quarta-feira, janeiro 17, 2018

Amor Descartável

Não pertenço aqui.

Não sou deste lugar ou, pelo menos, deste tempo. Não tenho como entender os objectivos do hoje de hoje e seguramente não conheço as regras do novo jogo. Mudaram sem aviso prévio e as cartas que tinha na mão parecem ter-se tornado obsoletas.

Olho em redor e de repente, entre o frenesim do emprego, os smartphones e as redes "sociais", todos aparentam ser independentes, fortes, destemidos, insensíveis, inquebráveis. Fotocópias uns dos outros, à imagem de um outro alguém. Ou, noutra palavra mais actual, robôs.

Que é feito dos sonhos? Que é feito do medo? Que é feito da fragilidade? Que é feito da saudade? Que é feito da bondade? Que é feito da cortesia? Que é feito do carinho? Que é feito do amor, em todos os seus reflexos? Que é feito da humanidade que fazia de nós humanos?

Talvez eu seja tecnologia da velha guarda e tenha sido ultrapassado pela tecnologia de ponta. Onde preço, em vez de valor e valores, é palavra de ordem. Onde saber esperar deixou de ser virtude, onde cavalheirismo é sinónimo de fraqueza e onde fugir e descartar são sempre melhores opções do que assumir ou reparar. Podemos ser parecidos por fora, mas somos feitos de fibra completamente diferente por dentro; dois rádios sintonizados em frequências distintas. E na minha não se joga ao jogo dos instintos básicos e das relações descartáveis.

Prefiro o meu jogo, as minhas cartas e as minhas regras. Não quero levar-te para a cama e amanhã sermos dois estranhos que saciaram o desejo da carne. Quero acolher-te no meu coração e amanhã viver tudo o que há para viver de Ti, até que a morte nos separe.

Porque há uma pequena grande diferença entre deitar-me com o teu corpo e deitar-me contigo.

sábado, janeiro 13, 2018

Algoritmo de Ti

Hoje deito-me derrotado.

Não triste; derrotado. Desalento no lugar do fogo que costuma arder em mim. Angústia. E silêncio, sem o habitual ruído dos meus pensamentos. Um cinzento sem cor, sem força, sem vontade.

Ela é um quebra-cabeças e a tarefa de decifrá-la torna-se mais difícil a cada dia que passa. É como se ela fosse um algoritmo complexo, alimentado em ciclo fechado por mil variáveis, condicionantes da vida, que todos os dias produz um resultado diferente. Com respostas diferentes a estímulos iguais e respostas iguais a estímulos diferentes. Ou como um puzzle infinito, dos mais incríveis que já vi, mas com tantas peças que se torna impossível juntá-las e encaixá-las todas.

Começo a ter suspeitas de que ela é, então, uma equação sem solução. Mais ainda, reforçando a minha tese, a acreditar que ela própria não consegue decifrar-se, compreender-se e encontrar-se, e de que por isso segue caminhando num limbo sem rumo certo. Entre zeros e uns; entre tudo e nada.

A única conclusão a que por fim consegui chegar foi a de que ela vive noutro mundo. Alheia a tudo o resto, numa indiferença feliz que é só dela. Entre êxtases e apatias, entre memórias e sonhos. Doce e louca, quente e fria.

Hoje deito-me derrotado.

Ela vive noutro mundo.
E eu não faço parte dele.

sexta-feira, janeiro 12, 2018

Planos Concorrentes

Compreendo que não me compreendas.

Ainda te lembras da minha Avó professora de Desenho? A Avó dos contornos e das folhas amachucadas? Desculpa, sinto que estou sempre a falar-te dela, mas a verdade é que de quando em vez a memória trá-la de volta e o meu dia ganha mais cor. Não deixa de me surpreender a forma como através do Desenho ela conseguia, em traços tão simples, colocar o sentido da Vida.

Desta vez não nos encontrávamos no alpendre dela, mas sim na sala de estar, em pleno inverno, com a lareira em pano de fundo, sussurrando lentamente. O vento frio tentava esgueirar-se pelas frestas das portadas de madeira, uivando pelo caminho, e creio que nevava do lado de lá dos vidros.

