. A palmada mais valente que já deste! E ela vem a voar para mim com toda a velocidade" e desenhou uma segunda seta, desta vez a vermelho, com talvez o triplo do tamanho da anterior. E o meu mundo ficou mais claro.
A partir daqui a conversa ficou mais difusa para os meus 11 anos da altura. E manteve-se assim durante os 15 anos que se seguiram, até à noite de hoje.
"Os vectores são uma das coisas mais importantes do teu dia-a-dia e, por isso, é importante que os compreendas bem. Queiras ou não, vais criar vectores com todas as pessoas que conheceres, em todas as direcções. Entre ti e cada uma delas. Uns mais importantes, outros menos; uns mais intensos e outros menos. E com diferentes sentidos também. Uns unilaterais, de ti para eles, de dentro para fora; outros unilaterais, deles para ti, de fora para dentro. Uns bilaterais, de ti para eles e deles para ti, em comunhão. Outros sem sentido."
Ajeitou os óculos no nariz e sorriu-me com aquele sorriso terno, doce.
"A grande maioria desses vectores não vais poder controlar, não na totalidade, pelo menos: as direcções vão existir sempre, enquanto linha invisível que te liga a cada pessoa no Mundo. Mas podes controlar o sentido delas, no que te diz respeito. Não podes controlar o que vem de fora para dentro, é claro, mas podes controlar o que vai de dentro para fora, na bondade, na gentileza e no amor. E podes - e deves - sobretudo controlar a intensidade desse sentido de dentro para fora, que é o sentido mais importante da Vida, naquilo que dás de ti a cada dia, nessa bondade, nessa gentileza, nesse amor. Em cada palavra e em cada gesto. E não tenhas nunca medo de os dar em demasia, em excesso, porque de excesso de bondade e gentileza e amor podem apenas resultar coisas maravilhosas.
E quanto mais de ti deres ao Universo, melhor ele cuidará de ti, porque para cada força, para cada acção, haverá a seu tempo uma reacção. Mas isso já é Física e portanto fica para outro dia."
terça-feira, outubro 16, 2018
Début
Vives em mim num canto, numa parte de mim que sozinha eu não sei identificar ou encontrar, por muito que procure.
Hoje reencontrei-te, para minha felicidade. Reencontrei-te quando pela madrugada recomeçou a chover, depois do calor, depois da seca, depois do Verão que não quis terminar. Reencontrei-te nos primeiros pingos de chuva contra a janela, a acordarem-me lenta e docemente, como costumavas fazer com os teus beijos suaves pela manhã, para me puxares de mansinho dos meus sonhos para a luz de um novo dia.
Ecoou-me na cabeça o som do teu piano, a Début a soar ao longe, directamente da sala, à distância da lembrança e da saudade. Soube em mim a falta que me faz o teu calor na cama agora fria. A falta que faz a esta casa e a este coração a tua música e o teu amor por todas as coisas, que eu nunca soube explicar. E o compasso encantador da Début prolonga-se casa fora, arrastando-se demoradamente pelos confins da minha memória, e leva-me ao som das teclas e da chuva numa viagem por nós.
E eu viajo em mim, pela história que me ajudaste a escrever, letra por letra, palavra por palavra, desde a primeira vez que demos a mão e entrelaçamos os dedos e os sonhos. Desde o primeiro beijo tímido, inseguro. O primeiro passeio à beira-mar. E o segundo. E depois todos os outros que foram felizmente virando rotina; a minha rotina preferida. O passeio de balão lá do outro lado do mundo, de onde, no silêncio lá de cima, vimos como era grande o mundo e por isso como era grande a sorte de nos termos encontrado um ao outro.
Sinto escorregar uma lágrima e oiço-a pingar silenciosamente no chão da nossa casa. Mas sinto mais ainda um sorriso, magoado por não poder ter-te mais, mas eternamente grato por ter tido, durante todos estes anos, durante todos esses dias, durante todas essas horas, essa sorte. Foste, és e serás sempre música em mim. A minha música. O ritmo da minha dança. A vida e cor e brilho de um mundo que tentavas fazer melhor em cada instante, a cada fôlego teu. E, por isso, não choro apenas. Não choro só. Sorrio muito e sorrio de cada vez um pouco mais, sempre que, por sorte do meu dia, te reencontro.
Porque vives em mim num canto, numa parte de mim que sozinha eu não sei identificar ou encontrar, por muito que procure. Mas saber que te tenho em mim é tudo de que preciso; é tudo quanto baste.
Hoje reencontrei-te, para minha felicidade. Reencontrei-te quando pela madrugada recomeçou a chover, depois do calor, depois da seca, depois do Verão que não quis terminar. Reencontrei-te nos primeiros pingos de chuva contra a janela, a acordarem-me lenta e docemente, como costumavas fazer com os teus beijos suaves pela manhã, para me puxares de mansinho dos meus sonhos para a luz de um novo dia.
Ecoou-me na cabeça o som do teu piano, a Début a soar ao longe, directamente da sala, à distância da lembrança e da saudade. Soube em mim a falta que me faz o teu calor na cama agora fria. A falta que faz a esta casa e a este coração a tua música e o teu amor por todas as coisas, que eu nunca soube explicar. E o compasso encantador da Début prolonga-se casa fora, arrastando-se demoradamente pelos confins da minha memória, e leva-me ao som das teclas e da chuva numa viagem por nós.
E eu viajo em mim, pela história que me ajudaste a escrever, letra por letra, palavra por palavra, desde a primeira vez que demos a mão e entrelaçamos os dedos e os sonhos. Desde o primeiro beijo tímido, inseguro. O primeiro passeio à beira-mar. E o segundo. E depois todos os outros que foram felizmente virando rotina; a minha rotina preferida. O passeio de balão lá do outro lado do mundo, de onde, no silêncio lá de cima, vimos como era grande o mundo e por isso como era grande a sorte de nos termos encontrado um ao outro.
Sinto escorregar uma lágrima e oiço-a pingar silenciosamente no chão da nossa casa. Mas sinto mais ainda um sorriso, magoado por não poder ter-te mais, mas eternamente grato por ter tido, durante todos estes anos, durante todos esses dias, durante todas essas horas, essa sorte. Foste, és e serás sempre música em mim. A minha música. O ritmo da minha dança. A vida e cor e brilho de um mundo que tentavas fazer melhor em cada instante, a cada fôlego teu. E, por isso, não choro apenas. Não choro só. Sorrio muito e sorrio de cada vez um pouco mais, sempre que, por sorte do meu dia, te reencontro.
Porque vives em mim num canto, numa parte de mim que sozinha eu não sei identificar ou encontrar, por muito que procure. Mas saber que te tenho em mim é tudo de que preciso; é tudo quanto baste.
segunda-feira, agosto 27, 2018
Sem V de Volta
"Home is where the heart is."
"Casa é onde o coração está", diz a frase feita. Mas o problema das frases feitas é não terem um traço teu, pessoal, íntimo.
Quero partilhar um segredo contigo. Quero discordar, quero mudar-te um pouco a perspectiva das coisas e, quem sabe, fazer-te pensar. Em ti, para dentro de ti. Porque para mim - e para ti, se não me atraiçoa a intuição -, casa não é onde o coração está. Casa é onde o coração está... em paz.
Acabei de aterrar em Lisboa.
Acabei de arrumar no meu coração mais uma viagem, mais um salto a outra parte do mundo e a outro recanto de mim mesmo. Acabei de guardar um novo álbum de memórias com amigos de longa data - e outros de data mais curta -, e este vem tão cheio: de viagens estrada fora, de cantorias e desafinos, de gargalhadas, de história, de cultura, de gastronomia, de música, de fotografia e até de magia e sonhos de criança.
Acabei de chegar a casa. E, no entanto e no fim de tudo, acabei de não a sentir casa.
Porque casa só é casa se nela o teu coração está em paz. E o meu, por alguma razão, não consegue encontrá-la aqui. Não me perguntes porquê; não saberei responder-te em verdade. É como se a paz do meu coração andasse algures por esse mundo fora, à espera de ser encontrada, a escapar-lhe malandramente por entre os dedos. Como se eu não pertencesse aqui, ou só aqui pelo menos, e precisasse de ir em busca das outras partes de mim, partes que nem conheço ainda, espalhadas por aí ao vento.
Talvez isso justifique, sem eu saber, este impulso incontrolável de querer sair e sair e sair, de querer ir sem nunca saber se quero voltar, de querer explorar o mundo e ver tudo o que houver para ver com os meus próprios olhos, de querer sentir tudo em primeira mão, à flor da pele, desde o Tejo na pátria-mãe, ao frio de Nova Iorque, ao cinzento dos céus de Inglaterra, à neve na Irlanda, à História nas paredes da Alemanha, ao calor intenso de África, à transparência do Mar Adriático na Croácia, ao aroma do incenso nas ruas da Indonésia... Esta sede insaciável de querer trazer comigo um pouco de todo mundo e deixar nele um pouco de mim.
E, assim sem querer, sem rascunho prévio enquanto escrevo, acabo de recordar Exupéry e o seu Principezinho, que por sua vez me lembram forçosamente de ti, na ideia de que "Aqueles que passam por nós não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós." Encaixa-me no coração como uma luva.
Então talvez seja esse o jogo a que ando a jogar, por aqui e por ali, de avião e barco e comboio e autocarro, para trás e para diante, pelas ruas desse mundo. À procura de um equilíbrio, o meu equilíbrio, em busca da minha paz, da minha casa.
À descoberta da medida certa entre aquilo que ganho e aquilo que deixo de mim.
"Casa é onde o coração está", diz a frase feita. Mas o problema das frases feitas é não terem um traço teu, pessoal, íntimo.
Quero partilhar um segredo contigo. Quero discordar, quero mudar-te um pouco a perspectiva das coisas e, quem sabe, fazer-te pensar. Em ti, para dentro de ti. Porque para mim - e para ti, se não me atraiçoa a intuição -, casa não é onde o coração está. Casa é onde o coração está... em paz.
Acabei de aterrar em Lisboa.
Acabei de arrumar no meu coração mais uma viagem, mais um salto a outra parte do mundo e a outro recanto de mim mesmo. Acabei de guardar um novo álbum de memórias com amigos de longa data - e outros de data mais curta -, e este vem tão cheio: de viagens estrada fora, de cantorias e desafinos, de gargalhadas, de história, de cultura, de gastronomia, de música, de fotografia e até de magia e sonhos de criança.
Acabei de chegar a casa. E, no entanto e no fim de tudo, acabei de não a sentir casa.
Porque casa só é casa se nela o teu coração está em paz. E o meu, por alguma razão, não consegue encontrá-la aqui. Não me perguntes porquê; não saberei responder-te em verdade. É como se a paz do meu coração andasse algures por esse mundo fora, à espera de ser encontrada, a escapar-lhe malandramente por entre os dedos. Como se eu não pertencesse aqui, ou só aqui pelo menos, e precisasse de ir em busca das outras partes de mim, partes que nem conheço ainda, espalhadas por aí ao vento.
Talvez isso justifique, sem eu saber, este impulso incontrolável de querer sair e sair e sair, de querer ir sem nunca saber se quero voltar, de querer explorar o mundo e ver tudo o que houver para ver com os meus próprios olhos, de querer sentir tudo em primeira mão, à flor da pele, desde o Tejo na pátria-mãe, ao frio de Nova Iorque, ao cinzento dos céus de Inglaterra, à neve na Irlanda, à História nas paredes da Alemanha, ao calor intenso de África, à transparência do Mar Adriático na Croácia, ao aroma do incenso nas ruas da Indonésia... Esta sede insaciável de querer trazer comigo um pouco de todo mundo e deixar nele um pouco de mim.
