"És muito mais complexo do que te achas."
Ficaram-me no ouvido as tuas palavras. Ficaram-me no ouvido e fiquei a matutar nelas até agora. Seis horas certinhas. E quis, depois de as ruminar e digerir, dedicar-te mais um pouco do meu tempo para desmistificar essa tua ideia.
Somos todos "muito mais complexos" do que o mundo vê, não somos? No nosso íntimo, isto é. Tu saberás quão complexa és e eu, que tanto observo, para dentro e para fora - mas especialmente para dentro -, sei exactamente quão complexo sou.
Entendo as tuas premissas: sou uma encruzilhada de coisas, umas mais óbvias, outras completo mistério para ti. Uma imensidão de peças diferentes, de diferentes tamanhos e feitios, por vezes diametralmente opostos, que não entendes como podem encaixar umas nas outras. Crenças e gostos, desgostos e dores, medos e amores, sombras e cores. Caos e paz. A antítese de uma alma racional. A minha natureza divergente, "ecléctica", como bem me ensinou a outra Joana. Mas, ao mesmo tempo, sinto-me bastante mais simples do que a maioria das pessoas que te rodeiam.
Repara que, nos dias de hoje, o que é "normal", aceitável, é fazer-se tudo ao contrário do que realmente se quer fazer. Faz-se aquilo que é esperado que façamos, porque alguém nos impôs, declarada ou tacitamente, que é assim que deve ser. Ou, por outro prisma, tudo é feito em nome do reconhecimento ou da vanglória que possa daí - das acções, das palavras e dos gestos - resultar e ser retirado. Ser bebido e absorvido, como alimento da alma, para satisfação pessoal. Para proveito e benefício próprio, reflectida ou irreflectidamente, porque as pessoas de hoje precisam dessa almofada de aceitação, desse conforto onde deitar a cabeça ao final do dia. A acção pelo Eu. A acção pelo ego. A acção pela consequência.
Eu não funciono nesse registo. Funciono, antes, num muito mais básico. Porque a nossa felicidade enquanto seres humanos reside nas coisas simples, pequenas, e sobretudo em coisas genuínas. Um sorriso, por exemplo, não tem preço. Aquele instante de felicidade verdadeira e inocente, esse reflexo puro e nostálgico do que é ser-se de novo Criança, tem a força do mundo. E, por isso, causar um sorriso, por efémero que seja, vale todo e qualquer esforço, a qualquer hora e em qualquer parte do mundo.
Há algo de belo na luz das pessoas. Na felicidade pela felicidade. Tu chamas-lhe Deus, o amor de Cristo; eu não tenho nome para lhe dar. Mas há de facto um qualquer brilho e isso, com ou sem nome, cativa-me e todos os dias eu quero, só, encontrá-lo de novo nos olhos de alguém. Seja ou não eu a causa, eu o reconhecimento, eu a vanglória.
Eu sou isso. A acção pela acção. E "isso" é simples: se entender que uma palavra pode mudar o teu dia, então vou conceder-ta na hora, sem rodeios, sem me preocupar com o que possam à volta pensar. Do mesmo modo, se, mesmo que por breves instantes, acreditar que um ínfimo gesto pode ser a diferença num dia menos bom, então eu vou lá estar sem pensar duas vezes. E nem sempre tu me verás lá. Sabe, apenas e só, que aguardarei à espreita na esquina do anonimato, desentendido, para te ver sorrir.
O reconhecimento pelo gesto? Pouco importa. De que vale encher o ego se o teu sorriso puro me enche o coração?
segunda-feira, fevereiro 26, 2018
segunda-feira, fevereiro 19, 2018
Sem título
E se eu te contasse que tenho um tumor?
Se te confidenciasse que há cinco anos que isso interfere com o meu quotidiano? Se te contasse que, de ano para ano, de dia para dia, vou tendo menos energia, menos esperança, menos vontade? Se te contasse, já agora, que mais dia menos dia isso há-de me matar?
Não quero que sintas pena. Não preciso que sintas pena. Mas preciso - e tu precisas mais ainda - que entendas que nem tudo é como tu gostas de imaginar. Como tu teimosamente achas que sabes. Flores e borboletas e cores bonitas por toda a parte e quando o vento sopra de um ângulo mais estranho, que não te é familiar, tu queixas-te e lamentas-te e revoltas-te contra a Vida e contra o mundo. Tu, de todas as pessoas.
