segunda-feira, fevereiro 26, 2018

Crónica de um Ecléctico

"És muito mais complexo do que te achas."

Ficaram-me no ouvido as tuas palavras. Ficaram-me no ouvido e fiquei a matutar nelas até agora. Seis horas certinhas. E quis, depois de as ruminar e digerir, dedicar-te mais um pouco do meu tempo para desmistificar essa tua ideia.

Somos todos "muito mais complexos" do que o mundo vê, não somos? No nosso íntimo, isto é. Tu saberás quão complexa és e eu, que tanto observo, para dentro e para fora - mas especialmente para dentro -, sei exactamente quão complexo sou.

Entendo as tuas premissas: sou uma encruzilhada de coisas, umas mais óbvias, outras completo mistério para ti. Uma imensidão de peças diferentes, de diferentes tamanhos e feitios, por vezes diametralmente opostos, que não entendes como podem encaixar umas nas outras. Crenças e gostos, desgostos e dores, medos e amores, sombras e cores. Caos e paz. A antítese de uma alma racional. A minha natureza divergente, "ecléctica", como bem me ensinou a outra Joana. Mas, ao mesmo tempo, sinto-me bastante mais simples do que a maioria das pessoas que te rodeiam.

Repara que, nos dias de hoje, o que é "normal", aceitável, é fazer-se tudo ao contrário do que realmente se quer fazer. Faz-se aquilo que é esperado que façamos, porque alguém nos impôs, declarada ou tacitamente, que é assim que deve ser. Ou, por outro prisma, tudo é feito em nome do reconhecimento ou da vanglória que possa daí - das acções, das palavras e dos gestos - resultar e ser retirado. Ser bebido e absorvido, como alimento da alma, para satisfação pessoal. Para proveito e benefício próprio, reflectida ou irreflectidamente, porque as pessoas de hoje precisam dessa almofada de aceitação, desse conforto onde deitar a cabeça ao final do dia. A acção pelo Eu. A acção pelo ego. A acção pela consequência.

Eu não funciono nesse registo. Funciono, antes, num muito mais básico. Porque a nossa felicidade enquanto seres humanos reside nas coisas simples, pequenas, e sobretudo em coisas genuínas. Um sorriso, por exemplo, não tem preço. Aquele instante de felicidade verdadeira e inocente, esse reflexo puro e nostálgico do que é ser-se de novo Criança, tem a força do mundo. E, por isso, causar um sorriso, por efémero que seja, vale todo e qualquer esforço, a qualquer hora e em qualquer parte do mundo.

Há algo de belo na luz das pessoas. Na felicidade pela felicidade. Tu chamas-lhe Deus, o amor de Cristo; eu não tenho nome para lhe dar. Mas há de facto um qualquer brilho e isso, com ou sem nome, cativa-me e todos os dias eu quero, só, encontrá-lo de novo nos olhos de alguém. Seja ou não eu a causa, eu o reconhecimento, eu a vanglória.

Eu sou isso. A acção pela acção. E "isso" é simples: se entender que uma palavra pode mudar o teu dia, então vou conceder-ta na hora, sem rodeios, sem me preocupar com o que possam à volta pensar. Do mesmo modo, se, mesmo que por breves instantes, acreditar que um ínfimo gesto pode ser a diferença num dia menos bom, então eu vou lá estar sem pensar duas vezes. E nem sempre tu me verás lá. Sabe, apenas e só, que aguardarei à espreita na esquina do anonimato, desentendido, para te ver sorrir.

O reconhecimento pelo gesto? Pouco importa. De que vale encher o ego se o teu sorriso puro me enche o coração?

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