E, assim sem querer, sem rascunho prévio enquanto escrevo, acabo de recordar Exupéry e o seu Principezinho, que por sua vez me lembram forçosamente de ti, na ideia de que "Aqueles que passam por nós não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós." Encaixa-me no coração como uma luva.
Então talvez seja esse o jogo a que ando a jogar, por aqui e por ali, de avião e barco e comboio e autocarro, para trás e para diante, pelas ruas desse mundo. À procura de um equilíbrio, o meu equilíbrio, em busca da minha paz, da minha casa.
À descoberta da medida certa entre aquilo que ganho e aquilo que deixo de mim.
segunda-feira, agosto 20, 2018
Vela em Dia de Chuva
(Não sei quando comecei a tratar-te por Tu. Tenho escrito tanto sobre ti, sempre Tu, e só pensei nisso há pouco quando me voltaste de novo à mente. Agora já vou tarde, mas espero que me perdoes.)
Está a trovejar. Chove forte contra as vidraças das janelas como quando eu era pequeno e tu eras a minha companhia, a luz na minha noite. Fiquei sem electricidade de repente. E isso atirou-me de volta para ti, para a tua Vida, para o teu conforto que tanto me sabia a casa. Atirou-me, em concreto, para o dia da pior tempestade que alguma vez assolou a nossa terra; os nossos campos cultivados, o bosque lá ao fundo e a nossa humilde casinha. Lembras-te?
Voltei a sentir-me pequeno na minha pequenez, sentado no chão abraçado aos joelhos, enquanto a chuva e o vento fustigavam as nossas paredes e os trovões faziam tremer e rugir o chão de madeira. Recordei a luz da lareira ao canto, eu ao meio da sala brincando, tu na mesa logo ao lado, a corrigir provas de Desenho dos teus alunos, quando lá fora ainda havia apenas chuva. Recordei o primeiro relâmpago, fugaz fulminante, irrompendo abruptamente pelas janelas e arrancando-me do meu mundo só meu. E depois o primeiro trovão troando tão perto, ensurdecedor a toda a volta, entrando em mim por todos os meus poros e trocando o passo ao ritmo do meu coração miúdo.
Ficámos sem luz. Abateu-se uma escuridão súbita, afastada gradualmente tão somente pelas chamas da lareira. Comecei a chorar, tenho a certeza, embora não seja capaz de recordar esse detalhe. Recordo, contudo, que não tardaste a pousar o teu lápis e a levantares-te, não para me aconchegares no imediato, mas para ires recolher todas as velas que viviam espalhadas pela casa e as trazeres de volta à sala. No meu pranto, recordo o teu vulto, sombra recortada na lareira, andando para trás e para diante, distribuindo estrategicamente todas as velas em redor. Depois, um clique seco no ar e o teu rosto surgiu, por detrás dos teus óculos meia-lua, iluminado pelo fósforo que acabaras de acender para dar fogo às velas. E uma a uma elas foram acendendo e dançando à minha volta, afastando a pouco e pouco os meus anseios. Quando acabaste, e quando em toda a sala havia luz, não voltaste para a tua mesa e para as tuas provas de Desenho. Vieste, antes, para junto de mim, sentar-te no chão a meu lado, de pernas cruzadas à chinês, como mero colega de escola meu. De igual para igual, mas com mais umas ruguinhas e umas histórias para contar.
(Era sobretudo isso que tu eras para mim, para além de Avó e de professora de Desenho e de pessoa que tudo sobre a Vida sabia. Eras uma contadora de histórias. E como eu gostava de ficar enfeitiçado pelas tuas palavras...!)
A chuva e os trovões ribombavam lá fora e o chão continuava tremendo, mas a tua voz saía segura e doce, serena, como uma melodia que eu adorava ouvir. Os meus olhos colaram-se aos teus, nos tons alaranjados que a lareira e as velas lhes conferiam, e o meu coração abrandou. Colocaste o braço sobre os meus ombros e encostaste-me a ti. Eu encolhia-me e gemia a cada trovão.
"- Às vezes, Tomás, a luz apaga-se."
Foi assim que começaste.
"Apaga-se a luz de nossa casa, a nossa e a dos outros. E apaga-se às vezes porque os dias não são todos iguais e nem sempre faz sol. Porque por vezes há nuvens e há dias cinzentos. Umas vezes faz frio. Outras vezes chove. E outras vezes troveja com tal intensidade que o nosso tecto ameaça desabar e o nosso chão quebrar e ceder sob os nossos pés. Faz parte da Vida. E é normal, ao início, termos medo e ficarmos inseguros. Uma vez e outra e outra a seguir. E não há vergonha nenhuma em mostrar ao mundo que temos medo e que somos inseguros e somos frágeis. Somos pessoas, afinal; somos humanos, e é o teu medo e a tua fragilidade que me dizem que tens um bom coração e que um dia vais também tu saber contar esta história a outrem."
Deixei de ouvir a chuva e os trovões. Sabia que estavam lá ainda, cercando-nos, mas deixei de os escutar. A tua voz entrava em mim a cada palavra e tornava-os mudos.
"Além disso, é também preciso que haja sombra para sabermos apreciar a luz. E é preciso que haja sombra para conhecermos em nós o que não se consegue ver à luz, porque nós somos feitos não só do que é visível, como também do que não se vê. O mais importante, depois de tudo isso, é aprendermos a acender de novo uma luz, por trémula que seja, como uma vela numa noite de chuva e tempestade, para podermos ver onde assentar o pé no nosso próximo passo e, sobretudo, para podermos mostrar aos outros o caminho. Temos de entender que nem todas as pessoas têm velas em casa e que às vezes somos nós a sua única salvação nos dias em que a luz se apaga. Como no dia de hoje. Por isso, vamos os dois ser fortes e aprender a ser uma vela. Que me dizes?"
Recordo a coragem que me brotava no peito ao som da tua voz e a firmeza com que te observava, nos tons laranja vacilantes, seguro de que podia levantar-me naquele instante e ousar ser todas as velas da sala.
É o mesmo olhar com que fito agora a tua fotografia, enquanto acendo a vela ao teu lado e, não escondendo numa lágrima a fragilidade pela tua ausência, me preparo para ser todas as velas da nossa sala e contar esta tua história aos teus bisnetos que agora choram.
Um beijo, com saudade
Está a trovejar. Chove forte contra as vidraças das janelas como quando eu era pequeno e tu eras a minha companhia, a luz na minha noite. Fiquei sem electricidade de repente. E isso atirou-me de volta para ti, para a tua Vida, para o teu conforto que tanto me sabia a casa. Atirou-me, em concreto, para o dia da pior tempestade que alguma vez assolou a nossa terra; os nossos campos cultivados, o bosque lá ao fundo e a nossa humilde casinha. Lembras-te?
Voltei a sentir-me pequeno na minha pequenez, sentado no chão abraçado aos joelhos, enquanto a chuva e o vento fustigavam as nossas paredes e os trovões faziam tremer e rugir o chão de madeira. Recordei a luz da lareira ao canto, eu ao meio da sala brincando, tu na mesa logo ao lado, a corrigir provas de Desenho dos teus alunos, quando lá fora ainda havia apenas chuva. Recordei o primeiro relâmpago, fugaz fulminante, irrompendo abruptamente pelas janelas e arrancando-me do meu mundo só meu. E depois o primeiro trovão troando tão perto, ensurdecedor a toda a volta, entrando em mim por todos os meus poros e trocando o passo ao ritmo do meu coração miúdo.
Ficámos sem luz. Abateu-se uma escuridão súbita, afastada gradualmente tão somente pelas chamas da lareira. Comecei a chorar, tenho a certeza, embora não seja capaz de recordar esse detalhe. Recordo, contudo, que não tardaste a pousar o teu lápis e a levantares-te, não para me aconchegares no imediato, mas para ires recolher todas as velas que viviam espalhadas pela casa e as trazeres de volta à sala. No meu pranto, recordo o teu vulto, sombra recortada na lareira, andando para trás e para diante, distribuindo estrategicamente todas as velas em redor. Depois, um clique seco no ar e o teu rosto surgiu, por detrás dos teus óculos meia-lua, iluminado pelo fósforo que acabaras de acender para dar fogo às velas. E uma a uma elas foram acendendo e dançando à minha volta, afastando a pouco e pouco os meus anseios. Quando acabaste, e quando em toda a sala havia luz, não voltaste para a tua mesa e para as tuas provas de Desenho. Vieste, antes, para junto de mim, sentar-te no chão a meu lado, de pernas cruzadas à chinês, como mero colega de escola meu. De igual para igual, mas com mais umas ruguinhas e umas histórias para contar.
(Era sobretudo isso que tu eras para mim, para além de Avó e de professora de Desenho e de pessoa que tudo sobre a Vida sabia. Eras uma contadora de histórias. E como eu gostava de ficar enfeitiçado pelas tuas palavras...!)
A chuva e os trovões ribombavam lá fora e o chão continuava tremendo, mas a tua voz saía segura e doce, serena, como uma melodia que eu adorava ouvir. Os meus olhos colaram-se aos teus, nos tons alaranjados que a lareira e as velas lhes conferiam, e o meu coração abrandou. Colocaste o braço sobre os meus ombros e encostaste-me a ti. Eu encolhia-me e gemia a cada trovão.
"- Às vezes, Tomás, a luz apaga-se."
Foi assim que começaste.
"Apaga-se a luz de nossa casa, a nossa e a dos outros. E apaga-se às vezes porque os dias não são todos iguais e nem sempre faz sol. Porque por vezes há nuvens e há dias cinzentos. Umas vezes faz frio. Outras vezes chove. E outras vezes troveja com tal intensidade que o nosso tecto ameaça desabar e o nosso chão quebrar e ceder sob os nossos pés. Faz parte da Vida. E é normal, ao início, termos medo e ficarmos inseguros. Uma vez e outra e outra a seguir. E não há vergonha nenhuma em mostrar ao mundo que temos medo e que somos inseguros e somos frágeis. Somos pessoas, afinal; somos humanos, e é o teu medo e a tua fragilidade que me dizem que tens um bom coração e que um dia vais também tu saber contar esta história a outrem."
Deixei de ouvir a chuva e os trovões. Sabia que estavam lá ainda, cercando-nos, mas deixei de os escutar. A tua voz entrava em mim a cada palavra e tornava-os mudos.
"Além disso, é também preciso que haja sombra para sabermos apreciar a luz. E é preciso que haja sombra para conhecermos em nós o que não se consegue ver à luz, porque nós somos feitos não só do que é visível, como também do que não se vê. O mais importante, depois de tudo isso, é aprendermos a acender de novo uma luz, por trémula que seja, como uma vela numa noite de chuva e tempestade, para podermos ver onde assentar o pé no nosso próximo passo e, sobretudo, para podermos mostrar aos outros o caminho. Temos de entender que nem todas as pessoas têm velas em casa e que às vezes somos nós a sua única salvação nos dias em que a luz se apaga. Como no dia de hoje. Por isso, vamos os dois ser fortes e aprender a ser uma vela. Que me dizes?"
