quarta-feira, agosto 24, 2016

Hoje Não Janto

Eu podia ter muitos defeitos, mas se havia coisa que eu era, quando não me dava para ser procrastinadora, era determinada. Quando era para ser, era para ser! E então lá enchi os pulmões de coragem, saltei da cama e enfrentei o mundo para lá da porta. Nem me dei tempo para me vestir apropriadamente para a ocasião.

É claro que o alvo invisível que tenho desenhado na testa fez efeito de imediato e de súbito tinha vinte pares de olhos, incluindo os da florista da esquina, a sondar cada quilo e centímetro a mais do meu corpo e cada poro da minha pele que há anos não via o sol. Escondi o embaraço por entre os meus cabelos oleosos e hesitei por meio segundo. Mas era a última vez que veria cada uma daquelas caras, cada um daqueles esgares afectados e enojados, portanto eles que olhassem. Pavoneei-me até um pouco, para sentir o sabor, para quebrar por segundos os hábitos já velhos.

A escolha do local ainda me proporcionou alguns debates acesos. Aparentemente temos todos uma ideia muito diferente do que é o sítio ou a forma ideal. Para uns é através de comprimidos, para outros a linha de comboio, para outros a forca caseira... Para mim era claro, não havia grande discussão. Era atirar-me de um ponto alto para o vazio, de coração aberto e olhos fechados, e esperar com todas as forças que Deus me apanhasse a meio caminho, ou depois dele, e me resolvesse todos os meus problemas.

Dentro da opção, pessoalmente, sempre achei a ideia da ponte absurda. Romântica e poética de mais, como se na água doesse menos. Dizem que antes do embate batemos a bota por asfixia, mas, amigos, àquela altura, água é cimento. Betão armado, de braços abertos à nossa espera. No entanto... cimento por cimento, foi precisamente pela ponte que optei. Pensei para mim que talvez me soubesse bem, intimamente bem, ter por cenário o pôr-do-sol sobre o rio Tejo, que é uma coisa que sempre quis ver e, obviamente, nunca vi. Além disso, da ponte é muito mais prático: não se empata o trânsito nas horas seguintes.

Avancei tranquilamente por Lisboa, na mota da minha irmã, despedindo-me em silêncio daquelas ruas que mal conhecia, e encostei calmamente a meio do tabuleiro da 25 de Abril, encenando uma paragem para manutenção de emergência.

O trânsito do fim de tarde prosseguiu normalmente atrás de mim e isso sossegou-me. Tinha aquele momento para mim. Então, inspirei fundo como nunca antes tinha inspirado. Ali, de cintura pressionada contra o corrimão da ponte, não havia medo. Não havia sufoco. Não havia ódio, nem nojo. Não havia obsessão. Não havia quilos a mais. Não havia a vontade de devorar tudo, nem a culpa de ter devorado. Não havia cortes nem cicatrizes na pele. Não havia o sabor a bílis e a sangue na boca. Não havia amígdalas inchadas. Não havia queda de cabelo nem tão-pouco queda de amor próprio. Havia, sim (para lá do trânsito e do odor nauseabundo da gasolina), o bater das ondas nas docas lá em baixo, o cheiro húmido da maresia no ar, as gaivotas cacarejando ao longe e o insubstituível pôr-do-sol lisboeta, com o sol espelhado em mil reflexos na água e o céu do mais bonito laranja que pode haver. Acho que esbocei um sorriso e, por uma vez, me senti viva e livre dentro deste corpo morto que teima em aprisionar-me. Hoje venço eu.

O relógio no meu pulso apita. São 20h30, é hora de ir. Às 21h darei à costa, já livre se Deus quiser, e os meus pais e a minha maninha terão a despedida que eu não fui capaz de lhes dar. Avisei-os só de que hoje não jantava.

Debruço-me para a frente e começo a escorregar pelo corrimão, de frente para o pôr-do-sol. Fecho os olhos. Respiro fundo e com toda a calma do mundo dou o impulso final. De olhos fechados, já solta, sinto-me em queda livre atrás do peso da minha cabeça... É agora. Finalmente.

Só espero que não doa.