domingo, novembro 04, 2018

Geometria de Avó

À medida que fui crescendo fui aprendendo a apaixonar-me por alguns temas da Vida. Um deles é o da forma curiosa como funciona o nosso cérebro. E, em particular, a forma curiosa como ele gera, gere e processa os sonhos. As causas, as formas e os efeitos.

Hoje sonhei de novo com a minha Avó. E é engraçado como vou sonhando com ela de tempos em tempos e como vou, a cada sonho, retirando para mim lições de Vida cada vez mais significativas e mais plenas.

Nunca te contei, mas apesar de professora de Desenho, a minha Avó ajudava-me muito nos meus primeiros contactos com a Matemática, sobretudo, claro, na parte da Geometria. E, mais tarde, nas forças da Física. Foi com uma dessas sessões de estudo acompanhado que sonhei esta noite.

Por alguma razão, desta vez não consigo recordar-me da envolvente lá de fora, para lá das paredes da cabana dela e para lá do alpendre. Não sei se foi num dia soalheiro, daqueles que pintava o céu no horizonte de um tom dourado, ou num dia de chuva rigorosa de inverno. Fiquei retido na mensagem das palavras dela. Na melodia que elas me cantavam, uma sílaba de cada vez.

Com exemplos práticos, perceptíveis para uma criança, ela ensinou-me a caracterizar um vector, de acordo com as suas três dimensões: direcção, sentido e intensidade. Ilustrava-mos por desenhos, naturalmente, em que uma das partes era um esboço dela, na qualidade de minha Avó - já curvada sobre a bengala dela, com os óculos meia-lua e o cabelo meio desalinhado e apanhado num carrapito -, e a outra era eu, num esboço com metade do tamanho do dela (era a escala real, porque apesar de Gigante no coração ela era pequenina, até para mim), com as bochechas bolachudas e rosadas.

No rascunho dela, entre nós dois, desenhava aquilo que para mim eram apenas umas setas. E explicava-me que as setas traduziam um movimento. Por exemplo o movimento descrito pela mão dela quando me oferecia em mãos um "chocolate da vaca" (não me perguntes, sempre foi assim que em casa lhes chamávamos, pela vaquinha que vinha desenhada no rótulo). A direcção era entre nós, a linha invisível que nos unia. O sentido era dela para mim. A intensidade não percebi bem.

Então ela explicou-me que se relacionava com a força do movimento ou, de novo em termos práticos, com a sua velocidade. Apercebi-me pela expressão no seu rosto de que ela se debatia internamente com uma forma fácil de me fazer compreender o conceito. Uns segundos depois, ela debruçou-se sobre o desenho, apagou as setas que nos separavam e no seu lugar desenhou uma mesa. Debaixo de cada um de nós uma cadeira. Em cima da mesa, do meu lado, uma bola do tamanho do meu punho.

"Se eu te pedir para me passares a bola com cuidado, a intensidade deste vector, que descreve o movimento da bola do teu lado da mesa para o meu... ", desenhou uma seta minúscula a azul enquanto falava, saindo da bola, "... vai ser pequena. Vais fazer pouca força na bola porque eu te pedi para teres cuidado. Entendes?"

Lembro-me de acenar cautelosamente.

"Mas se, por outro lado, eu te disser para me passares a bola com a máxima força que conseguires, tu vais bater na bola. A palmada mais valente que já deste! E ela vem a voar para mim com toda a velocidade" e desenhou uma segunda seta, desta vez a vermelho, com talvez o triplo do tamanho da anterior. E o meu mundo ficou mais claro.

A partir daqui a conversa ficou mais difusa para os meus 11 anos da altura. E manteve-se assim durante os 15 anos que se seguiram, até à noite de hoje.

"Os vectores são uma das coisas mais importantes do teu dia-a-dia e, por isso, é importante que os compreendas bem. Queiras ou não, vais criar vectores com todas as pessoas que conheceres, em todas as direcções. Entre ti e cada uma delas. Uns mais importantes, outros menos; uns mais intensos e outros menos. E com diferentes sentidos também. Uns unilaterais, de ti para eles, de dentro para fora; outros unilaterais, deles para ti, de fora para dentro. Uns bilaterais, de ti para eles e deles para ti, em comunhão. Outros sem sentido."

Ajeitou os óculos no nariz e sorriu-me com aquele sorriso terno, doce.

"A grande maioria desses vectores não vais poder controlar, não na totalidade, pelo menos: as direcções vão existir sempre, enquanto linha invisível que te liga a cada pessoa no Mundo. Mas podes controlar o sentido delas, no que te diz respeito. Não podes controlar o que vem de fora para dentro, é claro, mas podes controlar o que vai de dentro para fora, na bondade, na gentileza e no amor. E podes - e deves - sobretudo controlar a intensidade desse sentido de dentro para fora, que é o sentido mais importante da Vida, naquilo que dás de ti a cada dia, nessa bondade, nessa gentileza, nesse amor. Em cada palavra e em cada gesto. E não tenhas nunca medo de os dar em demasia, em excesso, porque de excesso de bondade e gentileza e amor podem apenas resultar coisas maravilhosas.

E quanto mais de ti deres ao Universo, melhor ele cuidará de ti, porque para cada força, para cada acção, haverá a seu tempo uma reacção. Mas isso já é Física e portanto fica para outro dia."