sexta-feira, abril 29, 2016

Para Quem a Lama é Ouro

De repente esqueci-me por que estávamos a lutar.

Era a minha terceira jornada em guerra, longe de casa e fora do meu país. Nesse período, vi muita coisa. Testemunhei mais do que desejava e assisti às cicatrizes a brotarem-me à flor da pele e à flor do coração. Fragmentos de explosões, golpes de faca e ferimentos de balas. Irmãos de armas mortos, amputados, desfigurados e tantos outros feridos. Mas aquela imagem fez parar o mundo. 

Tínhamos acabado de abrir caminho em território hostil. Um lamaçal nas imediações dos destroços que sobravam daquela terriola. Achava-a deserta, já que não tínhamos avistado ninguém. Nem um pio. Só o vento varrendo as ruínas, os motores dos jipes e os passos secos de quem, como eu, seguia a pé. E os chocalhos da água nos cantis e das fivelas nos capacetes.

Atrás de nós vinham em coluna dois carros de combate, artilharia pesada. Ao atravessar o lamaçal, os carros abriam fendas na terra e as fendas depressa cediam lugar a poças, de uma água mais acobreada que os nossos coletes. E do silêncio asfixiante, uma criança de meio metro, escondida apenas entre pele, ossos salientes e uma coragem do tamanho do universo, arrasta-se para fora das ruínas e afoga a boca nas poças que deixávamos para trás, secando uma por uma. Via-lhe o coração bater por debaixo da pele seca, tal a magreza. De cérebro congelado, consegui apenas antes de seguir caminho deixar-lhe cair, como ali a mim tudo me caía, o cantil que trazia à cintura.

Sei contar de trás para a frente a história de todas as minhas cicatrizes, mas não encontro palavras à altura daquela nova que acabava de ganhar. 

Há verdades que ferem mais que balas.

quinta-feira, abril 28, 2016

Frágil

Tens o hábito terrível de partir do pressuposto que temos pela frente muitos e longos anos de vida, tu e eu e toda a gente. Mas em última análise, a vida é estupidamente frágil e não nos permite saber quem fica e quem parte, ou tão-pouco quando parte quem parte.

E então talvez fosse sensato relembrares isso com maior frequência, para que quando ao fim do dia te deitares tenhas absoluta certeza de que não deixaste alguém desapontado ou magoado, alguém com o pensamento amargo de te ter magoado a ti porque decidiste adiar explicações para outro dia - ou quem sabe para nunca - ou para teres absoluta certeza de que não deixaste alguém a quem gostarias de dizer o quanto significa para ti sem uma palavra.

A vida prega partidas e a verdade é que nunca vais saber quando foi a última vez que viste alguém, a última vez que tiveste a oportunidade de lhe dizeres e de fazeres com ela todas essas coisas que foste acumulando e tens em ti guardadas.

Talvez valha a pena pensar nisso.

(28/04/2014)

quarta-feira, abril 27, 2016

Ciência da Alma

Desde criança que acredito em almas. Enquanto todos acreditavam em Deus, na Vida depois da Morte, no Céu e no Inferno, eu acreditava somente em almas. E era gozado por isso.

É claro que a princípio não entendia a complexidade que o conceito envolvia. Na mente do meu eu pequeno, as almas eram imaginadas como minúsculos seres azuis conduzindo os corpos das pessoas à minha volta, sentados ao volante das suas vidas nos cockpits das suas cabeças. De cinto apertado e tudo. O cabelo no topo das cabeças servia, como era óbvio, para não deixar as almas ao frio.

Com o passar dos anos, a minha visão mudou um pouco e as pequenas almas azuis dissolveram-se num pó invisível que corria no sangue das pessoas, nessa encruzilhada de veias e artérias que eram como auto-estradas para elas. Se antes imaginava as pequenas criaturas azuis mais gordas ou mais magras consoante a figura ou a personalidade de cada pessoa, nesta fase media as diferentes almas em termos de densidades e formas desses pós, ainda que invisíveis. Quanto mais denso e quanto maior a dimensão das suas partículas, dos seus grãos, mais vincada e mais audaz a alma. Agradava-me a perspectiva científica da questão.

E então caiu-me nas mãos, como um pára-quedas furado, a expressão de alma gémea. A ideia baralhou-me. Como assim, "gémea"? Seriam dois pós congéneres? Alojados algures num mesmo quadrado imaginário da tabela periódica? Ou duas substâncias diferentes, soluto e solvente, com elevado coeficiente de solubilidade, capazes de se fundir na perfeição?

