terça-feira, outubro 25, 2022

Às Vezes Preto e Branco

Fez três meses que me morreste. Três. 

E, sem que eu soubesse, fez também três meses que morreu muita coisa de mim. Muita coisa do que eu sou; do que eu era, do que fui. Morreu-se-me, entre outros, a música que era viagem de ida e volta do coração às pontas dos meus dedos. Morreu-se-me nos braços a poesia, seca na fonte como secam e murcham e morrem as flores. 

Mas aqui estou. A sós na sala, enquanto toda a casa dorme, a falar para ti. Não contigo, desta vez, mas para ti. Sem rascunhos, como o eram as conversas que íamos tendo. 

Dei por mim a pensar em ti esta manhã, presa no trânsito debaixo de chuva copiosa, no pára-arranca que tanto te aborrecia. Provavelmente isto parecer-te-á uma palermice, mas não é que estejas cá para fazer pouco de mim e das minhas lamechices, não é? 

Pois bem. Entre buzinas e os gemidos dos pára-brisas frenéticos baloiçando para trás e para diante, passava na RFM aquela música de que a Alice tanto gosta. Dá pelo nome de "Às Vezes". O trânsito não andava, de maneira que, sem que ela desse conta, eu observava pelo retrovisor a Alice a trautear a música alegremente. Aliás como sempre, relembrando-me a mim mesma da promessa que fizera de a aprender para a cantarmos juntas (bom, para uma de nós a cantar, pelo menos). 

Todavia, quando me entregava a absorver as palavras que a compõem, desta feita detive-me no "às vezes". Assim, solto e só. O resto era névoa e vazio e silêncio e mar a toda a volta. "Às vezes". "Às vezes" em eco, ao longe e depois ao perto, a ressooar em mim de alto a baixo, da cabeça até aos pés e depois subindo e descendo, vibrando, remexendo. Sentia-o de uma forma diferente, de uma forma muito verdadeira. E detive-me, concluí, porque me encontrei nessa verdade, bem no centro dela. Nesse limbo frágil, mas muito real, que é Ser-se "às vezes".

Ser-se às vezes doce, às vezes amarga. Às vezes luz e alegria e às vezes escuridão e tristeza. Às vezes corajosa, farol em noite escura, e às vezes receosa, a requerer salvação. Umas vezes amigos e conversa e, claro, energia e bom ritmo e um pé de dança. Outras vezes, sofá, uma manta e um chá quente entre as mãos. Às vezes desportista, disciplinada e saudável, outras vezes rendida a pizza e Ben & Jerry's num encontro a dois com a Netflix. Às vezes em paz, feliz dentro do corpo que habito, outras vezes angustiada pelo meu próprio reflexo. Às vezes um ás magnífico no trabalho; às vezes uma completa fraude seguramente detectada por todos os chefes e colegas num raio de quinhentos quilómetros. Às vezes cegamente apaixonada por Ele, às vezes vendo em tudo dúvida. Às vezes a crença de ser uma Mãe formidável. Outras vezes, a certeza de ser a pior Mãe do mundo.

Pano para mangas, mas tu percebes a ideia.

Mais importante do que isso, no entanto, foi deter-me, naquele instante, na percepção de que às vezes esqueço que, às vezes - ou de todas as vezes -, também os outros são assim. De que também os outros, todos os outros, são "às vezes". Às vezes preto, às vezes branco. E às vezes, outras tantas vezes, todo o espectro de cinzentos e, bolas, até um arco-íris com toda a paleta de cores. E como era bom lembrar-me mais disso, às vezes...!

Enquanto a Alice murmurava a letra que hoje eu não soube ouvir, quis guardar para mim (e trazer-te nestas palavras) que, lá no fundo, por debaixo e para lá de todos os teus pretos e brancos, eras também (muito mais do que gostavas de confessar), alguém muito "às vezes". E quis sussurrar-te baixinho, aqui que ninguém nos ouve, que, afinal, Ser-se "às vezes" é muito mais do que apenas um limbo. É uma balança. E é, sobretudo, um equilíbrio.

E está tudo bem.

Um abraço apertado




quinta-feira, julho 02, 2020

Chuva e um Chocolate Quente

Para mim nunca deixou de chover.

As nossas vidas entrelaçaram-se pela primeira vez debaixo de chuva, quando dobrámos aquela esquina em sentidos contrários. Chocámos de frente, tu deslumbrante e eu desajeitado. O meu mundo tremeu (assim como os meus joelhos) e eu senti-te arder no meu peito, num coração há muito adormecido, cinzento como aquele dia.

Embaraçado, pedi-te desculpa, atrevi-me a custo a pedir-te o nome e fotografei para mim, com todos os detalhes que consegui, o teu sorriso e o modo como o sorrias. Decorei-te em segredo os cabelos colados à cara e as roupas ajustadas ao corpo; deixei-me assaltar e invadir pelo perfume que trazias. E guardei em mim a chuva que caía a toda a volta, num burburinho copioso, banda sonora daquele primeiro dia.

Devolveste-me o pedido de desculpas entre gargalhadas refreadas, tímidas, e a tua voz, doce aveludada, percorreu-me como electricidade. Palmilhou os meus sentidos; retesou-me os músculos e arrepiou-me a pele. Ecoaste em cada centímetro cúbico meu e viraste melodia. Viraste, nessa mesma noite, sonho. E, de novo, a chuva a toda a volta.

Na manhã seguinte, ainda a chuva lá fora contra os estores, acordei com a certeza de que não queria nada mais no mundo senão ver-te de novo, só mais uma vez. Imaginava, já sem querer, o teu perfume no ar, pairando-me sobre a cabeça, e questionei-me a que saberia ter-te ali ao acordar. Só uma vez, primeiro. E talvez todas as manhãs, depois.

Arrastei-me até ao duche deixando-me levar pela ideia.

Mais tarde nessa semana, sem mais notícias ou sinais teus, saí do trabalho para a chuva e deixei-me ficar ali, só, sem guarda-chuva nem jeito. Perdia a esperança de reencontro e, de alguma forma, a chuva eras tu e deixar-me ali era viver-te de novo, fugaz, fria e húmida e ao mesmo tempo quente, em cores mil. Sentia-te a voz vibrando de novo em mim e era música; era valsa e tango, sapateado e piano e lareira em dia de inverno.

E então ouvi a tua gargalhada ténue, ali bem perto, envolvida pela chuva. O meu coração galopou como cavalo selvagem.

Abri os olhos sem demoras e vasculhei o ar em redor em busca do teu riso. E lá estavas tu, com a mesma graciosidade de antes; o mesmo sorriso rasgado, o mesmo calor, a mesma luz. Cruzámos olhares, desta vez à distância, e sorriste-me um sorriso terno, os olhos sorrindo e brilhando de igual modo. Acenaste-me com a alegria de quem mata saudade e, de súbito, senti-me parar no tempo.

Eu e o meu mundo tornámos a tremer. De algum modo, soube, ali mesmo, que estava destinado a ser. E não estava disposto a arriscar perder-te de novo.

Sem pensar duas vezes, despi-me da minha timidez, atravessei a chuva que nos separava a correr e convidei-te a entrar no café da esquina para um chocolate quente a dois, para nos aquecermos. Por dentro e por fora.

Para mim nunca deixou de chover. E hoje, chovendo de novo lá fora, dormes profundamente a meu lado e eu já sei a que sabe acordar todos os dias a teu lado. Sabe também a chocolate quente, mas sabe, sobretudo, a ser feliz.


domingo, maio 10, 2020

Desabar

"Preciso de desabar contigo."

Fiquei horas a olhar para o cursor da mensagem, piscando enquanto relia o que o corrector automático acabara de escrever. Pretendia dizer "desabafar", mas, naquele momento, "desabar" também me pareceu apropriado, por isso optei por mantê-lo. Sabe mais a mim e eu prefiro assim.

Entretanto, um dos benefícios de se viver sozinha é não precisar da autorização do mundo para se fazer o que se gosta. É não ter de pedir permissão para se ser feliz.

E escrevo-to e digo-to da minha banheira, cheia até cima, quente; o vapor dançando pelo ar com o piano que chega da aparelhagem da sala. Eu, a água quente, o piano, umas velas e um copo de vinho. Cliché? Eu sei. Mas era tudo de que precisava.

Mas estou a adiantar-me.
Queria desabafar contigo sobre o meu dia. Ou desabar, como quiseres.

Nunca fui a maior fã de segundas-feiras, mas o dia de hoje amanheceu especialmente frio e cinzento, como eu; como parece ser habitual quando se está triste. Pensei para com os meus botões que era um jeito irónico de a vida dar um ar da sua graça, a calcar-me mais contra o fundo de mim mesma. Mas não chovia, ainda.
Menos mal.

Meti os fones nos ouvidos para tirar o eco das tuas palavras da cabeça e fiz-me à estrada.

O metro em hora de ponta ia cheio. Não de rostos propriamente alegres, mas todos eles mais alegres do que o meu ou, pelo menos, com algum vislumbre de expressão facial. Mas cheio, ainda assim. E, no entanto, apertada contra ombros e cotovelos e malas de outrem, eu sentia-me sozinha.

O dia no trabalho não foi o meu melhor. Enregelada até aos ossos (e tu sabes como fico quando tenho frio), toda eu era corpo presente. E uma pitada de angústia, talvez. A mente, essa, estava em todo o lado menos ali. (Ok, quem é que queremos enganar...? Não estava em todo o lado. A mente estava toda, apenas e só, em ti, a toda a hora, a todo segundo.)

Pensamentos mil, rodopiando a ritmo inconstante num turbilhão, passando por cima de uns e por debaixo de outros e depois formando finalmente um nó, primeiro na cabeça e depois no estômago. Os burburinhos e as conversas no escritório a toda a volta, mesmo aquelas - especialmente aquelas - direccionadas a mim, eram ruído de fundo. Um crepitar distante e indistinguível a zumbir nos meus ouvidos.

Escusado será dizer que não consegui escrever uma só palavra do meu artigo. A bem da verdade, e porque é sempre importante parecer-se ocupado, despejei de facto uma série de coisas num Word aberto, mas sobretudo a teu respeito, teu e da nossa conversa de ontem - e nem todas elas bonitas. De resto, entreguei-me ao café para garantir que a cabeça, pesada do sono que não dormi, não aterrasse em cima do teclado com um estrondo. E, claro, à esperança de que toda eu fosse invisível para aquele meio mundo de gente.

Não te tinha à minha espera para almoçar, desta vez; agarrado ao teu estúpido cigarro e ao teu livro, aprumado no teu sobretudo. Desci para o almoço de mão dada com esse vazio e pedi meia-dose de aperto no peito para saciar a fome que não me vinha. Podia dar-te o prazer sórdido de dizer que almocei sozinha, mas não encontrei sequer a vontade de comer.

Quando bateram as seis, fechei o tampo do computador, entalei todas as palavras e palavrões que te dirigira e esgueirei-me de volta para o metro. Aguardava-me um cais e mais um metro cheios, mas ainda vazios. Barulhentos, mas mudos ao mesmo tempo: na minha cabeça havia eu e as minhas vozes e as minhas dúvidas e as minhas inseguranças e havias muito, muito tu. Por isso, antes de mais, fones nos ouvidos de novo. Sai daqui.

