sexta-feira, novembro 27, 2015

Ponto por Ponto

Ninguém gosta de pontas soltas. Por isso, listei num pequeno bloco todas as pontas que me faltavam atar e dia após dia comecei a riscar-te da minha vida. Ponto por ponto.

Precisava urgentemente de te arrancar de mim, de te extinguir do meu corpo como se extingue um fogo. E, por fim, de varrer e soprar da minha alma a tua cinza e os teus pós. Grão a grão. Ponto por ponto.

Comecei pelo que tinha mais à mão. As fotografias. Esses fantasmas que me observavam silenciosamente de todos os cantos da casa. Aquele, em particular, que me olhava fixamente da mesa-de-cabeceira enquanto dormia e que me saudava, a mim e à minha mágoa, todas as madrugadas de sorriso aberto e de faca em riste, pronto a cravar-ma entre as costelas.

Despedi das prateleiras e móveis todas as molduras que encontrei. Despedi-as, despedi-me delas e guardei-as onde nunca mais me lembraria de as procurar. De seguida, passei um pano no pó e na memória que sobrava delas em todo o lado, para não deixar vestígios. No lugar delas ficou apenas um vazio inocente.

Seguiram-se as tuas coisas. Os bocados de ti que ainda guardava sob o meu tecto. Arrumei-as uma por uma, com a saudade prenunciada de quem se despede dos filhos partindo para a guerra, e empacotei-as para tas fazer chegar dentro de breve.

Ias partindo aos poucos, à medida que riscava da lista os estilhaços da tua recordação em mim. Envolvendo-te mais e mais numa neblina difusa, como quem se distancia numa noite de nevoeiro.

Esqueci a tua voz.
A vida tratará de me fazer esquecer também o teu cheiro, o sabor dos teus lábios, o teu toque, o vício dos teus hábitos e, a seu tempo, as tuas feições. Há-de queimar de mim essa tua droga de que ainda ressaco.

E depois silêncio. O ar puro à minha volta e o eco do meu coração batendo livremente no meu peito. Apenas e só.

Ninguém gosta de pontas soltas. Por isso, listei num pequeno bloco todas as pontas que me faltavam atar e dia após dia risquei-te da minha vida. Ponto por ponto.

sábado, novembro 14, 2015

Sexta-feira, 13

Fechei a porta atrás de mim. Fechei a porta atrás de mim e tranquei lá fora os problemas do trabalho. Esses e todos os outros. Agora era só eu e os silêncios do meu apartamento. 

Um banho quente... Era de um banho quente que precisava, com tão pouca luz quanto possível, para lavar de mim o stress do dia e a loucura do mundo.

Deixei a água quente correr. Deixei que fervesse e que o vapor se apoderasse do ar. Enquanto isso, recolhi três velas e acendi-as ao fundo da banheira.

Libertei-me das roupas pesadas do dia. Passei-me para dentro da banheira, corri a cortina e mergulhei de uma vez só para debaixo do chuveiro. Deixei que a água quente me envolvesse e que sugasse para o ralo cada aflição que teimava em viver em mim. Os pensamentos dentro de mim eram como cordeiros num matadouro, a cirandar cegamente num labirinto à espera da sua hora de morrer num beco sem saída.

Tudo o que eu via era a luz das velas esborratada contra o vapor que pairava. Os meus músculos amoleciam, os meus joelhos ameaçavam ceder sob o peso do meu corpo e tudo o que eu ouvia, já longinquamente, era a água que me caía na cabeça e aos pés.

Hoje, por uma vez na vida, dava graças a Deus por ser sozinha. Não seria capaz de suportar a dor das centenas de famílias, avós, pais, mães e irmãos, que lá fora e na televisão choram, entre os gritos e as sirenes que encheram a nossa noite. Agora quero deitar-me, esconder-me da realidade e esperar que amanhã seja um dia melhor; esperar que quem sofre encontre neles a força que eu não teria para enfrentar a perda e o horror.

quarta-feira, novembro 11, 2015

Cicatrizes de Guerra

Alternava entre os cigarros e as unhas, quando as tinha, sempre que ias. Ia deixar os miúdos à escola de manhã e enquanto não era hora de os ir buscar limpava a casa de alto a baixo três vezes ao dia, só para me manter ocupada. Quando já não havia mais uma pinga de pó para limpar ou uma peça de roupa para lavar e engomar plantava-me à janela e observava as beatas, uma atrás de outra, a derreter-se por entre os meus dedos.

Os dias eram longos e cada segundo parecia demorar uma eternidade. Ouvia na minha cabeça os tiros que te rodeavam e tremia só de os imaginar. Só esperava ver-te surgir no horizonte, recortado no céu, de capacete na mão e mochila às costas, naquele teu passo exausto. Nada me trazia maior felicidade.

Congelei no dia em que quem vinha ao longe não eras tu. No dia em que me bateu à porta a notícia, como todas as noites nos meus pesadelos. Desde então, para além da cinza nos meus dedos derretem-se as lágrimas na minha cara, por entre soluços sufocados.

Salvaste a Pátria e agora eu tenho de salvar o nosso Lar, mas como é que se explica a um rapaz de seis anos que sonha ser como o Pai que partiste numa viagem para não voltar mais?