quarta-feira, fevereiro 14, 2018

Mensagem ao Mar

Li a tua carta em segredo.

E é em segredo que te respondo, atirando ao mar as palavras que escrevo, na vã esperança de que um dia cheguem até ti. Pragmaticamente, sei que não vão chegar nunca, que vão apenas flutuar até ao horizonte e continuar flutuando por esse mundo fora, mas sonhar nunca fez mal a ninguém. Além disso, embora queira muito pegar-te pelas mãos decerto frias e dizer-to, não tenho a certeza se quero que oiças ou leias o que tenho para te dizer. E, por isso, do alto da minha timidez, deixar ao acaso a mensagem soou-me bem.

Disseste querer saber como é ser-se eu. Reflectindo um pouco sobre a questão, depreendi que era tema para falarmos durante horas a fio. Dias, talvez. Teria tanto para contar-te que não haveria neste barco - neste em que vivo entre lá e cá - pergaminhos ou tinta suficientes para te responder completamente. Tenho papel e tinta, contudo, para clarificar o ponto que levantas, sobre eu fechar-te a porta e trancar-me à chave:

Ser-se eu é ser-se infinitamente atento, com uma sensibilidade acutilante, ao pormenor de tudo e de todas as coisas. Das imagens, dos sons, das cores, dos objectos, das pessoas, das palavras e dos gestos. Dos maiores aos mais pequenos; dos visíveis aos invisíveis. E então, ser-se eu é perigoso. É perigoso, em particular, porque quando eu olho para ti o meu olhar não se fica pela tua pele, pelo teu corpo, pelo teu rosto... Não. Quando eu olho para ti perfuro o que vejo e entro de rompante pelo teu olhar até ao fundo de ti. Quando eu olho para ti vejo bater o teu coração, frágil, exposto. Vejo-o rir, vejo-o chorar. Analiso-o milimetricamente, de todos os ângulos, e logo listo para mim as dez mil coisas boas, à imagem egoísta das minhas crenças e dos meus valores, que poderias vir a ser.

Imagino que não entendas onde reside o perigo nisso, mas eu explico-te:

Quando lês no coração de alguém um tal conjunto de atributos não efectivos, a imediata consequência é tentares convencer-te de que essa pessoa tenderá naturalmente para se transformar, com o tempo, nessa versão melhorada - aos teus olhos - de si mesma. O que é perfeitamente ilógico na medida em que, na grande maioria dos casos, nem a própria pessoa tem conhecimento ou noção desse seu potencial para algo maior. Pior ainda, estabeleces com essa versão melhorada de alguém uma ligação inviolável e começas a tomá-la como a verdadeira versão da pessoa que respira à tua frente, mas que tu nem vês. E é aqui que reside o perigo, bem iminente: deixas de ver, como se enfeitiçado por algo que só tu vês, mas que na verdade nem está realmente lá.

E isso traz-nos, por fim, a ti e ao meu silêncio. Apaixonei-me por ti. Cometi esse erro crasso. E, não te iludas, queria vezes de mais cometê-lo de novo. Todavia, entendi há uns dias que não foi por ti que me apaixonei, realmente. Por ti pela pessoa que és. Foi, sim, pela pessoa que eu imaginava em ti, pela versão de ti que talvez pudesses vir a ser um dia. Mas que, em todos os campos e parâmetros, não eras. Deixei de viver o valor que tens, porque quis agarrar-me ao valor que eu tinha idealizado para ti. E desde então todos os teus passos e gestos caíram em mim como facas enterrando-se-me entre as costelas e girando e torcendo-se em desapontamento.

Sem culpa tua, os resquícios de ti sedimentaram sob a forma de dor. E por isso, para minha própria protecção e sobrevivência, bloqueei-te de mim e afastei-te para longe. Recolhi-me na minha carapaça, corri a cortina e fechei-te a porta para não tornares a entrar.

Se me perguntasses hoje, teria adorado conscientemente aceder ao teu convite e conhecer quem eras, à data. A versão actual de ti mesma, com todos os teus defeitos, sem mudar uma vírgula ou um cabelo. E, pergunto-me, talvez tivesse resultado. Porque essa será sempre, sem sombra de dúvidas, a melhor versão de ti mesma. (Que é, como te disse há meses, linda da cabeça aos pés.)

Apaixonei-me por alguém que tu não és, alguém que existe apenas na minha cabeça, e isso matou todas as minhas hipóteses com a pessoa que tu és de verdade e eu vou ter de viver com isso para o resto dos meus dias.

Não tenho papel para muito mais. Não é muito, mas espero que dê para experimentares um pouco da loucura que é ser-se prisioneiro deste corpo e dono desta cabeça. Um pouco do que é ser-se eu.

Desculpa-me.

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