sexta-feira, abril 19, 2019

Impermanente

"Um dia destes eu vou morrer, Tomás."

Foi assim que a minha Avó abriu o jogo comigo, certa vez. Quebrou o gelo e quebrou-me um pouco a mim.

Eram já óbvios os sinais da doença, a fraqueza nos gestos delicados e a ligeireza nas palavras. Mas era a primeira vez que me falava abertamente da Morte; da morte dela em específico, dela que me era tão querida.

Balbuciei timidamente.
"Mas porquê? Eu não quero que morras."

Da voz emanava-lhe uma paz que eu estranhava, profunda, leve, ainda envolta no tom doce de sempre.

"Porque é assim que as coisas são, meu querido. Temos de morrer para dar lugar a quem nasce de novo. Além disso, é preciso receber num abraço a Morte para sentir verdadeiramente o sabor da Vida."

"Não compreendo. Porque não podes apenas ficar para sempre?"

"É a ordem natural de todas as coisas. O que quero que guardes bem no fundo do teu coração é que tudo acaba e tudo muda. Tudo é finito e impermanente. O bom, assim como o mau. O êxtase e a felicidade, a dor e o sofrimento. As paixões e os sonhos. E eu lamento ter demorado uma Vida para o compreender. Gostava por isso que tu o percebesses mais cedo. Hoje é cedo de mais, eu sei, mas é talvez o cedo mais tardio que eu vou poder dar-te.

Tudo é apenas transitório. As tempestades no mar. As estações do ano, de calor neve e chuva, de chuva arco-íris e cor, de cor brisa e pólen, de brisa praia e calor. As folhas nas árvores, que se desprendem das ramagens secas e rodopiam graciosamente pelo ar já frio até ao chão, e as flores nos jardins, que primeiro brotam da terra húmida, erguem-se corajosamente para pintar de todas as cores o mundo e de seguida secam e murcham.

As pessoas, como todos os outros seres vivos, nascem, envelhecem e depois morrem, para outros poderem nascer também. Também os objectos são criados, usados e passados de mão em mão, até que por fim são destruídos. E, claro, os momentos que, como as marés, vêm, borbulham um pouco na rebentação à beira-mar e depois regressam, para ficarem escritos apenas na tua memória, em fotografia, um vislumbre distante do que foram, com sabor a sal e saudade.

As ondas que vêm depois são outras, parecidas talvez, mas com outros nomes, outra força, outros motivos. Outros olhos, outros sorrisos e outras lágrimas. Cada momento é um momento que não tornará a repetir-se. Nunca saberás quando alguém de quem gostaste muito vai sair definitivamente da tua vida, para não voltar mais. Num momento estão lá e tu toma-los por garantidos; no outro não voltam mais, porque a Vida os levou por caminhos diferentes, ora deste lado do mundo ora no outro, e em ti fica somente um vácuo que não sabes preencher."

Permiti-me um tempo para digerir cada palavra, na linguagem que me era então possível interpretar.
"Isso é triste, Vó... Podemos fazer alguma coisa?"

"Podemos, claro. Basta aprendermos a estar verdadeiramente presentes. A ser. A sentir, sobretudo, em gestos simples de Amor. A escutar atentamente, até ouvirmos no ar o batimento dos corações dos outros. E devemos, nesse momento de silêncio, de escuta e presença, ser eternamente gratos. Praticar a gratidão a cada dia por cada um desses momentos, por cada olhar, por cada palavra, por cada gesto, por cada carinho, por cada abraço, porque cada um é uma bênção que vai e não volta."

Fez uma pausa.

"Ah, e não percas nunca uma oportunidade de dizer a alguém o quanto é importante para ti e o quanto gostas dela. Isso sim é o mais importante. Faz isso e serás Feliz."

Assenti sem hesitações.
"Eu adoro-te, Vó."

Ela sorriu e a minha alma sorriu de volta.