Eu sentava-me à escrivaninha ao canto da sala a fazer os trabalhos de casa de EVT, à data TPCs, quando ela se aproximou com um tabuleiro de chocolate quente fumegando e uns biscoitos caseiros. Pousou-o a meu lado e observou o meu fraco esboço de duas rectas paralelas. Recordo que paralelismo não era o meu forte. A minha Avó, perspicaz como todas as Avós, deve ter lido a frustração no meu rosto.
- Sabes... - disse-me ela, tomando a cadeira do meu lado. - Nunca gostei de rectas paralelas. São sem graça. As rectas paralelas nunca se cruzam, nunca se conhecem. Nunca se tocam. E a Vida é tão mais triste quando se é paralelo e não se cruza, não se conhece e não se toca... - Fez uma pausa, em nova apreciação do meu rascunho. - Estas tuas rectas são as mais bonitas. E eu sei que não são aquelas que te pedem agora, mas o mundo nem sempre sabe nem pede o que quer.

Senti o sobrolho franzir-se enquanto tentava entender onde estava a beleza das minhas duas rectas "paralelas" que mais lembravam um par de esquis em cunha. A de baixo horizontal, ao longo da folha, e a de cima claramente enviesada, descaindo da esquerda para a direita. Não se tocavam, contudo, pelo que eu nem compreendia o que quereria ela dizer com toda aquela analogia. Ela continuou:
- Não te preocupes; o tempo ensina-nos. E ensina-nos, sobretudo, a ver para além do que está à vista.

Pediu-me com um olhar permissão para tomar o lápis da minha mão e pousou o bico de carvão na recta superior, na extremidade esquerda. Consigo ver-lhe a mão engelhada pousar à minha frente - com todas as suas pequenas sardas -, firme, segura e serena.
- Tu estás aqui, algures neste ponto. Começamos todos aqui. No plano físico, material: o plano das coisas, dos objectos, das aparências e da beleza exterior.
Depois, pousou o lápis novamente, desta vez sobre a linha de baixo, a horizontal.
- A Avó está aqui. Este é o plano espiritual, o plano das almas e das energias. Podes ver que as tuas rectas, estes dois planos, são quase paralelos. Mas na verdade, quando os fazes infinitamente longos... - num breve silêncio, deslizou com mestria o lápis para a direita, ao longo da minha recta, até sair da folha, prolongando a minha recta pela madeira da escrivaninha, e logo depois o mesmo ao longo do declive acidental da minha recta superior, até intersectar a primeira já na madeira da mesa - ... são planos na verdade concorrentes, tocando-se num ponto longínquo no espaço e no tempo.

Foquei-me primeiro na intersecção ali ao lado, perto do tabuleiro do chocolate quente e dos biscoitos, bem vincado na madeira e em mim.
- A Vida é uma jornada, Tomás. Há um caminho a percorrer. Uma estrada, se quiseres. Começamos no teu ponto de partida, aqui em cima, e à medida que os anos passam vamos caminhando ao longo do declive, avançando e descendo, até eventualmente cruzarmos o plano espiritual, das almas e das energias.

- É claro que a intersecção dos planos ocorre em pontos diferentes de pessoa para pessoa, porque são diferentes o rascunho e o esboço que cada um de nós faz. Uns partem deste mundo antes de lá chegarem e não chegam nunca a conhecê-lo. Outros, porque o plano material é muito irregular, muito atribulado, cheio de boas e más experiências, escorregam por entre as suas brechas e aterram directamente no plano espiritual, com outra perspectiva sobre a Vida. (Imagina um queijo suíço em vez de uma autoestrada espiritual.) Os restantes... têm a felicidade e a sorte de viver para lá desta intersecção, onde vale e preenche não o que nos toca os olhos, mas o calor que nos jaz no coração. Seja como for, é a partir desse ponto - deste teu ponto - que a magia acontece. E é por isso que estas tuas rectas são as mais bonitas.

Parte I em:
http://vidadepoetamilitar.blogspot.pt/2016/03/contornos.html?m=1

Parte II em:
http://vidadepoetamilitar.blogspot.pt/2017/03/folhas-de-papel.html?m=1