A gota de água foi a chuva.

Não... Literalmente. Não era um trocadilho. Assim que desci da carruagem, empurrada por aquele mar de gente, entendi para mal dos meus pecados que começara a chover. O chão da minha estação estava debaixo de pelo menos três dedos de água e eu sentia-a a entrar-me pelas costuras dos sapatos e a ensopar-me as meias e os pés.

Entre vasculhar a mala pela carteira para guardar o passe e trocar o telefone de mão sem me enrolar nos fios dos fones; entre os pensamentos que teimavam em fazer-se ouvir e tactear desenfreadamente em busca do guarda-chuva, saí para a rua de rompante, a tempo de ser presenteada pela nuca por uma gota de chuva daquelas bem grossas, bem espessas, camisola adentro e costas abaixo, eriçando-me todos os pêlos do corpo. "Ah, a cereja no topo do bolo", lamentei-me de mim para mim.

Encolhi-me de súbito e estanquei cinco segundos, contorcida debaixo de chuva, até conseguir finalmente abrir o guarda-chuva. Ao som do guarda-chuva a abrir, aquele 'bac' seco, senti-me quebrar e desabar. Agora sim, sem erros de corrector automático. E desabei com todas as forças que já não tinha. Havia chuva a toda a volta, havia chuva no meu cabelo e chuva no meu rosto. Mas senti-me finalmente chorar. E deixei-me. Eu só, debaixo do meu guarda-chuva, com um vazio de ti.

Recompus-me, apenas o suficiente, e arrastei-me pesadamente até casa, pés e roupas e cabelos ensopados até ao tutano. Deixei os sapatos e o guarda-chuva - e a poça que eles faziam - junto ao tapete, à porta de casa. Depois, meti a chave à porta para me esconder do mundo.

"Preciso de um banho quente."
Despi as roupas molhadas no chão da cozinha, ali mesmo. Depois trataria delas; primeiro precisava de tratar de mim e do meu coração.

Liguei a aparelhagem da sala, tão alto quanto socialmente aceite para fim de tarde chuvosa, a chuva a cair copiosamente para lá dos vidros, e enchi da água mais quente a minha banheira.

Foi um dia duro.
Mas sabes uma coisa?

Um dos benefícios de se viver sozinha é não precisar da autorização do mundo para se fazer o que se gosta. É não ter de pedir permissão para se ser feliz.

E escrevo-to e digo-to da minha banheira, cheia até cima, quente; o vapor dançando pelo ar com o piano que chega da aparelhagem da sala. Eu, a água quente, o piano, umas velas e um copo de vinho. Cliché? Eu sei. Mas era tudo de que precisava.

Sim, precisava também de desabafar contigo.
Mas tu já cá não estás.



sábado, dezembro 07, 2019

Quando eu quero sem querer

Não te pergunto, mas sei bem que o sentiste.

Sei que respiraste do ar a mesma tensão. De repente, um fosso vazio no ar, no espaço curto entre nós, e a mesma fraqueza nos joelhos, as mesmas contracções no peito e a mesma revolução no estômago.

Toda eu era hesitação, paralisada de alto a baixo. A tua perna encostada à minha fez-me perder o controlo de mim. Fui consumida. Vivi e revivi na minha cabeça os meus mais profundos desejos. Sentia-te o calor à distância. Sentia-te cada respiração. O sangue fervilhar debaixo da pele, por baixo da roupa que eu só queria arrancar-te. Sentia-me quente. Sentia-me gelada ao mesmo tempo. Não sei o que sentia. E queria, assim, sem mais nem ontem, virar-me para o lado na cadeira, puxar-te pela nuca e provar-te os lábios e saber a que sabem.

Queria mais, queria tudo. Não sabia o que queria. Mas queria e deixava de querer e queria tudo outra vez ainda mais loucamente. E contudo, no meio desse tudo e de todo esse nada, não queria arriscar arriscar-me, arriscar-nos; atrever-me e deitar tudo a perder. Eras bom demais e uma noite de copos não justificava pôr isso em cheque. Por isso, mantive-me quieta, sossegada, e tentei a custo controlar a respiração, ajeitada normalmente no meu lugar. Desejei por tudo que não te apercebesses e fingi-me igual, inerte, desinteressada. Ardia por dentro, contida, mas fingi-me, esforcei-me e forcei-me a não arder.

Hoje, apenas com o teu perfume na memória, arde-me a angústia, arde-me o meu ardor. Mata-me a tua ausência, mais ainda o desamor. Viraste ferida aberta exposta ao ar, ao álcool etílico da minha solidão. És esperança que a incerteza faz sangrar e ânsia que dança no meu coração.

Para mim, guardo o último sorriso que sorriste. Não te pergunto, mas sei bem que o sentiste.


segunda-feira, novembro 04, 2019

Próxima paragem: Saudade

Não pensava em ti até nos cruzarmos no metro.

No rescaldo do nosso encontro, atabalhoado entre os guarda-chuvas e casacos a que aquele dia de inverno indeciso obrigava, o primeiro pensamento que me invadiu foi o de que tinha saudades tuas.

Decidi deixar assentar a poeira do meu alvoroço interior. A Vida e a idade, as pegadas dos passos que fui dando, ensinaram-me que, em matérias do coração, é preciso saber parar. É preciso parar para respirar fundo, deixar o ar puro revolver-se em nós e senti-lo em cada extensão de nós. É preciso respirar fundo e pôr a cabeça em ordem. Respirar fundo, sentir a paz em nós e pôr em ordem também o coração, para depois poder escutá-lo.

Escutei-o.

Disseram-me um dia que é preciso destruir o velho para construir o novo, para construir de novo, para construir melhor. Que é preciso morrer para poder nascer de novo. Que, na Vida, é preciso morrer várias mortes; que temos, a cada uma dessas mortes, de perder uma parte de nós, do nosso actual Eu, para dar espaço à construção de uma nova parte de nós, uma versão renovada de nós mesmos.

A primeira destas mortes será a morte de irromper para o mundo, a morte de abandonar o conforto quente e seguro do ventre; de um jeito muito irónico, próprio do curso natural das coisas neste plano terreno, a primeira morte é o próprio milagre da Vida.

A esta primeira morte, muitas outras se seguem. Umas são mais evidentes, tais como a perda dos nossos avós ou de alguém igualmente próximo, um pai ou um irmão, porque é uma parte de nós que desaparece para todo o sempre do mapa, obrigando ao crescimento de uma cicatriz no lugar do vazio. Existirão, contudo, outras mais subtis. E fez-me sentido que outras mortes, dentro dessas mais subtis, possam ter lugar quando se perde um amor, porque, de algum modo, é também uma parte de nós que vai e não volta. Um vazio que se rasga, cresce e fica, aguardando ser preenchido.

Então entendi que aquilo que senti em mim não eram saudades tuas. Eram antes, no lugar disso, no teu lugar, saudades de estar apaixonado por ti. Pela ideia que eu tinha de ti. Pela ideia que eu tinha de nós dois e da minha idealização egoísta de planos a dois, contigo.

As saudades que eu tinha eram, nesse estado, saudades do calor reconfortante da tua presença. Eram saudades do nervosinho frio no estômago quando sentia o teu perfume ao meu lado no cinema. Eram saudades da ânsia de ouvir a tua voz do outro lado da linha e da calma que ela me trazia à alma. Saudades da electricidade que me percorria o corpo, da cabeça aos pés, sempre que te segurava a mão, também ela fria. Eram as saudades da expectativa irrequieta enquanto te esperava à porta de tua casa, com os quatro piscas ligados, mal estacionado na passadeira. Eram saudades de te ver chegar ao carro, com aquele vestido deslumbrante e o sorriso que desarmava a máscara dura que usava sempre que não estava contigo. Eram saudades de não ter a linha do telefone entre a tua voz e o meu ouvido, entre a tua voz e o meu coração. Eram saudades de, por umas horas, baixar a guarda para o mundo, de pôr de lado o escudo e de me deixar apenas Ser. Eram saudades de ser frágil e vulnerável. Saudades de me sentir visível e compreendido, num mundo que já não sabe ver nem compreender. Eram saudades de me sentir válido, de me sentir seguro e de me sentir amado num abraço apertado teu. Eram, talvez, saudades de ter saudades.

Mas eram, sobretudo, saudades de não saber, de não me lembrar, que tu nunca me amaste.

sexta-feira, julho 12, 2019

Caminhos de Ferro

Pousei a última pinha e a lareira finalmente pegou. Os invernos na Polónia conseguem ser muito ríspidos, e aquela foi sem dúvida a noite mais fria de todas.

Dei ao lume uns segundos de descanso, um porto seguro de oxigénio, e as primeiras chamas surgiram; tímidas a início, até conquistarem terreno e devolverem ao ar da sala o conforto sugado pelos acontecimentos da noite. Ainda remoía toda aquela cena em mim. Contorcia-se nas minhas entranhas como se contorce um filho, esperneando contra o estômago e contra as costelas, mas desta vez com amargura no lugar de amor. Toda eu tremia.

Decidi ir vê-lo. Tinha esperança de que já se tivesse recomposto e chorado todas as lágrimas que tinha por chorar. Fechara-se no quarto fazia três horas, desde que lhes escapáramos, chorando compulsivamente contra a almofada, num gemido silencioso que só ele compreendia. Não por ter apenas cinco anos e ainda não entender o mundo, mas porque nos meus cinquenta e cinco - eu que via a Guerra pela segunda vez, que perdera para ela um marido, que já fora Avó e agora era forçada a ser Mãe de novo - não conseguira encontrar palavras que descrevessem tamanha dor, ou que perto chegassem disso. A fragilidade inocente, a expressão quebrada, o vazio confuso no olhar, a angústia sem fundo na voz sufocada.

Quis espreitar primeiro de mansinho para me assegurar de que era seguro, de que não interromperia um sono tão desejado, mas não consegui evitar que a porta rangesse sob o peso do meu corpo. Mordi o lábio e detive-me de súbito, paralisada no mesmo lugar. Fechei os olhos e inspirei fundo o ar ainda gelado.

Senti-o encolher-se no escuro, mais e mais sobre si mesmo, e escutei-lhe de novo o soluçar, miudinho, descompassado; a mesma respiração descontrolada, indefesa, e tive a certeza imediata de que não pregara olho por um só segundo. A incompreensão deixava-o à mercê do medo e o medo alimentava-se da sua alma pequenina, corroendo-o até aos ossinhos. Era como se se estilhaçasse em mais mil pedaços a cada expiração.

Engoli em seco. Era duro para os dois, mas ele não compreenderia e eu tinha de ser forte por ele.

"Queres juntar-te à Avó? Acendi a lareira para nós. Podemos ficar juntos a ver dançar as chamas, enquanto a neve cai lá fora. Que te parece?"

