quinta-feira, janeiro 28, 2016

Bittersweet Sixteen

Eram três da manhã quando o telefone tocou e me arrancou do sono.

"Mãe". Duas chamadas não atendidas. Do outro lado da linha, a voz saía-lhe tremida, entre soluços e gaguejos, num pranto descontrolado. Filtrei-lhe as palavras "a tua irmã". Queria não ter filtrado, queria não ter percebido. "A tua irmã", repetiu ela, vincando as palavras e pregando-as a sangue frio na minha incredulidade.

Três palavras bastaram para eu cair em mim. Para eu me despenhar em mim como se despenha contra o solo um avião. Um embate brusco no meu fundo, uma explosão em cadeia e depois estilhaços e destroços ardendo por toda a parte.

Era a noite dos dezasseis anos dela. Como de costume, juntáramos a família na casa dos nossos pais e jantáramos juntos uma vez mais, à luz do sorriso fulminante dela. Horas antes, cantámos-lhe os parabéns e ela soprou as velas. Desde que celebrara o primeiro ano de vida era aquele o momento do dia dela que mais a fascinava. Vencer de um só sopro todas as velas do bolo. E eu teci-lhe o habitual comentário de que me recusaria a comer uma fatia que fosse, com receio de engolir os perdigotos dela. E apesar de provavelmente cansada da piada, ela respondeu-me mais uma vez com aquela gargalhada de criança que lhe era característica.

Era a noite dela e ela, que sempre fez tudo tão certo, apenas pediu para, no conforto da excepção, ficar até um pouco mais tarde no café com as amigas. E assim a vimos sair pela porta, depois de nos apertar no abraço mais ternurento do mundo, de olhos a brilhar. Mal imaginávamos nós que aquela era a derradeira despedida.

Os sweet sixteen dela perpetuaram-se agridoces na passadeira daquela estrada, no lugar certo à hora errada, às mãos de alguém demasiado apressado para esperar só mais dez minutos para responder a uma SMS. Sem saber em que mais pensar agora, posso só procurar consolo na esperança de que, na sua inocência pura, ela não tenha chegado a dar pelo automóvel e que se tenha mantido radiante até ao último segundo, desfilando alegremente pelos traços pretos e brancos no seu vestido azul. É assim que quero recordá-la...

Eram três da manhã quando o telefone tocou e me arrancou do sono. 
Não. Eram três da manhã quando o telefone tocou e te arrancou de mim.

Até já, Miúda.

terça-feira, janeiro 19, 2016

Anjos e Demónios

Ele era a minha cura e ao mesmo tempo o meu veneno.

Injectou-se de mansinho nas minhas veias como um antídoto, mas a substância activa de que era feito acabou por controlar todo o meu sangue e arrepiar-me da cabeça aos pés. Sabia tirar-me das sombras com que me habituei a vestir-me, mas sem saber fez de mim Rainha do meu tabuleiro de xadrez, peão do meu próprio jogo, quando à minha volta iam tombando todas as minhas defesas - bispos, cavalos e torres: sem escapatória, nua e exposta entre a espada e a parede, o coração ribombando aceleradamente à espera de ouvir sussurrar um letal "xeque-mate".

Enquanto não o escuto, fecho os olhos e faço-me refém de mim mesma. Alheio-me da guerra que explode com o meu mundo em meu redor. Sinto-me segura no meu silêncio. Equilibrada.

O teu calor fez do meu gelo água, sem forma, fluindo e dançando livremente dentro do meu corpo. Mataste à queima-roupa o frio em mim quando me trouxeste o teu lume e por isso preciso dessa minha estabilidade para voltar a definir-me. Para estagnar as águas que se agitam em mim como o mar contra as rochas.

De momento, sou peças soltas e espalhadas de um puzzle maior. O meu puzzle. Sou pedaços de um espelho partido, que juntarei minuciosamente para reconhecer nele o meu reflexo sem fissuras. Sou migalhas ao vento, de que me alimentarei a pouco e pouco para matar o jejum e a fome de mim.

Ele era a minha cura e ao mesmo tempo o meu veneno. Estava determinada a sugá-lo e a cuspi-lo para fora de mim, mas era já sangue do meu sangue e os meus lábios queimavam-se-me e ardiam-me ao tocar-lhe. Ele era a minha cura e ao mesmo tempo o meu veneno.

sexta-feira, janeiro 08, 2016

Adeus

Assusta-me.

Assusta-me o avanço da doença que se alimenta de mim. A progressão lenta e venenosa do tempo nos dias que vão passando por mim a voar. Assusta-me. Mais do que o cabelo, assusta-me perder faculdades. Assusta-me abdicar aos poucos do controlo sobre o meu corpo e, mais ainda do que isso, deixar ao acaso o controlo sobre o pensamento como quem larga cinzas ao vento.

Assusta-me poder esquecer-me de ti. Esquecer-me do teu nome e deixar de te reconhecer as feições e a voz. Assusta-me deixar de associar as ondas do teu cabelo às indomáveis ondas do mar, grisalhas como as montanhas dos alpes. Assusta-me que tudo isto - que quem sou e quem fui, e quem somos e fomos em conjunto - se reduza mais dia menos dia a um vislumbre apagado, resignado a um recanto sombrio da minha mente, sentado ao frio onde eu próprio não me consigo encontrar.

