terça-feira, outubro 16, 2018

Début

Vives em mim num canto, numa parte de mim que sozinha eu não sei identificar ou encontrar, por muito que procure.

Hoje reencontrei-te, para minha felicidade. Reencontrei-te quando pela madrugada recomeçou a chover, depois do calor, depois da seca, depois do Verão que não quis terminar. Reencontrei-te nos primeiros pingos de chuva contra a janela, a acordarem-me lenta e docemente, como costumavas fazer com os teus beijos suaves pela manhã, para me puxares de mansinho dos meus sonhos para a luz de um novo dia.

Ecoou-me na cabeça o som do teu piano, a Début a soar ao longe, directamente da sala, à distância da lembrança e da saudade. Soube em mim a falta que me faz o teu calor na cama agora fria. A falta que faz a esta casa e a este coração a tua música e o teu amor por todas as coisas, que eu nunca soube explicar. E o compasso encantador da Début prolonga-se casa fora, arrastando-se demoradamente pelos confins da minha memória, e leva-me ao som das teclas e da chuva numa viagem por nós.

E eu viajo em mim, pela história que me ajudaste a escrever, letra por letra, palavra por palavra, desde a primeira vez que demos a mão e entrelaçamos os dedos e os sonhos. Desde o primeiro beijo tímido, inseguro. O primeiro passeio à beira-mar. E o segundo. E depois todos os outros que foram felizmente virando rotina; a minha rotina preferida. O passeio de balão lá do outro lado do mundo, de onde, no silêncio lá de cima, vimos como era grande o mundo e por isso como era grande a sorte de nos termos encontrado um ao outro.

Sinto escorregar uma lágrima e oiço-a pingar silenciosamente no chão da nossa casa. Mas sinto mais ainda um sorriso, magoado por não poder ter-te mais, mas eternamente grato por ter tido, durante todos estes anos, durante todos esses dias, durante todas essas horas, essa sorte. Foste, és e serás sempre música em mim. A minha música. O ritmo da minha dança. A vida e cor e brilho de um mundo que tentavas fazer melhor em cada instante, a cada fôlego teu. E, por isso, não choro apenas. Não choro só. Sorrio muito e sorrio de cada vez um pouco mais, sempre que, por sorte do meu dia, te reencontro.

Porque vives em mim num canto, numa parte de mim que sozinha eu não sei identificar ou encontrar, por muito que procure. Mas saber que te tenho em mim é tudo de que preciso; é tudo quanto baste.