domingo, maio 10, 2020

Desabar

"Preciso de desabar contigo."

Fiquei horas a olhar para o cursor da mensagem, piscando enquanto relia o que o corrector automático acabara de escrever. Pretendia dizer "desabafar", mas, naquele momento, "desabar" também me pareceu apropriado, por isso optei por mantê-lo. Sabe mais a mim e eu prefiro assim.

Entretanto, um dos benefícios de se viver sozinha é não precisar da autorização do mundo para se fazer o que se gosta. É não ter de pedir permissão para se ser feliz.

E escrevo-to e digo-to da minha banheira, cheia até cima, quente; o vapor dançando pelo ar com o piano que chega da aparelhagem da sala. Eu, a água quente, o piano, umas velas e um copo de vinho. Cliché? Eu sei. Mas era tudo de que precisava.

Mas estou a adiantar-me.
Queria desabafar contigo sobre o meu dia. Ou desabar, como quiseres.

Nunca fui a maior fã de segundas-feiras, mas o dia de hoje amanheceu especialmente frio e cinzento, como eu; como parece ser habitual quando se está triste. Pensei para com os meus botões que era um jeito irónico de a vida dar um ar da sua graça, a calcar-me mais contra o fundo de mim mesma. Mas não chovia, ainda.
Menos mal.

Meti os fones nos ouvidos para tirar o eco das tuas palavras da cabeça e fiz-me à estrada.

O metro em hora de ponta ia cheio. Não de rostos propriamente alegres, mas todos eles mais alegres do que o meu ou, pelo menos, com algum vislumbre de expressão facial. Mas cheio, ainda assim. E, no entanto, apertada contra ombros e cotovelos e malas de outrem, eu sentia-me sozinha.

O dia no trabalho não foi o meu melhor. Enregelada até aos ossos (e tu sabes como fico quando tenho frio), toda eu era corpo presente. E uma pitada de angústia, talvez. A mente, essa, estava em todo o lado menos ali. (Ok, quem é que queremos enganar...? Não estava em todo o lado. A mente estava toda, apenas e só, em ti, a toda a hora, a todo segundo.)

Pensamentos mil, rodopiando a ritmo inconstante num turbilhão, passando por cima de uns e por debaixo de outros e depois formando finalmente um nó, primeiro na cabeça e depois no estômago. Os burburinhos e as conversas no escritório a toda a volta, mesmo aquelas - especialmente aquelas - direccionadas a mim, eram ruído de fundo. Um crepitar distante e indistinguível a zumbir nos meus ouvidos.

Escusado será dizer que não consegui escrever uma só palavra do meu artigo. A bem da verdade, e porque é sempre importante parecer-se ocupado, despejei de facto uma série de coisas num Word aberto, mas sobretudo a teu respeito, teu e da nossa conversa de ontem - e nem todas elas bonitas. De resto, entreguei-me ao café para garantir que a cabeça, pesada do sono que não dormi, não aterrasse em cima do teclado com um estrondo. E, claro, à esperança de que toda eu fosse invisível para aquele meio mundo de gente.

Não te tinha à minha espera para almoçar, desta vez; agarrado ao teu estúpido cigarro e ao teu livro, aprumado no teu sobretudo. Desci para o almoço de mão dada com esse vazio e pedi meia-dose de aperto no peito para saciar a fome que não me vinha. Podia dar-te o prazer sórdido de dizer que almocei sozinha, mas não encontrei sequer a vontade de comer.

Quando bateram as seis, fechei o tampo do computador, entalei todas as palavras e palavrões que te dirigira e esgueirei-me de volta para o metro. Aguardava-me um cais e mais um metro cheios, mas ainda vazios. Barulhentos, mas mudos ao mesmo tempo: na minha cabeça havia eu e as minhas vozes e as minhas dúvidas e as minhas inseguranças e havias muito, muito tu. Por isso, antes de mais, fones nos ouvidos de novo. Sai daqui.

A gota de água foi a chuva.

Não... Literalmente. Não era um trocadilho. Assim que desci da carruagem, empurrada por aquele mar de gente, entendi para mal dos meus pecados que começara a chover. O chão da minha estação estava debaixo de pelo menos três dedos de água e eu sentia-a a entrar-me pelas costuras dos sapatos e a ensopar-me as meias e os pés.

Entre vasculhar a mala pela carteira para guardar o passe e trocar o telefone de mão sem me enrolar nos fios dos fones; entre os pensamentos que teimavam em fazer-se ouvir e tactear desenfreadamente em busca do guarda-chuva, saí para a rua de rompante, a tempo de ser presenteada pela nuca por uma gota de chuva daquelas bem grossas, bem espessas, camisola adentro e costas abaixo, eriçando-me todos os pêlos do corpo. "Ah, a cereja no topo do bolo", lamentei-me de mim para mim.

Encolhi-me de súbito e estanquei cinco segundos, contorcida debaixo de chuva, até conseguir finalmente abrir o guarda-chuva. Ao som do guarda-chuva a abrir, aquele 'bac' seco, senti-me quebrar e desabar. Agora sim, sem erros de corrector automático. E desabei com todas as forças que já não tinha. Havia chuva a toda a volta, havia chuva no meu cabelo e chuva no meu rosto. Mas senti-me finalmente chorar. E deixei-me. Eu só, debaixo do meu guarda-chuva, com um vazio de ti.

Recompus-me, apenas o suficiente, e arrastei-me pesadamente até casa, pés e roupas e cabelos ensopados até ao tutano. Deixei os sapatos e o guarda-chuva - e a poça que eles faziam - junto ao tapete, à porta de casa. Depois, meti a chave à porta para me esconder do mundo.

"Preciso de um banho quente."
Despi as roupas molhadas no chão da cozinha, ali mesmo. Depois trataria delas; primeiro precisava de tratar de mim e do meu coração.

Liguei a aparelhagem da sala, tão alto quanto socialmente aceite para fim de tarde chuvosa, a chuva a cair copiosamente para lá dos vidros, e enchi da água mais quente a minha banheira.

Foi um dia duro.
Mas sabes uma coisa?

Um dos benefícios de se viver sozinha é não precisar da autorização do mundo para se fazer o que se gosta. É não ter de pedir permissão para se ser feliz.

E escrevo-to e digo-to da minha banheira, cheia até cima, quente; o vapor dançando pelo ar com o piano que chega da aparelhagem da sala. Eu, a água quente, o piano, umas velas e um copo de vinho. Cliché? Eu sei. Mas era tudo de que precisava.

Sim, precisava também de desabafar contigo.
Mas tu já cá não estás.