Mais do que me falhe o coração, assusta-me que a mente me atraiçoe. Assusta-me que a par e passo tudo se esfume e que as memórias brinquem comigo como as crianças brincam às escondidas. Assusta-me perder a noção do tempo e do espaço. Que será não reconhecer os próprios filhos? Que será sujeitar-te todos os dias a ouvir-me perguntar-te quem és? Que será ver-vos chorar e sentir-me indiferente por já não saber quem são...?

Assusta-me.
Assusta-me, mas perdoa-me porque eu sinto que está para chegar.

quinta-feira, janeiro 07, 2016

A Aliança

Perguntaram-me se tiraria do dedo a tua aliança.

Revoltou-me a questão. Revoltou-me e não consegui dar voz a mais palavras senão a um “não” praticamente mudo. Parecia-me tão evidente a resposta que um só “não”, seguro de si, seria mais do que suficiente para ela.

Não que alguma parte disto seja simples, mas quando o que se vive é assim tão genuíno, tão intenso e tão suado que ainda hoje me dá arrepios, a aliança é uma tatuagem que se grava a ferro em brasa no corpo e que vive como uma extensão de nós. É como se o metal se fundisse connosco e nos desse a beber diariamente a energia de tudo o que aos poucos construímos, em conjunto, em torno dele. O bom e o mau. O agradável e o desagradável. O fácil e o difícil. As virtudes e os defeitos. As convergências e as divergências. A paz e a discussão. Os silêncios e os clamores. As vitórias e as derrotas. Os sucessos e os fracassos. O erro e a aprendizagem. O desequilíbrio equilibrado.

As viagens de veleiro por esse mundo fora, à descoberta de mares e terras incógnitos. Um lar erguido orgulhosamente pedra sobre pedra, forjado a suor e lágrimas. Os jantares a dois. As lágrimas substituídas por sorrisos quando trouxemos ao mundo a primeira criança. E a segunda e a terceira. Os jantares a cinco. Os primeiros passos, as primeiras asneiras. As primeiras cabeçadas na esquina do móvel do corredor, volta e meia, e os primeiros sacos de gelo na testa deles até se me congelarem os dedos, o punho e meio antebraço. O ensino, a educação. As primeiras derrotas deles, as primeiras quedas e os primeiros triunfos. O cão. Os jantares a seis. As almoçaradas no quintal. As correrias. O cão fazendo de cavalo. As roupas sujas de lama. O primeiro impacto da faculdade. As namoradas. O primeiro casamento. O segundo e o terceiro, quase de seguida. Os netos.

Escrevemos uma história juntos. A tinta incerta, é certo, por esses milhares de páginas brancas que fomos preenchendo sem tremer. E como todas as histórias, não existe exactamente um fim. Há sempre um lugar reservado para a nossa imaginação; para definirmos para nós o que sucedeu para lá das últimas palavras escritas. É aí que nos permitimos voar e é aí que estou. É aí que estamos. É aí que a nossa aliança rodopia e vibra incessantemente. É que há coisas que nada na Vida, mesmo algo tão definitivo, tão perene e tão voraz como a morte, apagam ou destroem.

Podia continuar. Podia falar e não me calar mais hoje. Mas optei pelo “não” solteiro.

sábado, janeiro 02, 2016

A Carta que Nunca te Escrevi

Não me sai da cabeça a guerra.
Não me sai do corpo. Está em todo o lado, em cada osso, em cada fibra de cada músculo. Rasteja-me debaixo da pele, entope-me todos os poros. Vejo guerra, oiço guerra e respiro guerra. Vejo mortos, oiço tiros, detonações e gritos e respiro sangue e pó. Mesmo quando não vejo, não oiço e não cheiro coisa alguma.

Penso em ti sempre.
A minha pedra basilar. Seguro-me à minha espingarda com a vida, como se isso me segurasse a ti e a nós para sempre. Apertar entre os dedos este punho na calamidade que aqui se vive é apertar no coração, à distância, o nosso lar e a segurança e o conforto de aí estar.

Penso no miúdo.
Aqui há dias pensei que já deve ter a altura da minha espingarda de pé e ainda me ri sozinho à conta disso. Rir neste inferno, imagina tu. Estou ansioso por poder dar-lhe a conhecer e ensinar-lhe as coisas boas da vida, como um bom Big Mac, um sundae de caramelo, fazer xixi de pé, andar de bicicleta, conduzir o trator do Avô à socapa lá na quinta, um ou dois palavrões de homem a sério, dar um bom gancho de direita para as ocasiões, engatar a futura mulher num pub ao tropeçar "acidentalmente" em si próprio, pedir a mulher mais espectacular do mundo em casamento num pôr-do-sol no topo do Rockefeller... Essas coisas normais de ser-se pai.

Por falar nisso, dá um beijo aos meus pais.

Tenho saudades tuas.
Tenho saudades vossas e esta é a carta que eu escreveria se não tivesse sido atingido na cabeça e no peito esta madrugada.