Tentei que não fosse evidente o meu esforço para suster a respiração enquanto a resposta não chegava. Esperei com todas as forças que ele não reparasse. E, depois de esperar o que me pareceu uma eternidade, os soluços cessaram por um instante. A voz soou-lhe vacilante e morreu-lhe na garganta; o meu coração apertou-se e eu morri novamente em mim:

"A mamã mentiu. Disse que ia só tomar banho com os senhores e nunca mais voltou."



quarta-feira, maio 08, 2019

Recorda-me

Não sei quanto tempo me resta.
Quanto tempo nos resta aos dois.
Não faço contas aos dias.
Pouco importa.

Sabe que me alegra dar apenas ouvidos à Vida. O sol a abater-se sobre o horizonte. O céu a tingir-se de todas as cores. O vento no rosto. A energia que me pulsa nas veias. O ar nos pulmões.

Por isso, quando morrer, quando eles teimarem em calar-se e em resignar-se ao silêncio, põe a tocar a minha música e deixa a guitarra de noite de fogueira ecoar entre as velas, entre o murmúrio calado. Deixa depois soar lentamente a voz pelas paredes frias, deixa entrar a bateria em ritmo de Verão, e depois recorda-me de sorriso bem rasgado, com as rugas a acumularem-se-me nos cantos dos olhos.

Recorda-me de coração quente, pele quente, num abraço apertado. Recorda-me segurando a tua mão, os dedos entre os teus. Recorda-me a cantar a plenos pulmões no carro e na rua à chuva. Recorda-me a ser Feliz a cada segundo, a cada esquina, na vulnerabilidade simples que é Ser-se. Recorda-me nessa leveza da alma e imagina-me a levantar voo algures, a flutuar em direcção ao Sol, por entre astros e asteróides, e a dançar entre as estrelas. Recorda-me como Principezinho saltitando de planeta em planeta, de inocência em inocência e de sonho em sonho.

Depois, guarda-me em cada flor e árvore que plantes. Guarda-me em cada rio que atravesses e em cada cascata que visites; guarda-me no burburinho que fazem quando correm e quando caem. Guarda-me em cada país que conheceres. Guarda-me em cada fotografia que tires. Guarda-me em cada passeio que faças. Guarda-me em cada noite fria e em cada dia mais sem fim. Guarda-me quando anseias, mais ainda quando temes. Guarda-me quando duvidas, quando esqueces quem és. Guarda-me em cada beijo na testa.

Não sei quanto tempo me resta.
Quanto tempo nos resta aos dois.
Sei apenas que, além do sol no horizonte, do céu tingido, do vento no rosto, da energia nas veias e do ar nos pulmões, eu vivo o bater do teu sorriso e o riso do teu coração.

Então, deixa tocar a música e guarda-me em cada passo e cada gesto teu, que eu serei sempre, em cada canto do teu coração, cada som e cada cor do mundo.



sexta-feira, abril 19, 2019

Impermanente

"Um dia destes eu vou morrer, Tomás."

Foi assim que a minha Avó abriu o jogo comigo, certa vez. Quebrou o gelo e quebrou-me um pouco a mim.

Eram já óbvios os sinais da doença, a fraqueza nos gestos delicados e a ligeireza nas palavras. Mas era a primeira vez que me falava abertamente da Morte; da morte dela em específico, dela que me era tão querida.

Balbuciei timidamente.
"Mas porquê? Eu não quero que morras."

Da voz emanava-lhe uma paz que eu estranhava, profunda, leve, ainda envolta no tom doce de sempre.

"Porque é assim que as coisas são, meu querido. Temos de morrer para dar lugar a quem nasce de novo. Além disso, é preciso receber num abraço a Morte para sentir verdadeiramente o sabor da Vida."

"Não compreendo. Porque não podes apenas ficar para sempre?"

"É a ordem natural de todas as coisas. O que quero que guardes bem no fundo do teu coração é que tudo acaba e tudo muda. Tudo é finito e impermanente. O bom, assim como o mau. O êxtase e a felicidade, a dor e o sofrimento. As paixões e os sonhos. E eu lamento ter demorado uma Vida para o compreender. Gostava por isso que tu o percebesses mais cedo. Hoje é cedo de mais, eu sei, mas é talvez o cedo mais tardio que eu vou poder dar-te.

Tudo é apenas transitório. As tempestades no mar. As estações do ano, de calor neve e chuva, de chuva arco-íris e cor, de cor brisa e pólen, de brisa praia e calor. As folhas nas árvores, que se desprendem das ramagens secas e rodopiam graciosamente pelo ar já frio até ao chão, e as flores nos jardins, que primeiro brotam da terra húmida, erguem-se corajosamente para pintar de todas as cores o mundo e de seguida secam e murcham.

As pessoas, como todos os outros seres vivos, nascem, envelhecem e depois morrem, para outros poderem nascer também. Também os objectos são criados, usados e passados de mão em mão, até que por fim são destruídos. E, claro, os momentos que, como as marés, vêm, borbulham um pouco na rebentação à beira-mar e depois regressam, para ficarem escritos apenas na tua memória, em fotografia, um vislumbre distante do que foram, com sabor a sal e saudade.

As ondas que vêm depois são outras, parecidas talvez, mas com outros nomes, outra força, outros motivos. Outros olhos, outros sorrisos e outras lágrimas. Cada momento é um momento que não tornará a repetir-se. Nunca saberás quando alguém de quem gostaste muito vai sair definitivamente da tua vida, para não voltar mais. Num momento estão lá e tu toma-los por garantidos; no outro não voltam mais, porque a Vida os levou por caminhos diferentes, ora deste lado do mundo ora no outro, e em ti fica somente um vácuo que não sabes preencher."

Permiti-me um tempo para digerir cada palavra, na linguagem que me era então possível interpretar.
"Isso é triste, Vó... Podemos fazer alguma coisa?"

"Podemos, claro. Basta aprendermos a estar verdadeiramente presentes. A ser. A sentir, sobretudo, em gestos simples de Amor. A escutar atentamente, até ouvirmos no ar o batimento dos corações dos outros. E devemos, nesse momento de silêncio, de escuta e presença, ser eternamente gratos. Praticar a gratidão a cada dia por cada um desses momentos, por cada olhar, por cada palavra, por cada gesto, por cada carinho, por cada abraço, porque cada um é uma bênção que vai e não volta."

Fez uma pausa.

"Ah, e não percas nunca uma oportunidade de dizer a alguém o quanto é importante para ti e o quanto gostas dela. Isso sim é o mais importante. Faz isso e serás Feliz."

Assenti sem hesitações.
"Eu adoro-te, Vó."

Ela sorriu e a minha alma sorriu de volta.


domingo, março 10, 2019

Frio de Inverno

O frio cortante cumprimentou-me com um beijo terno quando desci do autocarro, de regresso à terra que me viu nascer. Demorou-se num abraço saudoso, espalhando-se lentamente por mim enquanto me acolhia.

A minha mãe esperava-me junto ao carro, a alegria desenhando-se-lhe timidamente nos lábios, na fragilidade vulnerável de mãe que é Mãe. Tínhamos saudades uma da outra e nem tínhamos dado conta, depois de todo este tempo. Esqueci por dois minutos o frio e aconcheguei-me contra o peito dela. Deixei-me perder no melhor abraço que alguma vez terei.

Depois, ela apressou-se a enrolar-me num gigante cachecol de malha e empurrou-me para dentro do carro.

O nosso carro ainda era o mesmo, tal como me lembrava dele. A ventoinha crepitante do aquecedor abafado e o cheiro dos estofos, o motor tremido, cansado. Nada tinha mudado, o carro era casa e eu estava finalmente em casa. Senti-me sorrir por dentro, num sorriso que era sobretudo paz.

Ao chegar a casa reconheci os latidos dos nossos cães, agora velhos. E eles, já sem ver, reconheceram também o perfume a que sem cheirar eu cheiro. Senti-lhes a agitação pelo reencontro de uma parte deles que levei comigo no dia em que parti. E mais uma vez senti-me verdadeiramente em casa, senti-me verdadeiramente Eu.

É evidente que, embora nada tivesse mudado, tudo era diferente. O pai já não estava cá. O avô e a avó também não. Agora, vigiavam-nos os três do alto das fotografias suspensas no hall, também eles de sorriso terno nos lábios, como a minha mãe junto ao carro – como os lembro, como os guardo.

A salamandra na cozinha esperava-me acesa. O misto de calor e frio no ar a toda a volta caía e sedimentava em mim as memórias vivas desses outros tempos. Quando a chuva se precipitou no pátio, em estalidos intermitentes para lá das janelas, tornei a sentir no ar o aroma dos biscoitos da avó acabados de sair do forno. Vi de novo, é claro, o avô esgueirar-se na cozinha e piscar-me o olho enquanto se apropriava de um deles em segredo. E vislumbrei a avó, ainda de avental, de óculos na ponta do nariz, entrando de rompante e dando-lhe o habitual raspanete.

Mais tarde, ainda perdida no tempo, senti o pai, quente, esticado ao meu lado na minha cama, eu pequena e ele com talvez o triplo do meu tamanho, de livro infantil em punho, em luta contra o cansaço e, muito mais ainda, contra os pesadelos dos meus sonhos. Lembro-lhe a voz embalando-me e afugentando para o frio da rua os meus medos enquanto adormecia... Recordo-lhe vagamente as mãos ásperas puxando-me até ao pescoço os espessos cobertores e afagando-me os cabelos, antes de sentir na nuca um beijo de boa noite já distante.

Respirei fundo e embrulhei a minha mãe num abraço mais apertado do que o último. O frio de Inverno era casa. O frio de Inverno era calor.


terça-feira, janeiro 29, 2019

Baixios

Eu juro que estava curado.

Estava finalmente curado de ti.
Já não pensava em ti de dia e de noite deixei de sonhar sonhos teus. Deixou de me incomodar o perfume a que cheiras e esqueci a forma do teu corpo nos meus braços e na minha roupa. Deixei de sentir o teu coração no meu peito e nos meus ouvidos. Deixei de ouvir a tua voz no meu silêncio.

Mas porra. A tua música faz vibrar todas as cordas em mim. Todas as cordas sem excepção. Vibro e vibro e vibro e, de súbito, dou por mim sem forças nas pernas, entregue e rendido, entregue e perdido, a tudo o que foste e tudo o que fomos juntos.

A música toca e vibro mais um pouco e sou atirado de volta à primeira sala de cinema onde tímidos e envergonhados chorámos juntos. Onde a própria alegria de estar contigo, na essência mais pura e mais humilde do amor, me fazia chorar também, de pêlos eriçados e pele arrepiada, desde o duche que te antecipava em música e borboletas em êxtase ao deitar de coração bem entregue e em paz.

E vibro e sinto de novo, aqui e agora, a tua mão na minha, de dedos entrelaçados, sempre fria à procura de calor em mim. Da mão na mão aos braços nos abraços. Aos abraços que, de tão doce e fragilmente apertados, me roubavam o ar que me restava daquele que perdi no dia em que te conheci.

E a música entra mais em mim e eu vibro e sou agora sugado para os passeios à beira-rio, sob as também frias luzes de Natal, ao som das ondas que se vão atirando contra o cais. E vibro e estremeço nova vez e sou inundado pelo teu perfume que agora sei nunca ter esquecido e sinto-o na roupa, na pele e até nos lábios, como que acabado de roubar do teu pescoço.