Recordo a coragem que me brotava no peito ao som da tua voz e a firmeza com que te observava, nos tons laranja vacilantes, seguro de que podia levantar-me naquele instante e ousar ser todas as velas da sala.
É o mesmo olhar com que fito agora a tua fotografia, enquanto acendo a vela ao teu lado e, não escondendo numa lágrima a fragilidade pela tua ausência, me preparo para ser todas as velas da nossa sala e contar esta tua história aos teus bisnetos que agora choram.
Um beijo, com saudade
sexta-feira, julho 27, 2018
De ti fumo teu
Desisti.
Onde é que te meteste...? Procurei-te por toda a parte e nem um sinal de ti...!
Não és justo! Não podes assaltar-me de rompante e roubar-me de mim e do meu porto seguro, com a luz no olhar e o coração sorridente, para depois me desapareceres assim, de súbito, num vapor, num fumo que se esfuma, e deixar-me entregue a mim mesma e à solidão fria de ser-se eu, desesperando sobre a tua ausência, ressacando sobre o calor que me aconchegava o coração, sobre o perfume que deixaste em mim, nas minhas roupas e na minha pele e na minha cama e um pouco por todo o ar (e quiçá já na minha imaginação), sobre o piano leve e doce que ainda me adormece ao longe sobrepondo-se à lareira crepitando, e afogando-me definhando no vaivém de nostalgia que se abate sobre mim como ondas, como mar salgado que é sobretudo agridoce, acumulado e perdido em álbuns de fotografias, memórias das memórias que fomos construindo e colorindo os dois, distantes e dispersas como as estrelas espalhadas ao acaso no céu.
Não podes. Não podes, não podes, não podes! Não devias poder.
Mas de ti nem mais um vislumbre.
De ti nem mais um pio.
Onde é que te meteste...? Procurei-te por toda a parte e nem um sinal de ti...!
Não és justo! Não podes assaltar-me de rompante e roubar-me de mim e do meu porto seguro, com a luz no olhar e o coração sorridente, para depois me desapareceres assim, de súbito, num vapor, num fumo que se esfuma, e deixar-me entregue a mim mesma e à solidão fria de ser-se eu, desesperando sobre a tua ausência, ressacando sobre o calor que me aconchegava o coração, sobre o perfume que deixaste em mim, nas minhas roupas e na minha pele e na minha cama e um pouco por todo o ar (e quiçá já na minha imaginação), sobre o piano leve e doce que ainda me adormece ao longe sobrepondo-se à lareira crepitando, e afogando-me definhando no vaivém de nostalgia que se abate sobre mim como ondas, como mar salgado que é sobretudo agridoce, acumulado e perdido em álbuns de fotografias, memórias das memórias que fomos construindo e colorindo os dois, distantes e dispersas como as estrelas espalhadas ao acaso no céu.
Não podes. Não podes, não podes, não podes! Não devias poder.
Mas de ti nem mais um vislumbre.
De ti nem mais um pio.
segunda-feira, julho 02, 2018
Principezinho e a Raposa
Já dizia a Raposa ao
Principezinho “Cativaste-me e agora vais ter de cuidar de mim”. A verdade é que cada um é responsável por
aquilo que cativa. Uma parte do que sou – uma parte de mim – está assim
entregue nas tuas mãos. Cuida bem dela.
Cuidarei, prometo, até ao meu último fôlego.
Porque é também ela parte de mim e não se escolhe deixar de
parte uma parte do todo.
Aprendi contigo, por desígnio do acaso, que acontece algo de
bonito sempre que duas almas gémeas cruzam caminhos. E mais ainda quando elas
se encontram no curso da Vida por acidente, roçando apenas ao de leve, sem
quase darem conta uma da outra.
Mal sabia eu que esse acidente de raspão ia deixar mossa.
E foi aqui, sim, que trocámos as regras todas do jogo.
É que, quando são verdadeiramente gémeas as almas, brota e
emerge da terra dos corpos um amor sem par, sem força equivalente talvez em
todo o Universo. Também não é nova para ti esta ideia, de mim para ti, das
energias do Universo, da felicidade pela felicidade; do amor pelo amor. E não
falamos de um amor de paixão ardente na pele e no toque, daquelas de arrancar
aos corpos as roupas. Falamos, sim, de uma paixão ardente bem no seio do
coração, de amor puro, inocente; de uma ternura harmoniosa e de uma paz leve,
doce, que nos invade os pulmões sem pedir licença.
E sem aviso prévio foi essa a porta que se destrancou e
abriu algures em nós, nos próprios alicerces do nosso ser. Foi esse o lugar que
cativámos a par e passo um no outro, sem saber bem como ou porquê. Mas sabia
bem a raposa que quando cativamos, cuidamos para sempre. E foi isso que fomos
fazendo, não foi? Dia após dia, em cada gesto, em cada conversa, em cada
partilha do que faz nós quem somos hoje. Em cada música, em cada fotografia, em
cada confissão, em cada gargalhada, em cada vitória, em cada derrota, em cada
lágrima. Em cada minuto que passámos de mãos dadas sem precisarmos de dar as mãos.
"Foi o tempo que perdeste com a tua roza que a fez tão
importante.", já dizia a Raposa também, num desses efémeros encontros
eternos com o Principezinho.
Como Saint-Exupéry com o Principezinho e a Raposa,
escrevemos juntos a história do encontro de duas almas selvagens tão
diferentes, mas tão iguais em tantas matérias, em especial na matéria de ver e
de sentir o mundo, na matéria de dar o que faz falta sem esperar receber, e
sobretudo na matéria de tudo aquilo que é imaterial. Na matéria do que não tem
explicação, na matéria do que foge e escapa à lógica. Na matéria do que fala
sem usar palavras.
Palavras quero-as apenas para acrescentar um ponto:
Não escrevemos toda a história, ainda. Se concordares, no
teu silêncio distante, encerramos aqui apenas um primeiro capítulo. Um de
vários. Um de muitos, se possível, enquanto forças houver para escrever.
terça-feira, maio 08, 2018
Quando Sabes A-Mar
Arrastei-me até à beira-mar para me arejar de ti.
Trepei pelas rochas até ao trilho onde ninguém caminha, por entre as dunas sobre o mar, e pé ante pé deixei que a melodia síncrona da rebentação me entrasse pelos ouvidos e me inundasse o pensamento.
Não há vivalma na praia onde vou lembrar-me e esquecer-me de ti. Apenas o jazz do vaivém repetido das ondas e marés e a toda a volta a brisa salgada. É isso que tanto me atrai nela e é por isso que eu a escolho: deixa-me estar finalmente a sós com o ruído que causas em mim.
À medida que me aproximo do mar, ficam para trás as passadas na areia, rasto solteiro no areal virgem, e o passado de ti, que as ondas levam de mim a pouco e pouco, apagando de vez. Caminho talvez dois quilómetros ao longo da espuma que vai rebentando e deslizando pela areia, em piloto-automático, até ao refúgio que reclamei para mim. Entro e, com água já pelos tornozelos, sento-me voltado para o mar na reentrância que nunca te mostrei, na esperança de que a maresia leve também de mim o teu perfume.
Ias gostar deste sítio, apesar da tua natureza indomável. É o recanto mais recôndito de toda a praia deserta e faz-te esquecer todo o mundo à volta. Faz-te esquecer o tempo e com tempo faz-te esquecer quem és e de onde vens.
Acalma-me o burburinho das ondas, aqui. Borbulham e soluçam suavemente como num riacho, ao agitarem-se timidamente contra as rochas, embalando-me, e ao longe prolonga-se o eco da rebentação. Enquanto isso, a dança da maré hipnotiza-me, como se chamasse por mim.
A última carta que te escrevi foi no dia dos namorados que nunca fomos. Não quis o mar levar até ti as palavras que nesse dia te escrevi e hoje é nele que me refugio para te silenciar. É irónico, não é? E tu, selvagem, nasceste para mim como o meu próprio mar, que vem e vai e volta; que se toca ao de leve, mas não se pode agarrar.
E por isso, como a ele, eu amo-te e odeio-te loucamente, numa hipnose de ida sem volta, e odeio-me mais ainda por tanto te amar.
Trepei pelas rochas até ao trilho onde ninguém caminha, por entre as dunas sobre o mar, e pé ante pé deixei que a melodia síncrona da rebentação me entrasse pelos ouvidos e me inundasse o pensamento.
Não há vivalma na praia onde vou lembrar-me e esquecer-me de ti. Apenas o jazz do vaivém repetido das ondas e marés e a toda a volta a brisa salgada. É isso que tanto me atrai nela e é por isso que eu a escolho: deixa-me estar finalmente a sós com o ruído que causas em mim.
À medida que me aproximo do mar, ficam para trás as passadas na areia, rasto solteiro no areal virgem, e o passado de ti, que as ondas levam de mim a pouco e pouco, apagando de vez. Caminho talvez dois quilómetros ao longo da espuma que vai rebentando e deslizando pela areia, em piloto-automático, até ao refúgio que reclamei para mim. Entro e, com água já pelos tornozelos, sento-me voltado para o mar na reentrância que nunca te mostrei, na esperança de que a maresia leve também de mim o teu perfume.
Ias gostar deste sítio, apesar da tua natureza indomável. É o recanto mais recôndito de toda a praia deserta e faz-te esquecer todo o mundo à volta. Faz-te esquecer o tempo e com tempo faz-te esquecer quem és e de onde vens.
Acalma-me o burburinho das ondas, aqui. Borbulham e soluçam suavemente como num riacho, ao agitarem-se timidamente contra as rochas, embalando-me, e ao longe prolonga-se o eco da rebentação. Enquanto isso, a dança da maré hipnotiza-me, como se chamasse por mim.
A última carta que te escrevi foi no dia dos namorados que nunca fomos. Não quis o mar levar até ti as palavras que nesse dia te escrevi e hoje é nele que me refugio para te silenciar. É irónico, não é? E tu, selvagem, nasceste para mim como o meu próprio mar, que vem e vai e volta; que se toca ao de leve, mas não se pode agarrar.
E por isso, como a ele, eu amo-te e odeio-te loucamente, numa hipnose de ida sem volta, e odeio-me mais ainda por tanto te amar.
segunda-feira, fevereiro 26, 2018
Crónica de um Ecléctico
"És muito mais complexo do que te achas."
Ficaram-me no ouvido as tuas palavras. Ficaram-me no ouvido e fiquei a matutar nelas até agora. Seis horas certinhas. E quis, depois de as ruminar e digerir, dedicar-te mais um pouco do meu tempo para desmistificar essa tua ideia.
Somos todos "muito mais complexos" do que o mundo vê, não somos? No nosso íntimo, isto é. Tu saberás quão complexa és e eu, que tanto observo, para dentro e para fora - mas especialmente para dentro -, sei exactamente quão complexo sou.
Entendo as tuas premissas: sou uma encruzilhada de coisas, umas mais óbvias, outras completo mistério para ti. Uma imensidão de peças diferentes, de diferentes tamanhos e feitios, por vezes diametralmente opostos, que não entendes como podem encaixar umas nas outras. Crenças e gostos, desgostos e dores, medos e amores, sombras e cores. Caos e paz. A antítese de uma alma racional. A minha natureza divergente, "ecléctica", como bem me ensinou a outra Joana. Mas, ao mesmo tempo, sinto-me bastante mais simples do que a maioria das pessoas que te rodeiam.