Desculpa, não podemos todos ter a vida perfeitinha que tu tens (a sorte de ter). Tomara eu. Tomara eu e eu já nem pedia tudo o que tu tens; um terço bastava-me. Um décimo! Saúde bastava, aliás. E desculpa-me se, perante isso, não conseguimos todos ser fortes todos os dias, firmes e hirtos como rochas, de braços e ouvidos abertos para te oferecer um ombro onde chorares e de seguida escutar os teus dilemas diários. Desculpa-me se não conseguimos ser todos quentes e amáveis a toda a hora, prontos a dar-te a palavra amiga e doce que vens procurar. Compreensivos, sorridentes e alegres a todos os minutos.
Antes pelo contrário; é fodido sê-lo um minuto que seja. Não te passa pela cabeça quão difícil é encontrares na tua dor e no teu desespero a força para te lembrares de como se esboça um sorriso. De como fazê-lo parecer credível. E, no entanto, aqui me tens, após 26 anos em esforço para que nunca o soubesses. Interrompo o exercício que me consome a vitalidade a cada dia porque é hora de acabares com este teu modelo em que o teu umbigo e os teus problemas são o centro do Universo e em que tudo o resto à volta é poeira espacial, à deriva para usares a teu bel-prazer na senda do teu capricho.
Eu tenho problemas sérios. Eu e provavelmente mais vinte pessoas com quem desabafas ao longo dos teus dias. E eu, por mim, cansei-me de ser um peão no teu jogo egoísta para de seguida ser pisado e tratado a chuto. Não podias adivinhar, claro que não; ninguém pode adivinhar a história que se esconde por detrás de um rosto. Mas a lição que tens a aprender urgentemente é a de que, não podendo adivinhar, é estupidez pura e dura assumires que a conheces e tratares quem te rodeia como se a conhecesses.
Quando te deitares hoje, à data em que me leres, imagina por dez minutos o que é viver com um tumor e ter os dias contados. Faz esse exercício e imagina todas as implicações que isso traria. Pensa bem, em tudo. Absorve-as e sente-as na pele. Sente o medo no estômago e a ansiedade nos pulmões. Sente a angústia entalada na garganta. Sente a cabeça tão à roda que só te apetece vomitar. E à luz disso, caso consigas senti-lo, olha de novo para ti e compara-o com aquilo a que tu insistes em chamar de problemas.
E amanhã, se o meu telefone ainda tocar, aguardo o teu telefonema para tomarmos um último café.
Se te confidenciasse que há cinco anos que isso interfere com o meu quotidiano? Se te contasse que, de ano para ano, de dia para dia, vou tendo menos energia, menos esperança, menos vontade? Se te contasse, já agora, que mais dia menos dia isso há-de me matar?
Não quero que sintas pena. Não preciso que sintas pena. Mas preciso - e tu precisas mais ainda - que entendas que nem tudo é como tu gostas de imaginar. Como tu teimosamente achas que sabes. Flores e borboletas e cores bonitas por toda a parte e quando o vento sopra de um ângulo mais estranho, que não te é familiar, tu queixas-te e lamentas-te e revoltas-te contra a Vida e contra o mundo. Tu, de todas as pessoas.
Desculpa, não podemos todos ter a vida perfeitinha que tu tens (a sorte de ter). Tomara eu. Tomara eu e eu já nem pedia tudo o que tu tens; um terço bastava-me. Um décimo! Saúde bastava, aliás. E desculpa-me se, perante isso, não conseguimos todos ser fortes todos os dias, firmes e hirtos como rochas, de braços e ouvidos abertos para te oferecer um ombro onde chorares e de seguida escutar os teus dilemas diários. Desculpa-me se não conseguimos ser todos quentes e amáveis a toda a hora, prontos a dar-te a palavra amiga e doce que vens procurar. Compreensivos, sorridentes e alegres a todos os minutos.
Antes pelo contrário; é fodido sê-lo um minuto que seja. Não te passa pela cabeça quão difícil é encontrares na tua dor e no teu desespero a força para te lembrares de como se esboça um sorriso. De como fazê-lo parecer credível. E, no entanto, aqui me tens, após 26 anos em esforço para que nunca o soubesses. Interrompo o exercício que me consome a vitalidade a cada dia porque é hora de acabares com este teu modelo em que o teu umbigo e os teus problemas são o centro do Universo e em que tudo o resto à volta é poeira espacial, à deriva para usares a teu bel-prazer na senda do teu capricho.