E soa mais um acorde e mais uma nota no ponto, no meu ponto, na minha frequência, e eu estilhaço mais um pouco quando sinto agora os teus lábios de novo, quentes, vivos, nesses tantos milhares de pores-do-sol mundo fora, doces e salgados nos vários prados e praias que quisemos explorar só a dois.

A música atinge o clímax e em vício e veneno de ti eu não me atrevo a separar-me dela, como cola, como se na dor fossem os últimos segundos de ti que me eram permitidos antes da derradeira ressaca da droga que me foste. E aí vibro com ainda maior intensidade e vibro e vibro, e fragmentos de mim chocalhando e chovendo a toda a volta em pó e fragmentos de ti, fugazes, disparando em flash diante dos meus olhos como se bem aqui estivesses, anos em mil fracções, ribombando a cada acorde e cada corda e toda a voz dela ressoando e tinindo em mim e de repente em nós, agora já nos últimos nanossegundos que me sobram de novo de ti.

E depois silêncio.
No ar e em mim.

Silêncio, uma lágrima e um vazio.


sábado, janeiro 26, 2019

De Tudo Pouco ou Nada

Sinto-me tão perdida às vezes...

Olha em teu redor.

Como foi que chegámos aqui? Virámos Licenciados, Mestres e Doutores. Tornámo-nos especialistas das ciências, da Matemática, da Contabilidade e da Tecnologia, e desenvolvemos e utilizámos o nosso mais apurado intelecto para construir o mundo de hoje. Criámos o topo-de-gama em tudo, em todas as coisas: nos telefones, nos computadores, nos tablets, nos carros, nas motas, nos aviões, nas roupas, nas organizações, nas start-ups, nas redes sociais...

Vimos virar o mundo de uma era de escassez para uma era de abundância (à parte, é claro, das regiões desfavorecidas de que fingimos não nos lembrarmos), onde a dificuldade deixou de se medir em "ter ou não ter", mas em "qual escolher?". Hoje temos tudo. E orgulhamo-nos tanto disso, de empregarmos com tanto sucesso no mundo o nosso intelecto e exímia capacidade de raciocínio, que tanto nos distingue enquanto Seres Humanos.

Mas... A que preço...? Será que aquilo que nos distingue como Humanos é mesmo - e sobretudo só - a nossa capacidade intelectual, a nossa capacidade de processar números e lógica e de, com isso, criar tanto excesso, tanto material? A nossa capacidade de injectar no mundo necessidades de que, em boa verdade, não necessitamos assim tanto? E de, com isso, injectarmos também a ânsia e a busca desenfreada por felicidade por via dessas "necessidades" e por via de as mostrar ao mundo, em ostentação plena, a troco de Gostos e Partilhas? Será mesmo este o sinónimo de evolução...?

Esquecemo-nos de que viemos a este mundo sem nada e que dele sairemos sem nada também. E, no entanto, perdemos todos os segundos da nossa hora e todas as horas do nosso dia a lutar por "aquela coisa" que nos fará realmente felizes e a discutir por "aquele problema" que, reforço encarecidamente, não levaremos desta vida.

Esquecemo-nos da nossa essência mais básica. Esquecemo-nos do afecto; da capacidade humana de nos ligarmos emocionalmente com todos os outros seres iguais a nós em tudo. Esquecemo-nos do amor e, pior, envergonhámo-nos da palavra "amor" e fizemos o exercício de a esquecer em nós, porque alguém nos fez acreditar que amar é ser-se frágil. Porque alguém nos fez acreditar que o amor é um sentimento, uma emoção; que o amor é dependência e ser dependente é inadmissível nos dias que correm.

E se eu tentasse explicar-te que amor que é amor não é um sentimento, mas sim um comportamento? Que é, em comportamento, a fusão de tudo aquilo que, enquanto Humanos, temos de melhor? Que é altruísmo, que é respeito, que é carinho, que é bondade, que é generosidade, que é paciência? Que é servir? E que, enquanto comportamento, advém puramente de uma escolha, de uma decisão? O outro antes do eu?

Para mim é esta capacidade de escolher o amor o nosso maior trunfo como Seres Humanos. Essa capacidade de fazer o dia de alguém um pouco melhor em cada pequeno gesto, em cada palavra, em cada sorriso e em cada abraço. Essa capacidade de contagiar positivamente a energia de quem nos rodeia e de, aos poucos, contagiar a energia do mundo. Essa capacidade de tornar o mundo um lugar melhor e sobretudo mais Humano. Mais frágil, mas mais terno e mais alegre.

Mas nós esquecemo-nos e virámos ego. Virámos Eu, em vez de Eles e em vez de Nós, desde o momento em que abrimos os olhos e pomos os pés no chão pela manhã, decididos a ser o próximo herói da História. Mas fará sentido querer ser o herói da História se não formos antes o herói da nossa família? O herói dos nossos pais, dos nossos irmãos e dos nossos filhos...?

Um pequeno gesto de generosidade, de amor, pode fazer tremer o mundo de alguém. E não há melhor sensação no mundo do que essa. Talvez valha a pena pensar um pouco nisso, na próxima consulta entre Facebook e Instagram, antes que seja tarde de mais.


quinta-feira, janeiro 17, 2019

Fénix

Estupor.
Meu pequeno estupor.

Pensei ter deixado bem claro que eu preciso de plano e de ordem, em alinhamento perfeito, na minha Vida. Que não reajo particularmente bem a surpresas e alterações de última hora. E achei que tínhamos combinado, a bem da tua integridade física, não pregar partidas um ao outro. Não assim, sem aviso prévio. Muito menos um desvio tão fora de rota.

Já cá não estás para te agredir por me deixares só e entregue a mim mesma, naquela agressão que pouco mais te fazia do que cócegas, e, no entanto, não consigo ficar sequer aborrecida contigo.

Fizeste-me sonhar em vida. Meu pequeno estupor. Fizeste-me desenterrar e reacender todos os sonhos inocentes de criança que trazia em mim e que até então a Vida não me deixara sonhar. Vieste ser faísca, ser rastilho e ser da minha cinza fénix.

Foste borboletas no meu estômago. Cativaste-me no teu olhar e, mais ainda, na tua alma pura. Prendeste-me nos teus braços e deixaste-me divagar liberta na leveza do meu ser. Foste amor de Verão, primeiro, e amor de filme de Hollywood, daqueles que não existem nunca, todos os dias depois desse.

Foste dança na chuva. Foste mar e pele salgada. Foste noites de céu estrelado. Foste gestos aleatórios de bondade. Foste o meu lado de fora do passeio nos passeios pela calçada. Foste chocolate incógnito em cima da minha cama quando o meu mundo virou do avesso. Foste boleia até à porta de casa porque uma donzela não deve ser deixada na rua sozinha depois de o sol se pôr no horizonte. Foste pinhas e lenha e lareira e chocolate quente no inverno. Foste quilómetros de estrada - terra, céu e mar - entre nós para roubar de mim um sorriso; por vezes um beijo não autorizado.

Foste ordem no meu caos. Foste porto de abrigo na minha insegurança. Foste harmonia na minha impulsividade. Foste ousadia na minha disciplina. Foste piano em eco no meu silêncio. Foste doce na minha amargura e boa disposição no meu mau feitio. Foste calor no meu peito e, acima de tudo, foste Luz em mim e meu caminho, quando toda eu me sentia trevas e noite fria.

Foste paz no meu coração.
E hoje soube que és filho no meu ventre.


quinta-feira, dezembro 06, 2018

Som do Coração

O meu coração quis ir contigo desde o primeiro dia em que te viu.

O meu coração quis ir contigo e não voltar. Quis ficar. Quis viajar em ti e viajar contigo. Quis rir e quis chorar: chorar de chorar e chorar de rir. Quis sorrir. Quis ser feliz. Quis fazer-te feliz. Quis guardar-te todos os dias e ter a certeza de que eras a mais feliz entre todas, porque é a tua felicidade o valor que fala mais alto.

O meu coração sonhou e quis sonhar. Quis completar-te. Quis tornar-se teu. Quis tornar-te dele. Quis ser abraço, quis ser casa. Quis ser carro, quis ser mesa, quis ser cama. Quis ser porto de abrigo e ter um porto de abrigo em ti. Quis sentar-se contigo à volta da fogueira a tocar guitarra e cantar juntos. Quis ser música. Quis ter conversas profundas. Quis rir mais. Quis contar e ouvir histórias. Quis ser história conjunta. Quis dançar à chuva. Quis esconder-se contigo debaixo de cobertores no inverno. Quis preparar-te o chá quente. Quis ver as luzes de Natal nas ruas. Quis montar a nossa árvore de Natal. Quis sentir contigo o verão na pele, o sal na cara e a areia nos pés. Quis piscina e mar pela noite. Quis serões e cartadas no alpendre.

O meu coração quis olhar-te no coração e pentear-te o cabelo para trás das orelhas. Quis dizer-te que és linda todos os dias, quando acordas e enquanto dormes. Quis a tua voz, o teu sussurro, no ouvido. Quis beijar-te a testa, o nariz, os lábios e o pescoço. Quis amar-te. Quis ser amado. Quis dar-te um lar. Quis dar-te um casamento. Quis dar-te um filho e depois outro. Quis beijar-te a barriga grávida. Quis sentir os primeiros pontapés e todos os outros. Quis segurar-te a mão durante o parto, com a certeza de que desmaiaria no processo. Quis passeios de mão dada. Quis o calor do teu sorriso. Quis ser o brilho dos teus olhos.

Quis envelhecer contigo. Quis partilhar todas as moradas, incluindo a última, contigo.

Mas tu disseste-lhe que não.

domingo, novembro 04, 2018

Geometria de Avó

À medida que fui crescendo fui aprendendo a apaixonar-me por alguns temas da Vida. Um deles é o da forma curiosa como funciona o nosso cérebro. E, em particular, a forma curiosa como ele gera, gere e processa os sonhos. As causas, as formas e os efeitos.

Hoje sonhei de novo com a minha Avó. E é engraçado como vou sonhando com ela de tempos em tempos e como vou, a cada sonho, retirando para mim lições de Vida cada vez mais significativas e mais plenas.

Nunca te contei, mas apesar de professora de Desenho, a minha Avó ajudava-me muito nos meus primeiros contactos com a Matemática, sobretudo, claro, na parte da Geometria. E, mais tarde, nas forças da Física. Foi com uma dessas sessões de estudo acompanhado que sonhei esta noite.

Por alguma razão, desta vez não consigo recordar-me da envolvente lá de fora, para lá das paredes da cabana dela e para lá do alpendre. Não sei se foi num dia soalheiro, daqueles que pintava o céu no horizonte de um tom dourado, ou num dia de chuva rigorosa de inverno. Fiquei retido na mensagem das palavras dela. Na melodia que elas me cantavam, uma sílaba de cada vez.

Com exemplos práticos, perceptíveis para uma criança, ela ensinou-me a caracterizar um vector, de acordo com as suas três dimensões: direcção, sentido e intensidade. Ilustrava-mos por desenhos, naturalmente, em que uma das partes era um esboço dela, na qualidade de minha Avó - já curvada sobre a bengala dela, com os óculos meia-lua e o cabelo meio desalinhado e apanhado num carrapito -, e a outra era eu, num esboço com metade do tamanho do dela (era a escala real, porque apesar de Gigante no coração ela era pequenina, até para mim), com as bochechas bolachudas e rosadas.