Mas de que forma estava isso relacionado com o amor, de todo o modo? E então como funcionava essa conversa que tanto ouvia, entre choros e soluços dos mal-amados, de que "nada dura para sempre" e de que "o que é bom acaba depressa"? Uma solução perfeita não se inverte assim tão facilmente, tão espontaneamente.

Então, num esforço mental, aceitei a hipótese de a alma ser não um pó, mas algo de imaterial. E, aceitando, porque não estender à alma imaterial a teoria de Lavoisier, de que "na Natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma"? Poderão as almas desviar-se das auto-estradas do sistema sanguíneo e saltar de corpo em corpo? Poderão as almas gémeas escolher um dia habitar noutra casa, num outro corpo, dando lugar a uma com quem a nossa alma incorpórea não se identifique mais...?

Fica-me a dúvida. Mas quero acreditar que sim. Talvez assim os amores não tenham sempre um fim, como dizem, mas apenas uma mudança de rumo. Talvez deixem de dar vida e brilho a um par de olhos e passem a dá-los a um par diferente. Então não acaba. Temos só de seguir espreitando na janela de cada um dos outros corpos em redor, até (re)encontrarmos, no seu cockpit vago e indefinido, o nosso soluto ou o nosso solvente.

sábado, abril 09, 2016

Quando o Céu Fica Cinzento em Nova Iorque

O céu sobre Manhattan nasceu cinzento, sem um sorriso.

Nasceu cinzento e teimou em manter-se assim. Por alguma razão, o cinzento do dia contagiava as pessoas; colava-se-lhes como uma sujidade que não sai. A mim, sobretudo. Mais do que nos outros dias todos.

Estava há horas enterrado na cadeira, no canto mais isolado do escritório, à espera que uns e-mails se esbarrassem na minha caixa de entrada; à espera que aquele apito de aviso irritante me martelasse os tímpanos de novo. Cansava-me a espera, a inactividade... Nos dias cinzentos tudo me cansava mais, como se o pavio da paciência encurtasse drasticamente. Aborrecia-me.

Perguntaram-me se queria descer para fumar um cigarro. Queria só descer. Queria fazer qualquer coisa que não aquilo e por um instante quase ponderei voltar a fumar um cigarro só por cinco minutos de escapadela. Mas abanei a cabeça e eles desceram sem mim.

Enquanto ouvia o elevador a chegar e a liberdade e o ar puro a fugirem de mim, empurrei-me até à janela. Apoiei primeiro o cotovelo na secretária, depois o queixo na mão e depois a testa no vidro gelado. E então entretive-me a observar as pessoas na rua, a fumar o meu cigarro imaginário.

Por alguma razão, no meio de toda a multidão, os meus olhos colaram-se a uma mulher de chapéu, elegante quase ao estilo de SoHo, como se colavam às pessoas os dias cinzentos. Saía de um edifício do outro lado da estrada; chapéu, óculos escuros, gabardina e bota alta. Parou junto à passadeira, à espera que o semáforo abrisse, e ajeitou o chapéu na cabeça. Depois o semáforo abriu e eu perdi-a quando ela atravessou a estrada. E voltou-me o aborrecimento.

Ouvi o elevador chegar. Tinha acabado a pausa do meu cigarro virtual. Resmunguei para mim próprio; ainda não me sentia pronto para me descolar da janela. Precisava de um último bafo. Mas o meu silêncio interior foi interrompido pelo eco de uns tacões aproximando-se e depois por uma voz estranha, terna:
- Mr. Gordon? Bom dia!
Não soava nada a cinzento.
Os meus olhos saltaram da rua e das pessoas para umas botas altas, para uma gabardina e para umas mãos segurando um chapéu.
- Tinha uns e-mails a que lhe responder, mas tinha assuntos a tratar nas redondezas e então pensei passar aqui e falar consigo pessoalmente.
O sorriso dela desarmou-me e despiu de mim o aborrecimento.

Dizem que tudo o que é preciso são 20 segundos de loucura. Por uma vez na vida deixei-me ser louco e no fim de tudo convidei-a para um café.

Hoje não está de chapéu, mas está de vestido de noiva à minha espera no altar.