Repara que, nos dias de hoje, o que é "normal", aceitável, é fazer-se tudo ao contrário do que realmente se quer fazer. Faz-se aquilo que é esperado que façamos, porque alguém nos impôs, declarada ou tacitamente, que é assim que deve ser. Ou, por outro prisma, tudo é feito em nome do reconhecimento ou da vanglória que possa daí - das acções, das palavras e dos gestos - resultar e ser retirado. Ser bebido e absorvido, como alimento da alma, para satisfação pessoal. Para proveito e benefício próprio, reflectida ou irreflectidamente, porque as pessoas de hoje precisam dessa almofada de aceitação, desse conforto onde deitar a cabeça ao final do dia. A acção pelo Eu. A acção pelo ego. A acção pela consequência.
Eu não funciono nesse registo. Funciono, antes, num muito mais básico. Porque a nossa felicidade enquanto seres humanos reside nas coisas simples, pequenas, e sobretudo em coisas genuínas. Um sorriso, por exemplo, não tem preço. Aquele instante de felicidade verdadeira e inocente, esse reflexo puro e nostálgico do que é ser-se de novo Criança, tem a força do mundo. E, por isso, causar um sorriso, por efémero que seja, vale todo e qualquer esforço, a qualquer hora e em qualquer parte do mundo.
Há algo de belo na luz das pessoas. Na felicidade pela felicidade. Tu chamas-lhe Deus, o amor de Cristo; eu não tenho nome para lhe dar. Mas há de facto um qualquer brilho e isso, com ou sem nome, cativa-me e todos os dias eu quero, só, encontrá-lo de novo nos olhos de alguém. Seja ou não eu a causa, eu o reconhecimento, eu a vanglória.
Eu sou isso. A acção pela acção. E "isso" é simples: se entender que uma palavra pode mudar o teu dia, então vou conceder-ta na hora, sem rodeios, sem me preocupar com o que possam à volta pensar. Do mesmo modo, se, mesmo que por breves instantes, acreditar que um ínfimo gesto pode ser a diferença num dia menos bom, então eu vou lá estar sem pensar duas vezes. E nem sempre tu me verás lá. Sabe, apenas e só, que aguardarei à espreita na esquina do anonimato, desentendido, para te ver sorrir.
O reconhecimento pelo gesto? Pouco importa. De que vale encher o ego se o teu sorriso puro me enche o coração?
Ficaram-me no ouvido as tuas palavras. Ficaram-me no ouvido e fiquei a matutar nelas até agora. Seis horas certinhas. E quis, depois de as ruminar e digerir, dedicar-te mais um pouco do meu tempo para desmistificar essa tua ideia.
Somos todos "muito mais complexos" do que o mundo vê, não somos? No nosso íntimo, isto é. Tu saberás quão complexa és e eu, que tanto observo, para dentro e para fora - mas especialmente para dentro -, sei exactamente quão complexo sou.
Entendo as tuas premissas: sou uma encruzilhada de coisas, umas mais óbvias, outras completo mistério para ti. Uma imensidão de peças diferentes, de diferentes tamanhos e feitios, por vezes diametralmente opostos, que não entendes como podem encaixar umas nas outras. Crenças e gostos, desgostos e dores, medos e amores, sombras e cores. Caos e paz. A antítese de uma alma racional. A minha natureza divergente, "ecléctica", como bem me ensinou a outra Joana. Mas, ao mesmo tempo, sinto-me bastante mais simples do que a maioria das pessoas que te rodeiam.
Repara que, nos dias de hoje, o que é "normal", aceitável, é fazer-se tudo ao contrário do que realmente se quer fazer. Faz-se aquilo que é esperado que façamos, porque alguém nos impôs, declarada ou tacitamente, que é assim que deve ser. Ou, por outro prisma, tudo é feito em nome do reconhecimento ou da vanglória que possa daí - das acções, das palavras e dos gestos - resultar e ser retirado. Ser bebido e absorvido, como alimento da alma, para satisfação pessoal. Para proveito e benefício próprio, reflectida ou irreflectidamente, porque as pessoas de hoje precisam dessa almofada de aceitação, desse conforto onde deitar a cabeça ao final do dia. A acção pelo Eu. A acção pelo ego. A acção pela consequência.
Eu não funciono nesse registo. Funciono, antes, num muito mais básico. Porque a nossa felicidade enquanto seres humanos reside nas coisas simples, pequenas, e sobretudo em coisas genuínas. Um sorriso, por exemplo, não tem preço. Aquele instante de felicidade verdadeira e inocente, esse reflexo puro e nostálgico do que é ser-se de novo Criança, tem a força do mundo. E, por isso, causar um sorriso, por efémero que seja, vale todo e qualquer esforço, a qualquer hora e em qualquer parte do mundo.
Há algo de belo na luz das pessoas. Na felicidade pela felicidade. Tu chamas-lhe Deus, o amor de Cristo; eu não tenho nome para lhe dar. Mas há de facto um qualquer brilho e isso, com ou sem nome, cativa-me e todos os dias eu quero, só, encontrá-lo de novo nos olhos de alguém. Seja ou não eu a causa, eu o reconhecimento, eu a vanglória.
Eu sou isso. A acção pela acção. E "isso" é simples: se entender que uma palavra pode mudar o teu dia, então vou conceder-ta na hora, sem rodeios, sem me preocupar com o que possam à volta pensar. Do mesmo modo, se, mesmo que por breves instantes, acreditar que um ínfimo gesto pode ser a diferença num dia menos bom, então eu vou lá estar sem pensar duas vezes. E nem sempre tu me verás lá. Sabe, apenas e só, que aguardarei à espreita na esquina do anonimato, desentendido, para te ver sorrir.
O reconhecimento pelo gesto? Pouco importa. De que vale encher o ego se o teu sorriso puro me enche o coração?
segunda-feira, fevereiro 19, 2018
Sem título
E se eu te contasse que tenho um tumor?
Se te confidenciasse que há cinco anos que isso interfere com o meu quotidiano? Se te contasse que, de ano para ano, de dia para dia, vou tendo menos energia, menos esperança, menos vontade? Se te contasse, já agora, que mais dia menos dia isso há-de me matar?
Não quero que sintas pena. Não preciso que sintas pena. Mas preciso - e tu precisas mais ainda - que entendas que nem tudo é como tu gostas de imaginar. Como tu teimosamente achas que sabes. Flores e borboletas e cores bonitas por toda a parte e quando o vento sopra de um ângulo mais estranho, que não te é familiar, tu queixas-te e lamentas-te e revoltas-te contra a Vida e contra o mundo. Tu, de todas as pessoas.
Desculpa, não podemos todos ter a vida perfeitinha que tu tens (a sorte de ter). Tomara eu. Tomara eu e eu já nem pedia tudo o que tu tens; um terço bastava-me. Um décimo! Saúde bastava, aliás. E desculpa-me se, perante isso, não conseguimos todos ser fortes todos os dias, firmes e hirtos como rochas, de braços e ouvidos abertos para te oferecer um ombro onde chorares e de seguida escutar os teus dilemas diários. Desculpa-me se não conseguimos ser todos quentes e amáveis a toda a hora, prontos a dar-te a palavra amiga e doce que vens procurar. Compreensivos, sorridentes e alegres a todos os minutos.
Antes pelo contrário; é fodido sê-lo um minuto que seja. Não te passa pela cabeça quão difícil é encontrares na tua dor e no teu desespero a força para te lembrares de como se esboça um sorriso. De como fazê-lo parecer credível. E, no entanto, aqui me tens, após 26 anos em esforço para que nunca o soubesses. Interrompo o exercício que me consome a vitalidade a cada dia porque é hora de acabares com este teu modelo em que o teu umbigo e os teus problemas são o centro do Universo e em que tudo o resto à volta é poeira espacial, à deriva para usares a teu bel-prazer na senda do teu capricho.
Eu tenho problemas sérios. Eu e provavelmente mais vinte pessoas com quem desabafas ao longo dos teus dias. E eu, por mim, cansei-me de ser um peão no teu jogo egoísta para de seguida ser pisado e tratado a chuto. Não podias adivinhar, claro que não; ninguém pode adivinhar a história que se esconde por detrás de um rosto. Mas a lição que tens a aprender urgentemente é a de que, não podendo adivinhar, é estupidez pura e dura assumires que a conheces e tratares quem te rodeia como se a conhecesses.
Quando te deitares hoje, à data em que me leres, imagina por dez minutos o que é viver com um tumor e ter os dias contados. Faz esse exercício e imagina todas as implicações que isso traria. Pensa bem, em tudo. Absorve-as e sente-as na pele. Sente o medo no estômago e a ansiedade nos pulmões. Sente a angústia entalada na garganta. Sente a cabeça tão à roda que só te apetece vomitar. E à luz disso, caso consigas senti-lo, olha de novo para ti e compara-o com aquilo a que tu insistes em chamar de problemas.
E amanhã, se o meu telefone ainda tocar, aguardo o teu telefonema para tomarmos um último café.
Se te confidenciasse que há cinco anos que isso interfere com o meu quotidiano? Se te contasse que, de ano para ano, de dia para dia, vou tendo menos energia, menos esperança, menos vontade? Se te contasse, já agora, que mais dia menos dia isso há-de me matar?
Não quero que sintas pena. Não preciso que sintas pena. Mas preciso - e tu precisas mais ainda - que entendas que nem tudo é como tu gostas de imaginar. Como tu teimosamente achas que sabes. Flores e borboletas e cores bonitas por toda a parte e quando o vento sopra de um ângulo mais estranho, que não te é familiar, tu queixas-te e lamentas-te e revoltas-te contra a Vida e contra o mundo. Tu, de todas as pessoas.
Desculpa, não podemos todos ter a vida perfeitinha que tu tens (a sorte de ter). Tomara eu. Tomara eu e eu já nem pedia tudo o que tu tens; um terço bastava-me. Um décimo! Saúde bastava, aliás. E desculpa-me se, perante isso, não conseguimos todos ser fortes todos os dias, firmes e hirtos como rochas, de braços e ouvidos abertos para te oferecer um ombro onde chorares e de seguida escutar os teus dilemas diários. Desculpa-me se não conseguimos ser todos quentes e amáveis a toda a hora, prontos a dar-te a palavra amiga e doce que vens procurar. Compreensivos, sorridentes e alegres a todos os minutos.
Antes pelo contrário; é fodido sê-lo um minuto que seja. Não te passa pela cabeça quão difícil é encontrares na tua dor e no teu desespero a força para te lembrares de como se esboça um sorriso. De como fazê-lo parecer credível. E, no entanto, aqui me tens, após 26 anos em esforço para que nunca o soubesses. Interrompo o exercício que me consome a vitalidade a cada dia porque é hora de acabares com este teu modelo em que o teu umbigo e os teus problemas são o centro do Universo e em que tudo o resto à volta é poeira espacial, à deriva para usares a teu bel-prazer na senda do teu capricho.
Eu tenho problemas sérios. Eu e provavelmente mais vinte pessoas com quem desabafas ao longo dos teus dias. E eu, por mim, cansei-me de ser um peão no teu jogo egoísta para de seguida ser pisado e tratado a chuto. Não podias adivinhar, claro que não; ninguém pode adivinhar a história que se esconde por detrás de um rosto. Mas a lição que tens a aprender urgentemente é a de que, não podendo adivinhar, é estupidez pura e dura assumires que a conheces e tratares quem te rodeia como se a conhecesses.