No rascunho dela, entre nós dois, desenhava aquilo que para mim eram apenas umas setas. E explicava-me que as setas traduziam um movimento. Por exemplo o movimento descrito pela mão dela quando me oferecia em mãos um "chocolate da vaca" (não me perguntes, sempre foi assim que em casa lhes chamávamos, pela vaquinha que vinha desenhada no rótulo). A direcção era entre nós, a linha invisível que nos unia. O sentido era dela para mim. A intensidade não percebi bem.

Então ela explicou-me que se relacionava com a força do movimento ou, de novo em termos práticos, com a sua velocidade. Apercebi-me pela expressão no seu rosto de que ela se debatia internamente com uma forma fácil de me fazer compreender o conceito. Uns segundos depois, ela debruçou-se sobre o desenho, apagou as setas que nos separavam e no seu lugar desenhou uma mesa. Debaixo de cada um de nós uma cadeira. Em cima da mesa, do meu lado, uma bola do tamanho do meu punho.

"Se eu te pedir para me passares a bola com cuidado, a intensidade deste vector, que descreve o movimento da bola do teu lado da mesa para o meu... ", desenhou uma seta minúscula a azul enquanto falava, saindo da bola, "... vai ser pequena. Vais fazer pouca força na bola porque eu te pedi para teres cuidado. Entendes?"

Lembro-me de acenar cautelosamente.

"Mas se, por outro lado, eu te disser para me passares a bola com a máxima força que conseguires, tu vais bater na bola. A palmada mais valente que já deste! E ela vem a voar para mim com toda a velocidade" e desenhou uma segunda seta, desta vez a vermelho, com talvez o triplo do tamanho da anterior. E o meu mundo ficou mais claro.

A partir daqui a conversa ficou mais difusa para os meus 11 anos da altura. E manteve-se assim durante os 15 anos que se seguiram, até à noite de hoje.

"Os vectores são uma das coisas mais importantes do teu dia-a-dia e, por isso, é importante que os compreendas bem. Queiras ou não, vais criar vectores com todas as pessoas que conheceres, em todas as direcções. Entre ti e cada uma delas. Uns mais importantes, outros menos; uns mais intensos e outros menos. E com diferentes sentidos também. Uns unilaterais, de ti para eles, de dentro para fora; outros unilaterais, deles para ti, de fora para dentro. Uns bilaterais, de ti para eles e deles para ti, em comunhão. Outros sem sentido."

Ajeitou os óculos no nariz e sorriu-me com aquele sorriso terno, doce.

"A grande maioria desses vectores não vais poder controlar, não na totalidade, pelo menos: as direcções vão existir sempre, enquanto linha invisível que te liga a cada pessoa no Mundo. Mas podes controlar o sentido delas, no que te diz respeito. Não podes controlar o que vem de fora para dentro, é claro, mas podes controlar o que vai de dentro para fora, na bondade, na gentileza e no amor. E podes - e deves - sobretudo controlar a intensidade desse sentido de dentro para fora, que é o sentido mais importante da Vida, naquilo que dás de ti a cada dia, nessa bondade, nessa gentileza, nesse amor. Em cada palavra e em cada gesto. E não tenhas nunca medo de os dar em demasia, em excesso, porque de excesso de bondade e gentileza e amor podem apenas resultar coisas maravilhosas.

E quanto mais de ti deres ao Universo, melhor ele cuidará de ti, porque para cada força, para cada acção, haverá a seu tempo uma reacção. Mas isso já é Física e portanto fica para outro dia."


terça-feira, outubro 16, 2018

Début

Vives em mim num canto, numa parte de mim que sozinha eu não sei identificar ou encontrar, por muito que procure.

Hoje reencontrei-te, para minha felicidade. Reencontrei-te quando pela madrugada recomeçou a chover, depois do calor, depois da seca, depois do Verão que não quis terminar. Reencontrei-te nos primeiros pingos de chuva contra a janela, a acordarem-me lenta e docemente, como costumavas fazer com os teus beijos suaves pela manhã, para me puxares de mansinho dos meus sonhos para a luz de um novo dia.

Ecoou-me na cabeça o som do teu piano, a Début a soar ao longe, directamente da sala, à distância da lembrança e da saudade. Soube em mim a falta que me faz o teu calor na cama agora fria. A falta que faz a esta casa e a este coração a tua música e o teu amor por todas as coisas, que eu nunca soube explicar. E o compasso encantador da Début prolonga-se casa fora, arrastando-se demoradamente pelos confins da minha memória, e leva-me ao som das teclas e da chuva numa viagem por nós.

E eu viajo em mim, pela história que me ajudaste a escrever, letra por letra, palavra por palavra, desde a primeira vez que demos a mão e entrelaçamos os dedos e os sonhos. Desde o primeiro beijo tímido, inseguro. O primeiro passeio à beira-mar. E o segundo. E depois todos os outros que foram felizmente virando rotina; a minha rotina preferida. O passeio de balão lá do outro lado do mundo, de onde, no silêncio lá de cima, vimos como era grande o mundo e por isso como era grande a sorte de nos termos encontrado um ao outro.

Sinto escorregar uma lágrima e oiço-a pingar silenciosamente no chão da nossa casa. Mas sinto mais ainda um sorriso, magoado por não poder ter-te mais, mas eternamente grato por ter tido, durante todos estes anos, durante todos esses dias, durante todas essas horas, essa sorte. Foste, és e serás sempre música em mim. A minha música. O ritmo da minha dança. A vida e cor e brilho de um mundo que tentavas fazer melhor em cada instante, a cada fôlego teu. E, por isso, não choro apenas. Não choro só. Sorrio muito e sorrio de cada vez um pouco mais, sempre que, por sorte do meu dia, te reencontro.

Porque vives em mim num canto, numa parte de mim que sozinha eu não sei identificar ou encontrar, por muito que procure. Mas saber que te tenho em mim é tudo de que preciso; é tudo quanto baste.

segunda-feira, agosto 27, 2018

Sem V de Volta

"Home is where the heart is."

"Casa é onde o coração está", diz a frase feita. Mas o problema das frases feitas é não terem um traço teu, pessoal, íntimo.

Quero partilhar um segredo contigo. Quero discordar, quero mudar-te um pouco a perspectiva das coisas e, quem sabe, fazer-te pensar. Em ti, para dentro de ti. Porque para mim - e para ti, se não me atraiçoa a intuição -, casa não é onde o coração está. Casa é onde o coração está... em paz.

Acabei de aterrar em Lisboa.
Acabei de arrumar no meu coração mais uma viagem, mais um salto a outra parte do mundo e a outro recanto de mim mesmo. Acabei de guardar um novo álbum de memórias com amigos de longa data - e outros de data mais curta -, e este vem tão cheio: de viagens estrada fora, de cantorias e desafinos, de gargalhadas, de história, de cultura, de gastronomia, de música, de fotografia e até de magia e sonhos de criança.
Acabei de chegar a casa. E, no entanto e no fim de tudo, acabei de não a sentir casa.

Porque casa só é casa se nela o teu coração está em paz. E o meu, por alguma razão, não consegue encontrá-la aqui. Não me perguntes porquê; não saberei responder-te em verdade. É como se a paz do meu coração andasse algures por esse mundo fora, à espera de ser encontrada, a escapar-lhe malandramente por entre os dedos. Como se eu não pertencesse aqui, ou só aqui pelo menos, e precisasse de ir em busca das outras partes de mim, partes que nem conheço ainda, espalhadas por aí ao vento.

Talvez isso justifique, sem eu saber, este impulso incontrolável de querer sair e sair e sair, de querer ir sem nunca saber se quero voltar, de querer explorar o mundo e ver tudo o que houver para ver com os meus próprios olhos, de querer sentir tudo em primeira mão, à flor da pele, desde o Tejo na pátria-mãe, ao frio de Nova Iorque, ao cinzento dos céus de Inglaterra, à neve na Irlanda, à História nas paredes da Alemanha, ao calor intenso de África, à transparência do Mar Adriático na Croácia, ao aroma do incenso nas ruas da Indonésia... Esta sede insaciável de querer trazer comigo um pouco de todo mundo e deixar nele um pouco de mim.

E, assim sem querer, sem rascunho prévio enquanto escrevo, acabo de recordar Exupéry e o seu Principezinho, que por sua vez me lembram forçosamente de ti, na ideia de que "Aqueles que passam por nós não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós." Encaixa-me no coração como uma luva.

Então talvez seja esse o jogo a que ando a jogar, por aqui e por ali, de avião e barco e comboio e autocarro, para trás e para diante, pelas ruas desse mundo. À procura de um equilíbrio, o meu equilíbrio, em busca da minha paz, da minha casa.

À descoberta da medida certa entre aquilo que ganho e aquilo que deixo de mim.

segunda-feira, agosto 20, 2018

Vela em Dia de Chuva

(Não sei quando comecei a tratar-te por Tu. Tenho escrito tanto sobre ti, sempre Tu, e só pensei nisso há pouco quando me voltaste de novo à mente. Agora já vou tarde, mas espero que me perdoes.)

Está a trovejar. Chove forte contra as vidraças das janelas como quando eu era pequeno e tu eras a minha companhia, a luz na minha noite. Fiquei sem electricidade de repente. E isso atirou-me de volta para ti, para a tua Vida, para o teu conforto que tanto me sabia a casa. Atirou-me, em concreto, para o dia da pior tempestade que alguma vez assolou a nossa terra; os nossos campos cultivados, o bosque lá ao fundo e a nossa humilde casinha. Lembras-te?

Voltei a sentir-me pequeno na minha pequenez, sentado no chão abraçado aos joelhos, enquanto a chuva e o vento fustigavam as nossas paredes e os trovões faziam tremer e rugir o chão de madeira. Recordei a luz da lareira ao canto, eu ao meio da sala brincando, tu na mesa logo ao lado, a corrigir provas de Desenho dos teus alunos, quando lá fora ainda havia apenas chuva. Recordei o primeiro relâmpago, fugaz fulminante, irrompendo abruptamente pelas janelas e arrancando-me do meu mundo só meu. E depois o primeiro trovão troando tão perto, ensurdecedor a toda a volta, entrando em mim por todos os meus poros e trocando o passo ao ritmo do meu coração miúdo.

Ficámos sem luz. Abateu-se uma escuridão súbita, afastada gradualmente tão somente pelas chamas da lareira. Comecei a chorar, tenho a certeza, embora não seja capaz de recordar esse detalhe. Recordo, contudo, que não tardaste a pousar o teu lápis e a levantares-te, não para me aconchegares no imediato, mas para ires recolher todas as velas que viviam espalhadas pela casa e as trazeres de volta à sala. No meu pranto, recordo o teu vulto, sombra recortada na lareira, andando para trás e para diante, distribuindo estrategicamente todas as velas em redor. Depois, um clique seco no ar e o teu rosto surgiu, por detrás dos teus óculos meia-lua, iluminado pelo fósforo que acabaras de acender para dar fogo às velas. E uma a uma elas foram acendendo e dançando à minha volta, afastando a pouco e pouco os meus anseios. Quando acabaste, e quando em toda a sala havia luz, não voltaste para a tua mesa e para as tuas provas de Desenho. Vieste, antes, para junto de mim, sentar-te no chão a meu lado, de pernas cruzadas à chinês, como mero colega de escola meu. De igual para igual, mas com mais umas ruguinhas e umas histórias para contar.

