domingo, março 13, 2016

Contornos

A minha avó tinha um entendimento muito próprio sobre a vida e sobre as coisas.

Era professora de desenho e de alguma forma isso talhara-a para ver o mundo de um modo diferente. Ela compreendia melhor do que ninguém a geometria da Natureza, por exemplo. As simetrias, as curvaturas, a disposição angular, os padrões, as cores. Compreendia-a e deleitava-se com ela.

Não raras vezes, enchia-nos os bolsos com conselhos de vida através das suas pequenas lições de desenho, enquanto nos observava a rabiscar umas folhas de papel com lápis e canetas de cor. Esta noite, por alguma razão, sonhei comigo sentado de novo no alpendre dela, com talvez 8 anos, com ela ao lado baloiçando-se na sua cadeira e espreitando por cima dos óculos o desenho que então eu fazia.

Estava a delinear a caneta preta todo o esboço que fizera a carvão, quando a voz dela me interrompeu, clara como se me falasse hoje ao ouvido: "Pousa a caneta preta, filho. Nada nesta vida tem contornos definidos".

No meu sonho, vi-me parar quase mecanicamente e pousar a caneta. Depois disso, quando captou a minha atenção, a minha avó divagou numa conversa que naquela altura não passou, para mim, de um comboio de palavras soltas. E que, no entanto e sem saber, mantive guardada para mim todo este tempo. Dizia ela:

"Nada nesta vida tem contornos; somos nós que os impomos. Desde cedo. Os primeiros desenhos são sempre contornos coloridos, mas sem preenchimento. Bonecos desenhados a caneta de feltro ou a lápis de cera, arrojados e alegres. Uns anos mais tarde, passamos a preferir, como tu, o lápis de carvão. A grafite. E a borracha, é claro. Preferimos construir primeiro uma base, um sustento mais sólido, perfeito à nossa medida. Depois, a cor. E durante alguns anos experimentamos vários tipos de cor: lápis de cor, lápis de cera, canetas de feltro, tons de grafite, guache, aguarelas... E no fim, sempre no fim, o contorno a preto."

Lembro-me de nesse instante voltar-me para o contorno inacabado no meu desenho.

"A fase seguinte é a da tinta da China. Porque é para sempre. E para nós o para sempre é sempre melhor. Dá-nos estabilidade e segurança. Um contorno a lápis ou a caneta é frágil demais. Com o avançar da idade, vamos pondo de parte o hábito e o rigor da tinta da China e desistimos de desenhar contornos. Se encheres uma tela com tinta e a virares de pernas para o ar logo de seguida, o que é que acontece?"

"A tinta escorre...?", arrisquei.

"A tinta escorre. Escorre, pinga e estraga toda a pintura. Acabamos por largar a tinta da China porque percebemos que o 'para sempre' é o tempo que traz. Não o contorno, não a definição forçada. É preciso esperar que a tinta seque; que o papel absorva. Então deixamos a cor do preenchimento fazer o seu próprio contorno, moldar as suas próprias curvas. E é aí que os desenhos se tornam mais reais, mais limpos. Mais bonitos.

E aí sorriu-me. Sorriu-me e eu acordei, com a voz dela e o ranger da cadeira de baloiço ainda a zumbir-me ao ouvido. Vinte anos depois aquele comboio de palavras soltas ganhou forma em mim e levou-me a ver a vida com outros olhos. Os olhos dela.

Sem contornos.

segunda-feira, março 07, 2016

Cancro.com

Nunca mais escreveste.

Há meses que não recebo notificações de novas entradas no teu diário e isso tem-me agitado e desalentado. Parece que perdi de mim o meu novo entretenimento das horas vagas, o novo calor de fundo das minhas noites frias.

Acostumei-me a ter-te por perto, ainda que irremediavelmente longe e sempre sem rosto, e a tomar abrigo no asilo das tuas palavras. Em ti tinha a força que sozinha não tenho para viver o mundo, a coragem que sozinha não encontro para sair à rua e fazer-me à estrada e a tudo o que existe para lá dos meus receios.

Visitei castelos, fontes, prados e praias nos teus versos. Imaginei sentir a tua areia a escaldar-me os pés, a água em torno dos meus tornozelos enquanto corria à tua beira-mar, a brisa quente de um verão que não vivi na cara e entranhada nos cabelos, o leve aroma no ar no sussurro do vento primaveril, a Lua cheia num céu visitado por estrelas cadentes. Mergulhei fundo e de cabeça em ti e escalei sem medos as escarpas dos mundos que construías tão perfeitamente parágrafo a parágrafo. Respirei pelos teus pulmões, inspirei pelo teu nariz e vivi pelo bater do teu coração.

Esperava horas a fio à lareira por uma nova notificação, por um novo texto. E a cada noite lá estavas tu, no ícone vermelho piscando, com uma nova história para o mundo e um novo bilhete de ida sem volta para mim. Habituei-me a escolher estrategicamente a hora para te ler, para assegurar que adormecia ao terminar a leitura e prosseguia viajando noite fora no mundo que conheceras durante o dia.

E então seguiram-se sete meses de ti em silêncio e sete meses de mim vazia, sem a harmonia da tua prosa e sem a loucura da tua poesia. E desde que a tua retirada prolongada te riscou do mapa nunca mais sonhei igual. Os sonhos das minhas noites replicaram a monotonia desesperante dos meus dias, de uma rotina feita de nadas. Tornei a cansar-me de mim própria e do meu mundo sem cor nem forma, sem a tua adrenalina, as tuas paisagens e as tuas sensações mil.

Tornaste-te um cancro meu.
Mas é a tua ausência que me mata.