Quando te deitares hoje, à data em que me leres, imagina por dez minutos o que é viver com um tumor e ter os dias contados. Faz esse exercício e imagina todas as implicações que isso traria. Pensa bem, em tudo. Absorve-as e sente-as na pele. Sente o medo no estômago e a ansiedade nos pulmões. Sente a angústia entalada na garganta. Sente a cabeça tão à roda que só te apetece vomitar. E à luz disso, caso consigas senti-lo, olha de novo para ti e compara-o com aquilo a que tu insistes em chamar de problemas.
E amanhã, se o meu telefone ainda tocar, aguardo o teu telefonema para tomarmos um último café.
quarta-feira, fevereiro 14, 2018
Mensagem ao Mar
Li a tua carta em segredo.
E é em segredo que te respondo, atirando ao mar as palavras que escrevo, na vã esperança de que um dia cheguem até ti. Pragmaticamente, sei que não vão chegar nunca, que vão apenas flutuar até ao horizonte e continuar flutuando por esse mundo fora, mas sonhar nunca fez mal a ninguém. Além disso, embora queira muito pegar-te pelas mãos decerto frias e dizer-to, não tenho a certeza se quero que oiças ou leias o que tenho para te dizer. E, por isso, do alto da minha timidez, deixar ao acaso a mensagem soou-me bem.
Disseste querer saber como é ser-se eu. Reflectindo um pouco sobre a questão, depreendi que era tema para falarmos durante horas a fio. Dias, talvez. Teria tanto para contar-te que não haveria neste barco - neste em que vivo entre lá e cá - pergaminhos ou tinta suficientes para te responder completamente. Tenho papel e tinta, contudo, para clarificar o ponto que levantas, sobre eu fechar-te a porta e trancar-me à chave:
Ser-se eu é ser-se infinitamente atento, com uma sensibilidade acutilante, ao pormenor de tudo e de todas as coisas. Das imagens, dos sons, das cores, dos objectos, das pessoas, das palavras e dos gestos. Dos maiores aos mais pequenos; dos visíveis aos invisíveis. E então, ser-se eu é perigoso. É perigoso, em particular, porque quando eu olho para ti o meu olhar não se fica pela tua pele, pelo teu corpo, pelo teu rosto... Não. Quando eu olho para ti perfuro o que vejo e entro de rompante pelo teu olhar até ao fundo de ti. Quando eu olho para ti vejo bater o teu coração, frágil, exposto. Vejo-o rir, vejo-o chorar. Analiso-o milimetricamente, de todos os ângulos, e logo listo para mim as dez mil coisas boas, à imagem egoísta das minhas crenças e dos meus valores, que poderias vir a ser.
Imagino que não entendas onde reside o perigo nisso, mas eu explico-te:
Quando lês no coração de alguém um tal conjunto de atributos não efectivos, a imediata consequência é tentares convencer-te de que essa pessoa tenderá naturalmente para se transformar, com o tempo, nessa versão melhorada - aos teus olhos - de si mesma. O que é perfeitamente ilógico na medida em que, na grande maioria dos casos, nem a própria pessoa tem conhecimento ou noção desse seu potencial para algo maior. Pior ainda, estabeleces com essa versão melhorada de alguém uma ligação inviolável e começas a tomá-la como a verdadeira versão da pessoa que respira à tua frente, mas que tu nem vês. E é aqui que reside o perigo, bem iminente: deixas de ver, como se enfeitiçado por algo que só tu vês, mas que na verdade nem está realmente lá.
E isso traz-nos, por fim, a ti e ao meu silêncio. Apaixonei-me por ti. Cometi esse erro crasso. E, não te iludas, queria vezes de mais cometê-lo de novo. Todavia, entendi há uns dias que não foi por ti que me apaixonei, realmente. Por ti pela pessoa que és. Foi, sim, pela pessoa que eu imaginava em ti, pela versão de ti que talvez pudesses vir a ser um dia. Mas que, em todos os campos e parâmetros, não eras. Deixei de viver o valor que tens, porque quis agarrar-me ao valor que eu tinha idealizado para ti. E desde então todos os teus passos e gestos caíram em mim como facas enterrando-se-me entre as costelas e girando e torcendo-se em desapontamento.
Sem culpa tua, os resquícios de ti sedimentaram sob a forma de dor. E por isso, para minha própria protecção e sobrevivência, bloqueei-te de mim e afastei-te para longe. Recolhi-me na minha carapaça, corri a cortina e fechei-te a porta para não tornares a entrar.
Se me perguntasses hoje, teria adorado conscientemente aceder ao teu convite e conhecer quem eras, à data. A versão actual de ti mesma, com todos os teus defeitos, sem mudar uma vírgula ou um cabelo. E, pergunto-me, talvez tivesse resultado. Porque essa será sempre, sem sombra de dúvidas, a melhor versão de ti mesma. (Que é, como te disse há meses, linda da cabeça aos pés.)
Apaixonei-me por alguém que tu não és, alguém que existe apenas na minha cabeça, e isso matou todas as minhas hipóteses com a pessoa que tu és de verdade e eu vou ter de viver com isso para o resto dos meus dias.
Não tenho papel para muito mais. Não é muito, mas espero que dê para experimentares um pouco da loucura que é ser-se prisioneiro deste corpo e dono desta cabeça. Um pouco do que é ser-se eu.
Desculpa-me.
E é em segredo que te respondo, atirando ao mar as palavras que escrevo, na vã esperança de que um dia cheguem até ti. Pragmaticamente, sei que não vão chegar nunca, que vão apenas flutuar até ao horizonte e continuar flutuando por esse mundo fora, mas sonhar nunca fez mal a ninguém. Além disso, embora queira muito pegar-te pelas mãos decerto frias e dizer-to, não tenho a certeza se quero que oiças ou leias o que tenho para te dizer. E, por isso, do alto da minha timidez, deixar ao acaso a mensagem soou-me bem.
Disseste querer saber como é ser-se eu. Reflectindo um pouco sobre a questão, depreendi que era tema para falarmos durante horas a fio. Dias, talvez. Teria tanto para contar-te que não haveria neste barco - neste em que vivo entre lá e cá - pergaminhos ou tinta suficientes para te responder completamente. Tenho papel e tinta, contudo, para clarificar o ponto que levantas, sobre eu fechar-te a porta e trancar-me à chave:
Ser-se eu é ser-se infinitamente atento, com uma sensibilidade acutilante, ao pormenor de tudo e de todas as coisas. Das imagens, dos sons, das cores, dos objectos, das pessoas, das palavras e dos gestos. Dos maiores aos mais pequenos; dos visíveis aos invisíveis. E então, ser-se eu é perigoso. É perigoso, em particular, porque quando eu olho para ti o meu olhar não se fica pela tua pele, pelo teu corpo, pelo teu rosto... Não. Quando eu olho para ti perfuro o que vejo e entro de rompante pelo teu olhar até ao fundo de ti. Quando eu olho para ti vejo bater o teu coração, frágil, exposto. Vejo-o rir, vejo-o chorar. Analiso-o milimetricamente, de todos os ângulos, e logo listo para mim as dez mil coisas boas, à imagem egoísta das minhas crenças e dos meus valores, que poderias vir a ser.
Imagino que não entendas onde reside o perigo nisso, mas eu explico-te:
Quando lês no coração de alguém um tal conjunto de atributos não efectivos, a imediata consequência é tentares convencer-te de que essa pessoa tenderá naturalmente para se transformar, com o tempo, nessa versão melhorada - aos teus olhos - de si mesma. O que é perfeitamente ilógico na medida em que, na grande maioria dos casos, nem a própria pessoa tem conhecimento ou noção desse seu potencial para algo maior. Pior ainda, estabeleces com essa versão melhorada de alguém uma ligação inviolável e começas a tomá-la como a verdadeira versão da pessoa que respira à tua frente, mas que tu nem vês. E é aqui que reside o perigo, bem iminente: deixas de ver, como se enfeitiçado por algo que só tu vês, mas que na verdade nem está realmente lá.
E isso traz-nos, por fim, a ti e ao meu silêncio. Apaixonei-me por ti. Cometi esse erro crasso. E, não te iludas, queria vezes de mais cometê-lo de novo. Todavia, entendi há uns dias que não foi por ti que me apaixonei, realmente. Por ti pela pessoa que és. Foi, sim, pela pessoa que eu imaginava em ti, pela versão de ti que talvez pudesses vir a ser um dia. Mas que, em todos os campos e parâmetros, não eras. Deixei de viver o valor que tens, porque quis agarrar-me ao valor que eu tinha idealizado para ti. E desde então todos os teus passos e gestos caíram em mim como facas enterrando-se-me entre as costelas e girando e torcendo-se em desapontamento.
Sem culpa tua, os resquícios de ti sedimentaram sob a forma de dor. E por isso, para minha própria protecção e sobrevivência, bloqueei-te de mim e afastei-te para longe. Recolhi-me na minha carapaça, corri a cortina e fechei-te a porta para não tornares a entrar.
Se me perguntasses hoje, teria adorado conscientemente aceder ao teu convite e conhecer quem eras, à data. A versão actual de ti mesma, com todos os teus defeitos, sem mudar uma vírgula ou um cabelo. E, pergunto-me, talvez tivesse resultado. Porque essa será sempre, sem sombra de dúvidas, a melhor versão de ti mesma. (Que é, como te disse há meses, linda da cabeça aos pés.)
Apaixonei-me por alguém que tu não és, alguém que existe apenas na minha cabeça, e isso matou todas as minhas hipóteses com a pessoa que tu és de verdade e eu vou ter de viver com isso para o resto dos meus dias.
Não tenho papel para muito mais. Não é muito, mas espero que dê para experimentares um pouco da loucura que é ser-se prisioneiro deste corpo e dono desta cabeça. Um pouco do que é ser-se eu.
Desculpa-me.
segunda-feira, fevereiro 12, 2018
Como é Ser-se Tu?
Sou doida por ele, mas não sei quem ele é.
Calma, não me julgues louca.
Sei-lhe - é claro - o nome, sei-lhe os traços do rosto, o jeito como apara a barba e o perfume que usa. Sei o que faz durante o dia, sei que reflecte na companhia de um cigarro e que gosta de beber um copo com os amigos. Mas não sei quem ele é, realmente.
Noutros tempos não me faria diferença essa questão. Catalogava as pessoas por aquilo que via e ouvia delas numa base diária e isso, sendo honesta, chegava-me. Mas há uns meses - anos, sei lá - sugeriram-me, até em contexto profissional, que fizesse um teste com as pessoas com quem, por força das circunstâncias, partilhava diariamente o meu espaço e o ar que respiro. E o teste era tão simples quanto perguntar às pessoas algo nas linhas de "Como é ser-se tu?" e, desse momento em diante, ouvir. Escutar e absorver cada palavra, até entrar completamente na pele e nos sapatos de quem fala.
E eu, não obediente mas psicossociologicamente curiosa, assim fiz. Claro que ouvir, apenas, não me trouxe muitos resultados, a início. Nos casos em que não me ignoravam ou não me achavam lunática ou invasiva, conseguia apenas que partilhassem uma primeira camada da sua vida mais pessoal, do seu Eu mais genuíno, e morria aí o assunto.