(Era sobretudo isso que tu eras para mim, para além de Avó e de professora de Desenho e de pessoa que tudo sobre a Vida sabia. Eras uma contadora de histórias. E como eu gostava de ficar enfeitiçado pelas tuas palavras...!)

A chuva e os trovões ribombavam lá fora e o chão continuava tremendo, mas a tua voz saía segura e doce, serena, como uma melodia que eu adorava ouvir. Os meus olhos colaram-se aos teus, nos tons alaranjados que a lareira e as velas lhes conferiam, e o meu coração abrandou. Colocaste o braço sobre os meus ombros e encostaste-me a ti. Eu encolhia-me e gemia a cada trovão.

"- Às vezes, Tomás, a luz apaga-se."

Foi assim que começaste.

"Apaga-se a luz de nossa casa, a nossa e a dos outros. E apaga-se às vezes porque os dias não são todos iguais e nem sempre faz sol. Porque por vezes há nuvens e há dias cinzentos. Umas vezes faz frio. Outras vezes chove. E outras vezes troveja com tal intensidade que o nosso tecto ameaça desabar e o nosso chão quebrar e ceder sob os nossos pés. Faz parte da Vida. E é normal, ao início, termos medo e ficarmos inseguros. Uma vez e outra e outra a seguir. E não há vergonha nenhuma em mostrar ao mundo que temos medo e que somos inseguros e somos frágeis. Somos pessoas, afinal; somos humanos, e é o teu medo e a tua fragilidade que me dizem que tens um bom coração e que um dia vais também tu saber contar esta história a outrem."

Deixei de ouvir a chuva e os trovões. Sabia que estavam lá ainda, cercando-nos, mas deixei de os escutar. A tua voz entrava em mim a cada palavra e tornava-os mudos.

"Além disso, é também preciso que haja sombra para sabermos apreciar a luz. E é preciso que haja sombra para conhecermos em nós o que não se consegue ver à luz, porque nós somos feitos não só do que é visível, como também do que não se vê. O mais importante, depois de tudo isso, é aprendermos a acender de novo uma luz, por trémula que seja, como uma vela numa noite de chuva e tempestade, para podermos ver onde assentar o pé no nosso próximo passo e, sobretudo, para podermos mostrar aos outros o caminho. Temos de entender que nem todas as pessoas têm velas em casa e que às vezes somos nós a sua única salvação nos dias em que a luz se apaga. Como no dia de hoje. Por isso, vamos os dois ser fortes e aprender a ser uma vela. Que me dizes?"

Recordo a coragem que me brotava no peito ao som da tua voz e a firmeza com que te observava, nos tons laranja vacilantes, seguro de que podia levantar-me naquele instante e ousar ser todas as velas da sala.

É o mesmo olhar com que fito agora a tua fotografia, enquanto acendo a vela ao teu lado e, não escondendo numa lágrima a fragilidade pela tua ausência, me preparo para ser todas as velas da nossa sala e contar esta tua história aos teus bisnetos que agora choram.

Um beijo, com saudade

sexta-feira, julho 27, 2018

De ti fumo teu

Desisti.

Onde é que te meteste...? Procurei-te por toda a parte e nem um sinal de ti...!

Não és justo! Não podes assaltar-me de rompante e roubar-me de mim e do meu porto seguro, com a luz no olhar e o coração sorridente, para depois me desapareceres assim, de súbito, num vapor, num fumo que se esfuma, e deixar-me entregue a mim mesma e à solidão fria de ser-se eu, desesperando sobre a tua ausência, ressacando sobre o calor que me aconchegava o coração, sobre o perfume que deixaste em mim, nas minhas roupas e na minha pele e na minha cama e um pouco por todo o ar (e quiçá já na minha imaginação), sobre o piano leve e doce que ainda me adormece ao longe sobrepondo-se à lareira crepitando, e afogando-me definhando no vaivém de nostalgia que se abate sobre mim como ondas, como mar salgado que é sobretudo agridoce, acumulado e perdido em álbuns de fotografias, memórias das memórias que fomos construindo e colorindo os dois, distantes e dispersas como as estrelas espalhadas ao acaso no céu.

Não podes. Não podes, não podes, não podes! Não devias poder.

Mas de ti nem mais um vislumbre.
De ti nem mais um pio.

segunda-feira, julho 02, 2018

Principezinho e a Raposa


Já dizia a Raposa ao Principezinho “Cativaste-me e agora vais ter de cuidar de mim”. A verdade é que cada um é responsável por aquilo que cativa. Uma parte do que sou – uma parte de mim – está assim entregue nas tuas mãos. Cuida bem dela.

Cuidarei, prometo, até ao meu último fôlego.
Porque é também ela parte de mim e não se escolhe deixar de parte uma parte do todo.

Aprendi contigo, por desígnio do acaso, que acontece algo de bonito sempre que duas almas gémeas cruzam caminhos. E mais ainda quando elas se encontram no curso da Vida por acidente, roçando apenas ao de leve, sem quase darem conta uma da outra.

Mal sabia eu que esse acidente de raspão ia deixar mossa.
E foi aqui, sim, que trocámos as regras todas do jogo.

É que, quando são verdadeiramente gémeas as almas, brota e emerge da terra dos corpos um amor sem par, sem força equivalente talvez em todo o Universo. Também não é nova para ti esta ideia, de mim para ti, das energias do Universo, da felicidade pela felicidade; do amor pelo amor. E não falamos de um amor de paixão ardente na pele e no toque, daquelas de arrancar aos corpos as roupas. Falamos, sim, de uma paixão ardente bem no seio do coração, de amor puro, inocente; de uma ternura harmoniosa e de uma paz leve, doce, que nos invade os pulmões sem pedir licença.

E sem aviso prévio foi essa a porta que se destrancou e abriu algures em nós, nos próprios alicerces do nosso ser. Foi esse o lugar que cativámos a par e passo um no outro, sem saber bem como ou porquê. Mas sabia bem a raposa que quando cativamos, cuidamos para sempre. E foi isso que fomos fazendo, não foi? Dia após dia, em cada gesto, em cada conversa, em cada partilha do que faz nós quem somos hoje. Em cada música, em cada fotografia, em cada confissão, em cada gargalhada, em cada vitória, em cada derrota, em cada lágrima. Em cada minuto que passámos de mãos dadas sem precisarmos de dar as mãos.

"Foi o tempo que perdeste com a tua roza que a fez tão importante.", já dizia a Raposa também, num desses efémeros encontros eternos com o Principezinho.

Como Saint-Exupéry com o Principezinho e a Raposa, escrevemos juntos a história do encontro de duas almas selvagens tão diferentes, mas tão iguais em tantas matérias, em especial na matéria de ver e de sentir o mundo, na matéria de dar o que faz falta sem esperar receber, e sobretudo na matéria de tudo aquilo que é imaterial. Na matéria do que não tem explicação, na matéria do que foge e escapa à lógica. Na matéria do que fala sem usar palavras.

Palavras quero-as apenas para acrescentar um ponto:

Não escrevemos toda a história, ainda. Se concordares, no teu silêncio distante, encerramos aqui apenas um primeiro capítulo. Um de vários. Um de muitos, se possível, enquanto forças houver para escrever.

Porque eu sei dentro de mim, bem no centro daquele labirinto difuso que nunca compreenderás, que temos por esse Universo muitos mais planetas para explorar.

terça-feira, maio 08, 2018

Quando Sabes A-Mar

Arrastei-me até à beira-mar para me arejar de ti.

Trepei pelas rochas até ao trilho onde ninguém caminha, por entre as dunas sobre o mar, e pé ante pé deixei que a melodia síncrona da rebentação me entrasse pelos ouvidos e me inundasse o pensamento.

Não há vivalma na praia onde vou lembrar-me e esquecer-me de ti. Apenas o jazz do vaivém repetido das ondas e marés e a toda a volta a brisa salgada. É isso que tanto me atrai nela e é por isso que eu a escolho: deixa-me estar finalmente a sós com o ruído que causas em mim.

À medida que me aproximo do mar, ficam para trás as passadas na areia, rasto solteiro no areal virgem, e o passado de ti, que as ondas levam de mim a pouco e pouco, apagando de vez. Caminho talvez dois quilómetros ao longo da espuma que vai rebentando e deslizando pela areia, em piloto-automático, até ao refúgio que reclamei para mim. Entro e, com água já pelos tornozelos, sento-me voltado para o mar na reentrância que nunca te mostrei, na esperança de que a maresia leve também de mim o teu perfume.

Ias gostar deste sítio, apesar da tua natureza indomável. É o recanto mais recôndito de toda a praia deserta e faz-te esquecer todo o mundo à volta. Faz-te esquecer o tempo e com tempo faz-te esquecer quem és e de onde vens.

Acalma-me o burburinho das ondas, aqui. Borbulham e soluçam suavemente como num riacho, ao agitarem-se timidamente contra as rochas, embalando-me, e ao longe prolonga-se o eco da rebentação. Enquanto isso, a dança da maré hipnotiza-me, como se chamasse por mim.

A última carta que te escrevi foi no dia dos namorados que nunca fomos. Não quis o mar levar até ti as palavras que nesse dia te escrevi e hoje é nele que me refugio para te silenciar. É irónico, não é? E tu, selvagem, nasceste para mim como o meu próprio mar, que vem e vai e volta; que se toca ao de leve, mas não se pode agarrar.

E por isso, como a ele, eu amo-te e odeio-te loucamente, numa hipnose de ida sem volta, e odeio-me mais ainda por tanto te amar.

segunda-feira, fevereiro 26, 2018

Crónica de um Ecléctico

"És muito mais complexo do que te achas."

Ficaram-me no ouvido as tuas palavras. Ficaram-me no ouvido e fiquei a matutar nelas até agora. Seis horas certinhas. E quis, depois de as ruminar e digerir, dedicar-te mais um pouco do meu tempo para desmistificar essa tua ideia.

Somos todos "muito mais complexos" do que o mundo vê, não somos? No nosso íntimo, isto é. Tu saberás quão complexa és e eu, que tanto observo, para dentro e para fora - mas especialmente para dentro -, sei exactamente quão complexo sou.

Entendo as tuas premissas: sou uma encruzilhada de coisas, umas mais óbvias, outras completo mistério para ti. Uma imensidão de peças diferentes, de diferentes tamanhos e feitios, por vezes diametralmente opostos, que não entendes como podem encaixar umas nas outras. Crenças e gostos, desgostos e dores, medos e amores, sombras e cores. Caos e paz. A antítese de uma alma racional. A minha natureza divergente, "ecléctica", como bem me ensinou a outra Joana. Mas, ao mesmo tempo, sinto-me bastante mais simples do que a maioria das pessoas que te rodeiam.