Aprendi com o tempo a mudar um pouco as regras do jogo e após escutar comecei a introduzir mais uma e outra pergunta, sempre breves, estabelecendo assim o fio condutor da conversa. E foi assim que, a pouco e pouco, comecei a atravessar as várias camadas de cada uma dessas pessoas e a conseguir ver a vida através de olhares tão diferentes do meu. A conseguir ver as pessoas por quem realmente são, na sua mais pura versão, com as suas qualidades, feitios, defeitos e inseguranças. E que coisas maravilhosas, Deus, há por encontrar nesse lugar fora de nós...!
E é aí que entra ele e a minha angústia. O nome, o rosto e o perfume todos conhecem. Mas que história de vida tem ele? Que passado e que dores traz às costas, que feridas e cicatrizes carrega no corpo e no coração, e de que forma isso se lhe traduz na forma de ver o mundo e a Vida e a Morte e o amor e as pessoas?
Não consigo conhecer-lhe isso. Quero muito, mas sempre que tento aproximar-me ele afasta-me; repele-me de imediato do espaço dele, daquele perímetro de segurança em que se barrica, muitas vezes sem precisar sequer de proferir uma palavra. É como se lhe sentisse a carapaça invisível a fechar-se sobre si próprio, uma cortina que corre de imediato para me separar do que se esconde atrás dela. Fecha-me a porta e tranca-se lá dentro, para que eu nem tente girar a maçaneta.
Fico frustrada. Até porque gostava, reciprocamente, de me dar a conhecer. De lhe dar nota de que, como ele, não deixo a minha porta aberta a muita gente. De lhe explicar que não sou estranha, mas sim que carrego em mim marcas profundas - que a maioria das pessoas não tem como compreender - e que opto, por isso, por me afastar para não lhes deixar nem um vislumbre delas. De lhe confessar que não sou calada, mas sim que tenho demasiado ruído em mim. E demasiada música, também!
E então chego finalmente a este impasse: se me mantiver quieta, ficaremos exactamente no mesmo sítio, a uma distância infinita de nos conhecermos. Eu aqui, ele no mundo dele. Se avançar, passo em falso, corro o risco de ele fugir de novo e de se fechar de vez. Sou doida por ele e preciso de medir e calcular ao milímetro cada passo a partir de agora.
É exactamente como uma dança.
Só que eu nunca tive muito jeito para dançar.
Calma, não me julgues louca.
Sei-lhe - é claro - o nome, sei-lhe os traços do rosto, o jeito como apara a barba e o perfume que usa. Sei o que faz durante o dia, sei que reflecte na companhia de um cigarro e que gosta de beber um copo com os amigos. Mas não sei quem ele é, realmente.
Noutros tempos não me faria diferença essa questão. Catalogava as pessoas por aquilo que via e ouvia delas numa base diária e isso, sendo honesta, chegava-me. Mas há uns meses - anos, sei lá - sugeriram-me, até em contexto profissional, que fizesse um teste com as pessoas com quem, por força das circunstâncias, partilhava diariamente o meu espaço e o ar que respiro. E o teste era tão simples quanto perguntar às pessoas algo nas linhas de "Como é ser-se tu?" e, desse momento em diante, ouvir. Escutar e absorver cada palavra, até entrar completamente na pele e nos sapatos de quem fala.
E eu, não obediente mas psicossociologicamente curiosa, assim fiz. Claro que ouvir, apenas, não me trouxe muitos resultados, a início. Nos casos em que não me ignoravam ou não me achavam lunática ou invasiva, conseguia apenas que partilhassem uma primeira camada da sua vida mais pessoal, do seu Eu mais genuíno, e morria aí o assunto.
Aprendi com o tempo a mudar um pouco as regras do jogo e após escutar comecei a introduzir mais uma e outra pergunta, sempre breves, estabelecendo assim o fio condutor da conversa. E foi assim que, a pouco e pouco, comecei a atravessar as várias camadas de cada uma dessas pessoas e a conseguir ver a vida através de olhares tão diferentes do meu. A conseguir ver as pessoas por quem realmente são, na sua mais pura versão, com as suas qualidades, feitios, defeitos e inseguranças. E que coisas maravilhosas, Deus, há por encontrar nesse lugar fora de nós...!
E é aí que entra ele e a minha angústia. O nome, o rosto e o perfume todos conhecem. Mas que história de vida tem ele? Que passado e que dores traz às costas, que feridas e cicatrizes carrega no corpo e no coração, e de que forma isso se lhe traduz na forma de ver o mundo e a Vida e a Morte e o amor e as pessoas?
Não consigo conhecer-lhe isso. Quero muito, mas sempre que tento aproximar-me ele afasta-me; repele-me de imediato do espaço dele, daquele perímetro de segurança em que se barrica, muitas vezes sem precisar sequer de proferir uma palavra. É como se lhe sentisse a carapaça invisível a fechar-se sobre si próprio, uma cortina que corre de imediato para me separar do que se esconde atrás dela. Fecha-me a porta e tranca-se lá dentro, para que eu nem tente girar a maçaneta.
Fico frustrada. Até porque gostava, reciprocamente, de me dar a conhecer. De lhe dar nota de que, como ele, não deixo a minha porta aberta a muita gente. De lhe explicar que não sou estranha, mas sim que carrego em mim marcas profundas - que a maioria das pessoas não tem como compreender - e que opto, por isso, por me afastar para não lhes deixar nem um vislumbre delas. De lhe confessar que não sou calada, mas sim que tenho demasiado ruído em mim. E demasiada música, também!
E então chego finalmente a este impasse: se me mantiver quieta, ficaremos exactamente no mesmo sítio, a uma distância infinita de nos conhecermos. Eu aqui, ele no mundo dele. Se avançar, passo em falso, corro o risco de ele fugir de novo e de se fechar de vez. Sou doida por ele e preciso de medir e calcular ao milímetro cada passo a partir de agora.
É exactamente como uma dança.
Só que eu nunca tive muito jeito para dançar.
sexta-feira, fevereiro 09, 2018
Amor à Segunda Primeira Vista
Suspeitei pelo teu último olhar, pela última palavra que não disseste, que desta vez a Vida ia levar-nos por caminhos opostos. Confirmei-o uns tempos depois, quando te vi perderes-te no sorriso dele e afogares-te num abraço que não era o meu. E aí entendi que desta vez era para sempre.
Quebrei por dentro.
Não era para sempre; era para nunca.
A início quis odiar-te, sou franco. E tentei-o com todas as minhas forças. Procurei dar-me a mim próprio todos os argumentos lógicos para te odiar. Tentei e tentei e tentei. Mas falou sempre mais alto o meu amor por ti. Palpitava-me na mente a memória do teu sorriso, um vislumbre dele ao longe, e todo eu cedia.
Então, quis odiá-lo a ele, o teu Ele, escolhido por ti a dedo para ocupar o lugar que eu queria para mim. A mão que eu queria para mim. A pessoa que eu queria para mim. Mas como se odeia alguém que se compromete a tomar conta de Ti, o meu amor para a vida toda, para o resto dos seus dias?
Desisti do ódio e resignei-me, ainda que não entendesse as voltas que dá a Vida. Respirei fundo e sentei-me sozinho no meu canto, no banco do meu jardim que carrego em mim para toda a parte, e deixei que o mundo girasse.
Não espero que ainda me leias (aprendi-te o bastante para te saber Mulher decidida e entender que, quando te propões a seguir caminho, não mais olhas para trás), mas conto todavia que, de tudo o que falámos, te recordes do longo debate sobre a religião, as almas e o sentido da Vida. E de que, de toda essa argumentação, foi sobre as almas que mais nos debruçámos. Em concreto, sobre a quase poética hipótese da reencarnação, da renovação da alma entre duas vidas materiais, corpóreas, distintas. A hipótese, por outras palavras, de uma mesma alma habitar vários corpos diferentes em tempos diferentes, vivendo assim mais do que uma vida ao longo do seu tempo útil - seja ele qual for.
Foi esse o pensamento que me despertou da minha meditação, que se prolongava desde o dia em que viraste costas. Até então, eu costumava pensar que era uma alma velha, experiente e cansada, mas percebi que, em boa verdade, tudo à minha volta sabia e cheirava a novo, como se a alma que em mim habita fosse apenas jovem, adolescente talvez. Conheci-te nesta vida, num nervoso miudinho, e conhecia-te fazia muito pouco tempo, era essa a verdade... Não houve tempo para crescer perto de ti, para nos aproximarmos gradualmente de um terreno comum, a meio caminho dos dois, e para nos cativarmos.
Pensei então para mim que talvez tudo pudesse ser diferente numa próxima vida. Que talvez pudéssemos lançar de novo os dados e que pudéssemos também nós ser diferentes. Na próxima vida, a minha alma saberá já que existes e poderá procurar-te desde o primeiro dia em que tornar ao mundo e respirar fundo pela segunda primeira vez.
A ideia reconforta-me o espírito.
O coração bate compassado.
Vejo-te numa próxima vida, talvez?
Quebrei por dentro.
Não era para sempre; era para nunca.
A início quis odiar-te, sou franco. E tentei-o com todas as minhas forças. Procurei dar-me a mim próprio todos os argumentos lógicos para te odiar. Tentei e tentei e tentei. Mas falou sempre mais alto o meu amor por ti. Palpitava-me na mente a memória do teu sorriso, um vislumbre dele ao longe, e todo eu cedia.
Então, quis odiá-lo a ele, o teu Ele, escolhido por ti a dedo para ocupar o lugar que eu queria para mim. A mão que eu queria para mim. A pessoa que eu queria para mim. Mas como se odeia alguém que se compromete a tomar conta de Ti, o meu amor para a vida toda, para o resto dos seus dias?
Desisti do ódio e resignei-me, ainda que não entendesse as voltas que dá a Vida. Respirei fundo e sentei-me sozinho no meu canto, no banco do meu jardim que carrego em mim para toda a parte, e deixei que o mundo girasse.
Não espero que ainda me leias (aprendi-te o bastante para te saber Mulher decidida e entender que, quando te propões a seguir caminho, não mais olhas para trás), mas conto todavia que, de tudo o que falámos, te recordes do longo debate sobre a religião, as almas e o sentido da Vida. E de que, de toda essa argumentação, foi sobre as almas que mais nos debruçámos. Em concreto, sobre a quase poética hipótese da reencarnação, da renovação da alma entre duas vidas materiais, corpóreas, distintas. A hipótese, por outras palavras, de uma mesma alma habitar vários corpos diferentes em tempos diferentes, vivendo assim mais do que uma vida ao longo do seu tempo útil - seja ele qual for.
Foi esse o pensamento que me despertou da minha meditação, que se prolongava desde o dia em que viraste costas. Até então, eu costumava pensar que era uma alma velha, experiente e cansada, mas percebi que, em boa verdade, tudo à minha volta sabia e cheirava a novo, como se a alma que em mim habita fosse apenas jovem, adolescente talvez. Conheci-te nesta vida, num nervoso miudinho, e conhecia-te fazia muito pouco tempo, era essa a verdade... Não houve tempo para crescer perto de ti, para nos aproximarmos gradualmente de um terreno comum, a meio caminho dos dois, e para nos cativarmos.
Pensei então para mim que talvez tudo pudesse ser diferente numa próxima vida. Que talvez pudéssemos lançar de novo os dados e que pudéssemos também nós ser diferentes. Na próxima vida, a minha alma saberá já que existes e poderá procurar-te desde o primeiro dia em que tornar ao mundo e respirar fundo pela segunda primeira vez.
A ideia reconforta-me o espírito.
O coração bate compassado.
Vejo-te numa próxima vida, talvez?
sexta-feira, fevereiro 02, 2018
Silêncio no Sangue
A noite fascina-me.
Eu sei que é o dia que traz o sol e a luz e o calor e as cores, o céu azul, os campos verdejantes, a água cristalina, os pássaros nas árvores, a vida a toda a volta. Eu sei. Sei isso tudo. Mas, ainda assim, é a noite que me cativa.
De preferência, se puder escolher, aquelas noites durante a semana de trabalho, porque nessas, bem a meio, sais de mansinho à varanda e escutas o silêncio. Apenas e só. Consegues ouvi-lo: para lá do teu muro, a súbita cessação do caos do dia, pairando no ar como uma melodia muda, suspensa, em pausa indefinida.
Lá no alto, a lua e as estrelas fazem-te sentir que não estás sozinha, ainda que estivesses num deserto. Sussurram-te lá do longe que também elas estão acordadas para te fazerem companhia. Na rua, mais abaixo, os semáforos alternam num jogo de luz e sombra, entre o verde e o amarelo e o vermelho, para um trânsito invisível. Imagino por dois segundos a brisa do ar a parar obedientemente perante o vermelho, atravessando depois o cruzamento sob a luz verde, num pára-arranca ritmado, suave.
A ausência de tudo apazigua a mente e reconforta a alma. Sem o sol, vai-se a luz; sem a luz, vão-se as pessoas; sem as pessoas, vão-se os carros e as lambretas, vai-se o ruído, vai-se a agitação, vai-se a pressa, vai-se a ansiedade. Ficas tu, acordada, e uma paz infinita à tua volta. É desse silêncio e dessa paz que eu mais gosto. Os meus quinze minutos, num dia que dizem ter vinte e quatro horas, só para mim. Eu e os meus botões. Eu e os meus pensamentos. Eu e as minhas reflexões sobre o dia que passou.
Reflectes sobre os pais que estão longe, sobre os avós que estão velhos, sobre os irmãos que constroem as suas vidas pedra sobre pedra, sobre os amigos que vão casando, sobre os problemas dos outros que tomas para ti como teus e, por fim, sobre ti mesma. Sobre os teus sucessos e os teus fracassos, os teus desejos e os teus medos, as tuas ambições e as tuas fragilidades. Especialmente aquelas mais sombrias, que evitas durante o dia, mas de que durante a noite não tens como fugir.
Depois, medes o valor do dia que terminou pela soma ponderada de todas essas parcelas e pela forma como, por fim, isso se reflectiu em ti, bem no fundo do teu ser; no fundo do teu coração de que não falas e não revelas a ninguém. Fica em teu segredo, de ti para ti, entre as estrelas e a lua e os semáforos que continuam piscando. E é por isso que tanto me cativa a noite, porque conhecer a noite é conheceres cantos de ti que nunca conheceste; é ires mais longe e é ires mais fundo ao centro de quem és e é, por tudo isso, conheceres e aprenderes a conviver em paz com cada traço de ti, os bons e os menos bons. Aqueles de que gostas, aqueles que desprezas e aqueles que odeias.
Na noite seguinte tornas a esgueirar-te lá para fora em plena madrugada e o silêncio apodera-se de ti como droga no sangue. A experiência torna-se hábito, depois rotina e pouco depois vício. Não contas a ninguém, mas o dia seguinte nasce e tu só fazes figas para que passe depressa e a noite regresse, para te sentares de novo na varanda, à mesa com o silêncio, frente a frente contigo própria.
Eu sei que é o dia que traz o sol e a luz e o calor e as cores, o céu azul, os campos verdejantes, a água cristalina, os pássaros nas árvores, a vida a toda a volta. Eu sei. Sei isso tudo. Mas, ainda assim, é a noite que me cativa.
De preferência, se puder escolher, aquelas noites durante a semana de trabalho, porque nessas, bem a meio, sais de mansinho à varanda e escutas o silêncio. Apenas e só. Consegues ouvi-lo: para lá do teu muro, a súbita cessação do caos do dia, pairando no ar como uma melodia muda, suspensa, em pausa indefinida.
Lá no alto, a lua e as estrelas fazem-te sentir que não estás sozinha, ainda que estivesses num deserto. Sussurram-te lá do longe que também elas estão acordadas para te fazerem companhia. Na rua, mais abaixo, os semáforos alternam num jogo de luz e sombra, entre o verde e o amarelo e o vermelho, para um trânsito invisível. Imagino por dois segundos a brisa do ar a parar obedientemente perante o vermelho, atravessando depois o cruzamento sob a luz verde, num pára-arranca ritmado, suave.
A ausência de tudo apazigua a mente e reconforta a alma. Sem o sol, vai-se a luz; sem a luz, vão-se as pessoas; sem as pessoas, vão-se os carros e as lambretas, vai-se o ruído, vai-se a agitação, vai-se a pressa, vai-se a ansiedade. Ficas tu, acordada, e uma paz infinita à tua volta. É desse silêncio e dessa paz que eu mais gosto. Os meus quinze minutos, num dia que dizem ter vinte e quatro horas, só para mim. Eu e os meus botões. Eu e os meus pensamentos. Eu e as minhas reflexões sobre o dia que passou.
Reflectes sobre os pais que estão longe, sobre os avós que estão velhos, sobre os irmãos que constroem as suas vidas pedra sobre pedra, sobre os amigos que vão casando, sobre os problemas dos outros que tomas para ti como teus e, por fim, sobre ti mesma. Sobre os teus sucessos e os teus fracassos, os teus desejos e os teus medos, as tuas ambições e as tuas fragilidades. Especialmente aquelas mais sombrias, que evitas durante o dia, mas de que durante a noite não tens como fugir.
Depois, medes o valor do dia que terminou pela soma ponderada de todas essas parcelas e pela forma como, por fim, isso se reflectiu em ti, bem no fundo do teu ser; no fundo do teu coração de que não falas e não revelas a ninguém. Fica em teu segredo, de ti para ti, entre as estrelas e a lua e os semáforos que continuam piscando. E é por isso que tanto me cativa a noite, porque conhecer a noite é conheceres cantos de ti que nunca conheceste; é ires mais longe e é ires mais fundo ao centro de quem és e é, por tudo isso, conheceres e aprenderes a conviver em paz com cada traço de ti, os bons e os menos bons. Aqueles de que gostas, aqueles que desprezas e aqueles que odeias.
Na noite seguinte tornas a esgueirar-te lá para fora em plena madrugada e o silêncio apodera-se de ti como droga no sangue. A experiência torna-se hábito, depois rotina e pouco depois vício. Não contas a ninguém, mas o dia seguinte nasce e tu só fazes figas para que passe depressa e a noite regresse, para te sentares de novo na varanda, à mesa com o silêncio, frente a frente contigo própria.
quarta-feira, janeiro 17, 2018
Amor Descartável
Não pertenço aqui.
Não sou deste lugar ou, pelo menos, deste tempo. Não tenho como entender os objectivos do hoje de hoje e seguramente não conheço as regras do novo jogo. Mudaram sem aviso prévio e as cartas que tinha na mão parecem ter-se tornado obsoletas.
Olho em redor e de repente, entre o frenesim do emprego, os smartphones e as redes "sociais", todos aparentam ser independentes, fortes, destemidos, insensíveis, inquebráveis. Fotocópias uns dos outros, à imagem de um outro alguém. Ou, noutra palavra mais actual, robôs.
Que é feito dos sonhos? Que é feito do medo? Que é feito da fragilidade? Que é feito da saudade? Que é feito da bondade? Que é feito da cortesia? Que é feito do carinho? Que é feito do amor, em todos os seus reflexos? Que é feito da humanidade que fazia de nós humanos?
Talvez eu seja tecnologia da velha guarda e tenha sido ultrapassado pela tecnologia de ponta. Onde preço, em vez de valor e valores, é palavra de ordem. Onde saber esperar deixou de ser virtude, onde cavalheirismo é sinónimo de fraqueza e onde fugir e descartar são sempre melhores opções do que assumir ou reparar. Podemos ser parecidos por fora, mas somos feitos de fibra completamente diferente por dentro; dois rádios sintonizados em frequências distintas. E na minha não se joga ao jogo dos instintos básicos e das relações descartáveis.
Prefiro o meu jogo, as minhas cartas e as minhas regras. Não quero levar-te para a cama e amanhã sermos dois estranhos que saciaram o desejo da carne. Quero acolher-te no meu coração e amanhã viver tudo o que há para viver de Ti, até que a morte nos separe.
Porque há uma pequena grande diferença entre deitar-me com o teu corpo e deitar-me contigo.
Não sou deste lugar ou, pelo menos, deste tempo. Não tenho como entender os objectivos do hoje de hoje e seguramente não conheço as regras do novo jogo. Mudaram sem aviso prévio e as cartas que tinha na mão parecem ter-se tornado obsoletas.
Olho em redor e de repente, entre o frenesim do emprego, os smartphones e as redes "sociais", todos aparentam ser independentes, fortes, destemidos, insensíveis, inquebráveis. Fotocópias uns dos outros, à imagem de um outro alguém. Ou, noutra palavra mais actual, robôs.
Que é feito dos sonhos? Que é feito do medo? Que é feito da fragilidade? Que é feito da saudade? Que é feito da bondade? Que é feito da cortesia? Que é feito do carinho? Que é feito do amor, em todos os seus reflexos? Que é feito da humanidade que fazia de nós humanos?
Talvez eu seja tecnologia da velha guarda e tenha sido ultrapassado pela tecnologia de ponta. Onde preço, em vez de valor e valores, é palavra de ordem. Onde saber esperar deixou de ser virtude, onde cavalheirismo é sinónimo de fraqueza e onde fugir e descartar são sempre melhores opções do que assumir ou reparar. Podemos ser parecidos por fora, mas somos feitos de fibra completamente diferente por dentro; dois rádios sintonizados em frequências distintas. E na minha não se joga ao jogo dos instintos básicos e das relações descartáveis.
Prefiro o meu jogo, as minhas cartas e as minhas regras. Não quero levar-te para a cama e amanhã sermos dois estranhos que saciaram o desejo da carne. Quero acolher-te no meu coração e amanhã viver tudo o que há para viver de Ti, até que a morte nos separe.
Porque há uma pequena grande diferença entre deitar-me com o teu corpo e deitar-me contigo.
sábado, janeiro 13, 2018
Algoritmo de Ti
Hoje deito-me derrotado.
Não triste; derrotado. Desalento no lugar do fogo que costuma arder em mim. Angústia. E silêncio, sem o habitual ruído dos meus pensamentos. Um cinzento sem cor, sem força, sem vontade.
Ela é um quebra-cabeças e a tarefa de decifrá-la torna-se mais difícil a cada dia que passa. É como se ela fosse um algoritmo complexo, alimentado em ciclo fechado por mil variáveis, condicionantes da vida, que todos os dias produz um resultado diferente. Com respostas diferentes a estímulos iguais e respostas iguais a estímulos diferentes. Ou como um puzzle infinito, dos mais incríveis que já vi, mas com tantas peças que se torna impossível juntá-las e encaixá-las todas.
Começo a ter suspeitas de que ela é, então, uma equação sem solução. Mais ainda, reforçando a minha tese, a acreditar que ela própria não consegue decifrar-se, compreender-se e encontrar-se, e de que por isso segue caminhando num limbo sem rumo certo. Entre zeros e uns; entre tudo e nada.