Repara que, nos dias de hoje, o que é "normal", aceitável, é fazer-se tudo ao contrário do que realmente se quer fazer. Faz-se aquilo que é esperado que façamos, porque alguém nos impôs, declarada ou tacitamente, que é assim que deve ser. Ou, por outro prisma, tudo é feito em nome do reconhecimento ou da vanglória que possa daí - das acções, das palavras e dos gestos - resultar e ser retirado. Ser bebido e absorvido, como alimento da alma, para satisfação pessoal. Para proveito e benefício próprio, reflectida ou irreflectidamente, porque as pessoas de hoje precisam dessa almofada de aceitação, desse conforto onde deitar a cabeça ao final do dia. A acção pelo Eu. A acção pelo ego. A acção pela consequência.

Eu não funciono nesse registo. Funciono, antes, num muito mais básico. Porque a nossa felicidade enquanto seres humanos reside nas coisas simples, pequenas, e sobretudo em coisas genuínas. Um sorriso, por exemplo, não tem preço. Aquele instante de felicidade verdadeira e inocente, esse reflexo puro e nostálgico do que é ser-se de novo Criança, tem a força do mundo. E, por isso, causar um sorriso, por efémero que seja, vale todo e qualquer esforço, a qualquer hora e em qualquer parte do mundo.

Há algo de belo na luz das pessoas. Na felicidade pela felicidade. Tu chamas-lhe Deus, o amor de Cristo; eu não tenho nome para lhe dar. Mas há de facto um qualquer brilho e isso, com ou sem nome, cativa-me e todos os dias eu quero, só, encontrá-lo de novo nos olhos de alguém. Seja ou não eu a causa, eu o reconhecimento, eu a vanglória.

Eu sou isso. A acção pela acção. E "isso" é simples: se entender que uma palavra pode mudar o teu dia, então vou conceder-ta na hora, sem rodeios, sem me preocupar com o que possam à volta pensar. Do mesmo modo, se, mesmo que por breves instantes, acreditar que um ínfimo gesto pode ser a diferença num dia menos bom, então eu vou lá estar sem pensar duas vezes. E nem sempre tu me verás lá. Sabe, apenas e só, que aguardarei à espreita na esquina do anonimato, desentendido, para te ver sorrir.

O reconhecimento pelo gesto? Pouco importa. De que vale encher o ego se o teu sorriso puro me enche o coração?

segunda-feira, fevereiro 19, 2018

Sem título

E se eu te contasse que tenho um tumor?

Se te confidenciasse que há cinco anos que isso interfere com o meu quotidiano? Se te contasse que, de ano para ano, de dia para dia, vou tendo menos energia, menos esperança, menos vontade? Se te contasse, já agora, que mais dia menos dia isso há-de me matar?

Não quero que sintas pena. Não preciso que sintas pena. Mas preciso - e tu precisas mais ainda - que entendas que nem tudo é como tu gostas de imaginar. Como tu teimosamente achas que sabes. Flores e borboletas e cores bonitas por toda a parte e quando o vento sopra de um ângulo mais estranho, que não te é familiar, tu queixas-te e lamentas-te e revoltas-te contra a Vida e contra o mundo. Tu, de todas as pessoas.

Desculpa, não podemos todos ter a vida perfeitinha que tu tens (a sorte de ter). Tomara eu. Tomara eu e eu já nem pedia tudo o que tu tens; um terço bastava-me. Um décimo! Saúde bastava, aliás. E desculpa-me se, perante isso, não conseguimos todos ser fortes todos os dias, firmes e hirtos como rochas, de braços e ouvidos abertos para te oferecer um ombro onde chorares e de seguida escutar os teus dilemas diários. Desculpa-me se não conseguimos ser todos quentes e amáveis a toda a hora, prontos a dar-te a palavra amiga e doce que vens procurar. Compreensivos, sorridentes e alegres a todos os minutos.

Antes pelo contrário; é fodido sê-lo um minuto que seja. Não te passa pela cabeça quão difícil é encontrares na tua dor e no teu desespero a força para te lembrares de como se esboça um sorriso. De como fazê-lo parecer credível. E, no entanto, aqui me tens, após 26 anos em esforço para que nunca o soubesses. Interrompo o exercício que me consome a vitalidade a cada dia porque é hora de acabares com este teu modelo em que o teu umbigo e os teus problemas são o centro do Universo e em que tudo o resto à volta é poeira espacial, à deriva para usares a teu bel-prazer na senda do teu capricho.

Eu tenho problemas sérios. Eu e provavelmente mais vinte pessoas com quem desabafas ao longo dos teus dias. E eu, por mim, cansei-me de ser um peão no teu jogo egoísta para de seguida ser pisado e tratado a chuto. Não podias adivinhar, claro que não; ninguém pode adivinhar a história que se esconde por detrás de um rosto. Mas a lição que tens a aprender urgentemente é a de que, não podendo adivinhar, é estupidez pura e dura assumires que a conheces e tratares quem te rodeia como se a conhecesses.

Quando te deitares hoje, à data em que me leres, imagina por dez minutos o que é viver com um tumor e ter os dias contados. Faz esse exercício e imagina todas as implicações que isso traria. Pensa bem, em tudo. Absorve-as e sente-as na pele. Sente o medo no estômago e a ansiedade nos pulmões. Sente a angústia entalada na garganta. Sente a cabeça tão à roda que só te apetece vomitar. E à luz disso, caso consigas senti-lo, olha de novo para ti e compara-o com aquilo a que tu insistes em chamar de problemas.

E amanhã, se o meu telefone ainda tocar, aguardo o teu telefonema para tomarmos um último café.

quarta-feira, fevereiro 14, 2018

Mensagem ao Mar

Li a tua carta em segredo.

E é em segredo que te respondo, atirando ao mar as palavras que escrevo, na vã esperança de que um dia cheguem até ti. Pragmaticamente, sei que não vão chegar nunca, que vão apenas flutuar até ao horizonte e continuar flutuando por esse mundo fora, mas sonhar nunca fez mal a ninguém. Além disso, embora queira muito pegar-te pelas mãos decerto frias e dizer-to, não tenho a certeza se quero que oiças ou leias o que tenho para te dizer. E, por isso, do alto da minha timidez, deixar ao acaso a mensagem soou-me bem.

Disseste querer saber como é ser-se eu. Reflectindo um pouco sobre a questão, depreendi que era tema para falarmos durante horas a fio. Dias, talvez. Teria tanto para contar-te que não haveria neste barco - neste em que vivo entre lá e cá - pergaminhos ou tinta suficientes para te responder completamente. Tenho papel e tinta, contudo, para clarificar o ponto que levantas, sobre eu fechar-te a porta e trancar-me à chave:

Ser-se eu é ser-se infinitamente atento, com uma sensibilidade acutilante, ao pormenor de tudo e de todas as coisas. Das imagens, dos sons, das cores, dos objectos, das pessoas, das palavras e dos gestos. Dos maiores aos mais pequenos; dos visíveis aos invisíveis. E então, ser-se eu é perigoso. É perigoso, em particular, porque quando eu olho para ti o meu olhar não se fica pela tua pele, pelo teu corpo, pelo teu rosto... Não. Quando eu olho para ti perfuro o que vejo e entro de rompante pelo teu olhar até ao fundo de ti. Quando eu olho para ti vejo bater o teu coração, frágil, exposto. Vejo-o rir, vejo-o chorar. Analiso-o milimetricamente, de todos os ângulos, e logo listo para mim as dez mil coisas boas, à imagem egoísta das minhas crenças e dos meus valores, que poderias vir a ser.

Imagino que não entendas onde reside o perigo nisso, mas eu explico-te:

Quando lês no coração de alguém um tal conjunto de atributos não efectivos, a imediata consequência é tentares convencer-te de que essa pessoa tenderá naturalmente para se transformar, com o tempo, nessa versão melhorada - aos teus olhos - de si mesma. O que é perfeitamente ilógico na medida em que, na grande maioria dos casos, nem a própria pessoa tem conhecimento ou noção desse seu potencial para algo maior. Pior ainda, estabeleces com essa versão melhorada de alguém uma ligação inviolável e começas a tomá-la como a verdadeira versão da pessoa que respira à tua frente, mas que tu nem vês. E é aqui que reside o perigo, bem iminente: deixas de ver, como se enfeitiçado por algo que só tu vês, mas que na verdade nem está realmente lá.

E isso traz-nos, por fim, a ti e ao meu silêncio. Apaixonei-me por ti. Cometi esse erro crasso. E, não te iludas, queria vezes de mais cometê-lo de novo. Todavia, entendi há uns dias que não foi por ti que me apaixonei, realmente. Por ti pela pessoa que és. Foi, sim, pela pessoa que eu imaginava em ti, pela versão de ti que talvez pudesses vir a ser um dia. Mas que, em todos os campos e parâmetros, não eras. Deixei de viver o valor que tens, porque quis agarrar-me ao valor que eu tinha idealizado para ti. E desde então todos os teus passos e gestos caíram em mim como facas enterrando-se-me entre as costelas e girando e torcendo-se em desapontamento.

Sem culpa tua, os resquícios de ti sedimentaram sob a forma de dor. E por isso, para minha própria protecção e sobrevivência, bloqueei-te de mim e afastei-te para longe. Recolhi-me na minha carapaça, corri a cortina e fechei-te a porta para não tornares a entrar.

Se me perguntasses hoje, teria adorado conscientemente aceder ao teu convite e conhecer quem eras, à data. A versão actual de ti mesma, com todos os teus defeitos, sem mudar uma vírgula ou um cabelo. E, pergunto-me, talvez tivesse resultado. Porque essa será sempre, sem sombra de dúvidas, a melhor versão de ti mesma. (Que é, como te disse há meses, linda da cabeça aos pés.)

Apaixonei-me por alguém que tu não és, alguém que existe apenas na minha cabeça, e isso matou todas as minhas hipóteses com a pessoa que tu és de verdade e eu vou ter de viver com isso para o resto dos meus dias.

Não tenho papel para muito mais. Não é muito, mas espero que dê para experimentares um pouco da loucura que é ser-se prisioneiro deste corpo e dono desta cabeça. Um pouco do que é ser-se eu.

Desculpa-me.

segunda-feira, fevereiro 12, 2018

Como é Ser-se Tu?

Sou doida por ele, mas não sei quem ele é.

Calma, não me julgues louca.

Sei-lhe - é claro - o nome, sei-lhe os traços do rosto, o jeito como apara a barba e o perfume que usa. Sei o que faz durante o dia, sei que reflecte na companhia de um cigarro e que gosta de beber um copo com os amigos. Mas não sei quem ele é, realmente.

Noutros tempos não me faria diferença essa questão. Catalogava as pessoas por aquilo que via e ouvia delas numa base diária e isso, sendo honesta, chegava-me. Mas há uns meses - anos, sei lá - sugeriram-me, até em contexto profissional, que fizesse um teste com as pessoas com quem, por força das circunstâncias, partilhava diariamente o meu espaço e o ar que respiro. E o teste era tão simples quanto perguntar às pessoas algo nas linhas de "Como é ser-se tu?" e, desse momento em diante, ouvir. Escutar e absorver cada palavra, até entrar completamente na pele e nos sapatos de quem fala.

E eu, não obediente mas psicossociologicamente curiosa, assim fiz. Claro que ouvir, apenas, não me trouxe muitos resultados, a início. Nos casos em que não me ignoravam ou não me achavam lunática ou invasiva, conseguia apenas que partilhassem uma primeira camada da sua vida mais pessoal, do seu Eu mais genuíno, e morria aí o assunto.

Aprendi com o tempo a mudar um pouco as regras do jogo e após escutar comecei a introduzir mais uma e outra pergunta, sempre breves, estabelecendo assim o fio condutor da conversa. E foi assim que, a pouco e pouco, comecei a atravessar as várias camadas de cada uma dessas pessoas e a conseguir ver a vida através de olhares tão diferentes do meu. A conseguir ver as pessoas por quem realmente são, na sua mais pura versão, com as suas qualidades, feitios, defeitos e inseguranças. E que coisas maravilhosas, Deus, há por encontrar nesse lugar fora de nós...!

E é aí que entra ele e a minha angústia. O nome, o rosto e o perfume todos conhecem. Mas que história de vida tem ele? Que passado e que dores traz às costas, que feridas e cicatrizes carrega no corpo e no coração, e de que forma isso se lhe traduz na forma de ver o mundo e a Vida e a Morte e o amor e as pessoas?

Não consigo conhecer-lhe isso. Quero muito, mas sempre que tento aproximar-me ele afasta-me; repele-me de imediato do espaço dele, daquele perímetro de segurança em que se barrica, muitas vezes sem precisar sequer de proferir uma palavra. É como se lhe sentisse a carapaça invisível a fechar-se sobre si próprio, uma cortina que corre de imediato para me separar do que se esconde atrás dela. Fecha-me a porta e tranca-se lá dentro, para que eu nem tente girar a maçaneta.

Fico frustrada. Até porque gostava, reciprocamente, de me dar a conhecer. De lhe dar nota de que, como ele, não deixo a minha porta aberta a muita gente. De lhe explicar que não sou estranha, mas sim que carrego em mim marcas profundas - que a maioria das pessoas não tem como compreender - e que opto, por isso, por me afastar para não lhes deixar nem um vislumbre delas. De lhe confessar que não sou calada, mas sim que tenho demasiado ruído em mim. E demasiada música, também!

E então chego finalmente a este impasse: se me mantiver quieta, ficaremos exactamente no mesmo sítio, a uma distância infinita de nos conhecermos. Eu aqui, ele no mundo dele. Se avançar, passo em falso, corro o risco de ele fugir de novo e de se fechar de vez. Sou doida por ele e preciso de medir e calcular ao milímetro cada passo a partir de agora.

É exactamente como uma dança.
Só que eu nunca tive muito jeito para dançar.

sexta-feira, fevereiro 09, 2018

Amor à Segunda Primeira Vista

Suspeitei pelo teu último olhar, pela última palavra que não disseste, que desta vez a Vida ia levar-nos por caminhos opostos. Confirmei-o uns tempos depois, quando te vi perderes-te no sorriso dele e afogares-te num abraço que não era o meu. E aí entendi que desta vez era para sempre.

Quebrei por dentro.
Não era para sempre; era para nunca.

A início quis odiar-te, sou franco. E tentei-o com todas as minhas forças. Procurei dar-me a mim próprio todos os argumentos lógicos para te odiar. Tentei e tentei e tentei. Mas falou sempre mais alto o meu amor por ti. Palpitava-me na mente a memória do teu sorriso, um vislumbre dele ao longe, e todo eu cedia.

Então, quis odiá-lo a ele, o teu Ele, escolhido por ti a dedo para ocupar o lugar que eu queria para mim. A mão que eu queria para mim. A pessoa que eu queria para mim. Mas como se odeia alguém que se compromete a tomar conta de Ti, o meu amor para a vida toda, para o resto dos seus dias?

Desisti do ódio e resignei-me, ainda que não entendesse as voltas que dá a Vida. Respirei fundo e sentei-me sozinho no meu canto, no banco do meu jardim que carrego em mim para toda a parte, e deixei que o mundo girasse.

Não espero que ainda me leias (aprendi-te o bastante para te saber Mulher decidida e entender que, quando te propões a seguir caminho, não mais olhas para trás), mas conto todavia que, de tudo o que falámos, te recordes do longo debate sobre a religião, as almas e o sentido da Vida. E de que, de toda essa argumentação, foi sobre as almas que mais nos debruçámos. Em concreto, sobre a quase poética hipótese da reencarnação, da renovação da alma entre duas vidas materiais, corpóreas, distintas. A hipótese, por outras palavras, de uma mesma alma habitar vários corpos diferentes em tempos diferentes, vivendo assim mais do que uma vida ao longo do seu tempo útil - seja ele qual for.

Foi esse o pensamento que me despertou da minha meditação, que se prolongava desde o dia em que viraste costas. Até então, eu costumava pensar que era uma alma velha, experiente e cansada, mas percebi que, em boa verdade, tudo à minha volta sabia e cheirava a novo, como se a alma que em mim habita fosse apenas jovem, adolescente talvez. Conheci-te nesta vida, num nervoso miudinho, e conhecia-te fazia muito pouco tempo, era essa a verdade... Não houve tempo para crescer perto de ti, para nos aproximarmos gradualmente de um terreno comum, a meio caminho dos dois, e para nos cativarmos.

Pensei então para mim que talvez tudo pudesse ser diferente numa próxima vida. Que talvez pudéssemos lançar de novo os dados e que pudéssemos também nós ser diferentes. Na próxima vida, a minha alma saberá já que existes e poderá procurar-te desde o primeiro dia em que tornar ao mundo e respirar fundo pela segunda primeira vez.

A ideia reconforta-me o espírito.
O coração bate compassado.

Vejo-te numa próxima vida, talvez?

sexta-feira, fevereiro 02, 2018

Silêncio no Sangue

A noite fascina-me.

Eu sei que é o dia que traz o sol e a luz e o calor e as cores, o céu azul, os campos verdejantes, a água cristalina, os pássaros nas árvores, a vida a toda a volta. Eu sei. Sei isso tudo. Mas, ainda assim, é a noite que me cativa.

De preferência, se puder escolher, aquelas noites durante a semana de trabalho, porque nessas, bem a meio, sais de mansinho à varanda e escutas o silêncio. Apenas e só. Consegues ouvi-lo: para lá do teu muro, a súbita cessação do caos do dia, pairando no ar como uma melodia muda, suspensa, em pausa indefinida.

Lá no alto, a lua e as estrelas fazem-te sentir que não estás sozinha, ainda que estivesses num deserto. Sussurram-te lá do longe que também elas estão acordadas para te fazerem companhia. Na rua, mais abaixo, os semáforos alternam num jogo de luz e sombra, entre o verde e o amarelo e o vermelho, para um trânsito invisível. Imagino por dois segundos a brisa do ar a parar obedientemente perante o vermelho, atravessando depois o cruzamento sob a luz verde, num pára-arranca ritmado, suave.

A ausência de tudo apazigua a mente e reconforta a alma. Sem o sol, vai-se a luz; sem a luz, vão-se as pessoas; sem as pessoas, vão-se os carros e as lambretas, vai-se o ruído, vai-se a agitação, vai-se a pressa, vai-se a ansiedade. Ficas tu, acordada, e uma paz infinita à tua volta. É desse silêncio e dessa paz que eu mais gosto. Os meus quinze minutos, num dia que dizem ter vinte e quatro horas, só para mim. Eu e os meus botões. Eu e os meus pensamentos. Eu e as minhas reflexões sobre o dia que passou.

Reflectes sobre os pais que estão longe, sobre os avós que estão velhos, sobre os irmãos que constroem as suas vidas pedra sobre pedra, sobre os amigos que vão casando, sobre os problemas dos outros que tomas para ti como teus e, por fim, sobre ti mesma. Sobre os teus sucessos e os teus fracassos, os teus desejos e os teus medos, as tuas ambições e as tuas fragilidades. Especialmente aquelas mais sombrias, que evitas durante o dia, mas de que durante a noite não tens como fugir.

Depois, medes o valor do dia que terminou pela soma ponderada de todas essas parcelas e pela forma como, por fim, isso se reflectiu em ti, bem no fundo do teu ser; no fundo do teu coração de que não falas e não revelas a ninguém. Fica em teu segredo, de ti para ti, entre as estrelas e a lua e os semáforos que continuam piscando. E é por isso que tanto me cativa a noite, porque conhecer a noite é conheceres cantos de ti que nunca conheceste; é ires mais longe e é ires mais fundo ao centro de quem és e é, por tudo isso, conheceres e aprenderes a conviver em paz com cada traço de ti, os bons e os menos bons. Aqueles de que gostas, aqueles que desprezas e aqueles que odeias.

Na noite seguinte tornas a esgueirar-te lá para fora em plena madrugada e o silêncio apodera-se de ti como droga no sangue. A experiência torna-se hábito, depois rotina e pouco depois vício. Não contas a ninguém, mas o dia seguinte nasce e tu só fazes figas para que passe depressa e a noite regresse, para te sentares de novo na varanda, à mesa com o silêncio, frente a frente contigo própria.

quarta-feira, janeiro 17, 2018

Amor Descartável

Não pertenço aqui.

Não sou deste lugar ou, pelo menos, deste tempo. Não tenho como entender os objectivos do hoje de hoje e seguramente não conheço as regras do novo jogo. Mudaram sem aviso prévio e as cartas que tinha na mão parecem ter-se tornado obsoletas.

Olho em redor e de repente, entre o frenesim do emprego, os smartphones e as redes "sociais", todos aparentam ser independentes, fortes, destemidos, insensíveis, inquebráveis. Fotocópias uns dos outros, à imagem de um outro alguém. Ou, noutra palavra mais actual, robôs.

Que é feito dos sonhos? Que é feito do medo? Que é feito da fragilidade? Que é feito da saudade? Que é feito da bondade? Que é feito da cortesia? Que é feito do carinho? Que é feito do amor, em todos os seus reflexos? Que é feito da humanidade que fazia de nós humanos?

Talvez eu seja tecnologia da velha guarda e tenha sido ultrapassado pela tecnologia de ponta. Onde preço, em vez de valor e valores, é palavra de ordem. Onde saber esperar deixou de ser virtude, onde cavalheirismo é sinónimo de fraqueza e onde fugir e descartar são sempre melhores opções do que assumir ou reparar. Podemos ser parecidos por fora, mas somos feitos de fibra completamente diferente por dentro; dois rádios sintonizados em frequências distintas. E na minha não se joga ao jogo dos instintos básicos e das relações descartáveis.

Prefiro o meu jogo, as minhas cartas e as minhas regras. Não quero levar-te para a cama e amanhã sermos dois estranhos que saciaram o desejo da carne. Quero acolher-te no meu coração e amanhã viver tudo o que há para viver de Ti, até que a morte nos separe.

Porque há uma pequena grande diferença entre deitar-me com o teu corpo e deitar-me contigo.