A única conclusão a que por fim consegui chegar foi a de que ela vive noutro mundo. Alheia a tudo o resto, numa indiferença feliz que é só dela. Entre êxtases e apatias, entre memórias e sonhos. Doce e louca, quente e fria.
Hoje deito-me derrotado.
Ela vive noutro mundo.
E eu não faço parte dele.
Não triste; derrotado. Desalento no lugar do fogo que costuma arder em mim. Angústia. E silêncio, sem o habitual ruído dos meus pensamentos. Um cinzento sem cor, sem força, sem vontade.
Ela é um quebra-cabeças e a tarefa de decifrá-la torna-se mais difícil a cada dia que passa. É como se ela fosse um algoritmo complexo, alimentado em ciclo fechado por mil variáveis, condicionantes da vida, que todos os dias produz um resultado diferente. Com respostas diferentes a estímulos iguais e respostas iguais a estímulos diferentes. Ou como um puzzle infinito, dos mais incríveis que já vi, mas com tantas peças que se torna impossível juntá-las e encaixá-las todas.
Começo a ter suspeitas de que ela é, então, uma equação sem solução. Mais ainda, reforçando a minha tese, a acreditar que ela própria não consegue decifrar-se, compreender-se e encontrar-se, e de que por isso segue caminhando num limbo sem rumo certo. Entre zeros e uns; entre tudo e nada.
A única conclusão a que por fim consegui chegar foi a de que ela vive noutro mundo. Alheia a tudo o resto, numa indiferença feliz que é só dela. Entre êxtases e apatias, entre memórias e sonhos. Doce e louca, quente e fria.
Hoje deito-me derrotado.
Ela vive noutro mundo.
E eu não faço parte dele.
sexta-feira, janeiro 12, 2018
Planos Concorrentes
Compreendo que não me compreendas.
Ainda te lembras da minha Avó professora de Desenho? A Avó dos contornos e das folhas amachucadas? Desculpa, sinto que estou sempre a falar-te dela, mas a verdade é que de quando em vez a memória trá-la de volta e o meu dia ganha mais cor. Não deixa de me surpreender a forma como através do Desenho ela conseguia, em traços tão simples, colocar o sentido da Vida.
Desta vez não nos encontrávamos no alpendre dela, mas sim na sala de estar, em pleno inverno, com a lareira em pano de fundo, sussurrando lentamente. O vento frio tentava esgueirar-se pelas frestas das portadas de madeira, uivando pelo caminho, e creio que nevava do lado de lá dos vidros.
Eu sentava-me à escrivaninha ao canto da sala a fazer os trabalhos de casa de EVT, à data TPCs, quando ela se aproximou com um tabuleiro de chocolate quente fumegando e uns biscoitos caseiros. Pousou-o a meu lado e observou o meu fraco esboço de duas rectas paralelas. Recordo que paralelismo não era o meu forte. A minha Avó, perspicaz como todas as Avós, deve ter lido a frustração no meu rosto.
- Sabes... - disse-me ela, tomando a cadeira do meu lado. - Nunca gostei de rectas paralelas. São sem graça. As rectas paralelas nunca se cruzam, nunca se conhecem. Nunca se tocam. E a Vida é tão mais triste quando se é paralelo e não se cruza, não se conhece e não se toca... - Fez uma pausa, em nova apreciação do meu rascunho. - Estas tuas rectas são as mais bonitas. E eu sei que não são aquelas que te pedem agora, mas o mundo nem sempre sabe nem pede o que quer.
Senti o sobrolho franzir-se enquanto tentava entender onde estava a beleza das minhas duas rectas "paralelas" que mais lembravam um par de esquis em cunha. A de baixo horizontal, ao longo da folha, e a de cima claramente enviesada, descaindo da esquerda para a direita. Não se tocavam, contudo, pelo que eu nem compreendia o que quereria ela dizer com toda aquela analogia. Ela continuou:
- Não te preocupes; o tempo ensina-nos. E ensina-nos, sobretudo, a ver para além do que está à vista.
Pediu-me com um olhar permissão para tomar o lápis da minha mão e pousou o bico de carvão na recta superior, na extremidade esquerda. Consigo ver-lhe a mão engelhada pousar à minha frente - com todas as suas pequenas sardas -, firme, segura e serena.
- Tu estás aqui, algures neste ponto. Começamos todos aqui. No plano físico, material: o plano das coisas, dos objectos, das aparências e da beleza exterior.
Depois, pousou o lápis novamente, desta vez sobre a linha de baixo, a horizontal.
- A Avó está aqui. Este é o plano espiritual, o plano das almas e das energias. Podes ver que as tuas rectas, estes dois planos, são quase paralelos. Mas na verdade, quando os fazes infinitamente longos... - num breve silêncio, deslizou com mestria o lápis para a direita, ao longo da minha recta, até sair da folha, prolongando a minha recta pela madeira da escrivaninha, e logo depois o mesmo ao longo do declive acidental da minha recta superior, até intersectar a primeira já na madeira da mesa - ... são planos na verdade concorrentes, tocando-se num ponto longínquo no espaço e no tempo.
Foquei-me primeiro na intersecção ali ao lado, perto do tabuleiro do chocolate quente e dos biscoitos, bem vincado na madeira e em mim.
- A Vida é uma jornada, Tomás. Há um caminho a percorrer. Uma estrada, se quiseres. Começamos no teu ponto de partida, aqui em cima, e à medida que os anos passam vamos caminhando ao longo do declive, avançando e descendo, até eventualmente cruzarmos o plano espiritual, das almas e das energias.
- É claro que a intersecção dos planos ocorre em pontos diferentes de pessoa para pessoa, porque são diferentes o rascunho e o esboço que cada um de nós faz. Uns partem deste mundo antes de lá chegarem e não chegam nunca a conhecê-lo. Outros, porque o plano material é muito irregular, muito atribulado, cheio de boas e más experiências, escorregam por entre as suas brechas e aterram directamente no plano espiritual, com outra perspectiva sobre a Vida. (Imagina um queijo suíço em vez de uma autoestrada espiritual.) Os restantes... têm a felicidade e a sorte de viver para lá desta intersecção, onde vale e preenche não o que nos toca os olhos, mas o calor que nos jaz no coração. Seja como for, é a partir desse ponto - deste teu ponto - que a magia acontece. E é por isso que estas tuas rectas são as mais bonitas.
Parte I em:
http://vidadepoetamilitar.blogspot.pt/2016/03/contornos.html?m=1
Parte II em:
http://vidadepoetamilitar.blogspot.pt/2017/03/folhas-de-papel.html?m=1
Ainda te lembras da minha Avó professora de Desenho? A Avó dos contornos e das folhas amachucadas? Desculpa, sinto que estou sempre a falar-te dela, mas a verdade é que de quando em vez a memória trá-la de volta e o meu dia ganha mais cor. Não deixa de me surpreender a forma como através do Desenho ela conseguia, em traços tão simples, colocar o sentido da Vida.
Desta vez não nos encontrávamos no alpendre dela, mas sim na sala de estar, em pleno inverno, com a lareira em pano de fundo, sussurrando lentamente. O vento frio tentava esgueirar-se pelas frestas das portadas de madeira, uivando pelo caminho, e creio que nevava do lado de lá dos vidros.
Eu sentava-me à escrivaninha ao canto da sala a fazer os trabalhos de casa de EVT, à data TPCs, quando ela se aproximou com um tabuleiro de chocolate quente fumegando e uns biscoitos caseiros. Pousou-o a meu lado e observou o meu fraco esboço de duas rectas paralelas. Recordo que paralelismo não era o meu forte. A minha Avó, perspicaz como todas as Avós, deve ter lido a frustração no meu rosto.
- Sabes... - disse-me ela, tomando a cadeira do meu lado. - Nunca gostei de rectas paralelas. São sem graça. As rectas paralelas nunca se cruzam, nunca se conhecem. Nunca se tocam. E a Vida é tão mais triste quando se é paralelo e não se cruza, não se conhece e não se toca... - Fez uma pausa, em nova apreciação do meu rascunho. - Estas tuas rectas são as mais bonitas. E eu sei que não são aquelas que te pedem agora, mas o mundo nem sempre sabe nem pede o que quer.
Senti o sobrolho franzir-se enquanto tentava entender onde estava a beleza das minhas duas rectas "paralelas" que mais lembravam um par de esquis em cunha. A de baixo horizontal, ao longo da folha, e a de cima claramente enviesada, descaindo da esquerda para a direita. Não se tocavam, contudo, pelo que eu nem compreendia o que quereria ela dizer com toda aquela analogia. Ela continuou:
- Não te preocupes; o tempo ensina-nos. E ensina-nos, sobretudo, a ver para além do que está à vista.
Pediu-me com um olhar permissão para tomar o lápis da minha mão e pousou o bico de carvão na recta superior, na extremidade esquerda. Consigo ver-lhe a mão engelhada pousar à minha frente - com todas as suas pequenas sardas -, firme, segura e serena.
- Tu estás aqui, algures neste ponto. Começamos todos aqui. No plano físico, material: o plano das coisas, dos objectos, das aparências e da beleza exterior.
Depois, pousou o lápis novamente, desta vez sobre a linha de baixo, a horizontal.
- A Avó está aqui. Este é o plano espiritual, o plano das almas e das energias. Podes ver que as tuas rectas, estes dois planos, são quase paralelos. Mas na verdade, quando os fazes infinitamente longos... - num breve silêncio, deslizou com mestria o lápis para a direita, ao longo da minha recta, até sair da folha, prolongando a minha recta pela madeira da escrivaninha, e logo depois o mesmo ao longo do declive acidental da minha recta superior, até intersectar a primeira já na madeira da mesa - ... são planos na verdade concorrentes, tocando-se num ponto longínquo no espaço e no tempo.
Foquei-me primeiro na intersecção ali ao lado, perto do tabuleiro do chocolate quente e dos biscoitos, bem vincado na madeira e em mim.
- A Vida é uma jornada, Tomás. Há um caminho a percorrer. Uma estrada, se quiseres. Começamos no teu ponto de partida, aqui em cima, e à medida que os anos passam vamos caminhando ao longo do declive, avançando e descendo, até eventualmente cruzarmos o plano espiritual, das almas e das energias.
- É claro que a intersecção dos planos ocorre em pontos diferentes de pessoa para pessoa, porque são diferentes o rascunho e o esboço que cada um de nós faz. Uns partem deste mundo antes de lá chegarem e não chegam nunca a conhecê-lo. Outros, porque o plano material é muito irregular, muito atribulado, cheio de boas e más experiências, escorregam por entre as suas brechas e aterram directamente no plano espiritual, com outra perspectiva sobre a Vida. (Imagina um queijo suíço em vez de uma autoestrada espiritual.) Os restantes... têm a felicidade e a sorte de viver para lá desta intersecção, onde vale e preenche não o que nos toca os olhos, mas o calor que nos jaz no coração. Seja como for, é a partir desse ponto - deste teu ponto - que a magia acontece. E é por isso que estas tuas rectas são as mais bonitas.
Parte I em:
http://vidadepoetamilitar.blogspot.pt/2016/03/contornos.html?m=1
Parte II em:
http://vidadepoetamilitar.blogspot.pt/2017/03/folhas-de-papel.html?m=1
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