Eu tenho problemas sérios. Eu e provavelmente mais vinte pessoas com quem desabafas ao longo dos teus dias. E eu, por mim, cansei-me de ser um peão no teu jogo egoísta para de seguida ser pisado e tratado a chuto. Não podias adivinhar, claro que não; ninguém pode adivinhar a história que se esconde por detrás de um rosto. Mas a lição que tens a aprender urgentemente é a de que, não podendo adivinhar, é estupidez pura e dura assumires que a conheces e tratares quem te rodeia como se a conhecesses.
Quando te deitares hoje, à data em que me leres, imagina por dez minutos o que é viver com um tumor e ter os dias contados. Faz esse exercício e imagina todas as implicações que isso traria. Pensa bem, em tudo. Absorve-as e sente-as na pele. Sente o medo no estômago e a ansiedade nos pulmões. Sente a angústia entalada na garganta. Sente a cabeça tão à roda que só te apetece vomitar. E à luz disso, caso consigas senti-lo, olha de novo para ti e compara-o com aquilo a que tu insistes em chamar de problemas.
E amanhã, se o meu telefone ainda tocar, aguardo o teu telefonema para tomarmos um último café.
quarta-feira, fevereiro 14, 2018
Mensagem ao Mar
Li a tua carta em segredo.
E é em segredo que te respondo, atirando ao mar as palavras que escrevo, na vã esperança de que um dia cheguem até ti. Pragmaticamente, sei que não vão chegar nunca, que vão apenas flutuar até ao horizonte e continuar flutuando por esse mundo fora, mas sonhar nunca fez mal a ninguém. Além disso, embora queira muito pegar-te pelas mãos decerto frias e dizer-to, não tenho a certeza se quero que oiças ou leias o que tenho para te dizer. E, por isso, do alto da minha timidez, deixar ao acaso a mensagem soou-me bem.
Disseste querer saber como é ser-se eu. Reflectindo um pouco sobre a questão, depreendi que era tema para falarmos durante horas a fio. Dias, talvez. Teria tanto para contar-te que não haveria neste barco - neste em que vivo entre lá e cá - pergaminhos ou tinta suficientes para te responder completamente. Tenho papel e tinta, contudo, para clarificar o ponto que levantas, sobre eu fechar-te a porta e trancar-me à chave:
Ser-se eu é ser-se infinitamente atento, com uma sensibilidade acutilante, ao pormenor de tudo e de todas as coisas. Das imagens, dos sons, das cores, dos objectos, das pessoas, das palavras e dos gestos. Dos maiores aos mais pequenos; dos visíveis aos invisíveis. E então, ser-se eu é perigoso. É perigoso, em particular, porque quando eu olho para ti o meu olhar não se fica pela tua pele, pelo teu corpo, pelo teu rosto... Não. Quando eu olho para ti perfuro o que vejo e entro de rompante pelo teu olhar até ao fundo de ti. Quando eu olho para ti vejo bater o teu coração, frágil, exposto. Vejo-o rir, vejo-o chorar. Analiso-o milimetricamente, de todos os ângulos, e logo listo para mim as dez mil coisas boas, à imagem egoísta das minhas crenças e dos meus valores, que poderias vir a ser.
Imagino que não entendas onde reside o perigo nisso, mas eu explico-te:
Quando lês no coração de alguém um tal conjunto de atributos não efectivos, a imediata consequência é tentares convencer-te de que essa pessoa tenderá naturalmente para se transformar, com o tempo, nessa versão melhorada - aos teus olhos - de si mesma. O que é perfeitamente ilógico na medida em que, na grande maioria dos casos, nem a própria pessoa tem conhecimento ou noção desse seu potencial para algo maior. Pior ainda, estabeleces com essa versão melhorada de alguém uma ligação inviolável e começas a tomá-la como a verdadeira versão da pessoa que respira à tua frente, mas que tu nem vês. E é aqui que reside o perigo, bem iminente: deixas de ver, como se enfeitiçado por algo que só tu vês, mas que na verdade nem está realmente lá.
E isso traz-nos, por fim, a ti e ao meu silêncio. Apaixonei-me por ti. Cometi esse erro crasso. E, não te iludas, queria vezes de mais cometê-lo de novo. Todavia, entendi há uns dias que não foi por ti que me apaixonei, realmente. Por ti pela pessoa que és. Foi, sim, pela pessoa que eu imaginava em ti, pela versão de ti que talvez pudesses vir a ser um dia. Mas que, em todos os campos e parâmetros, não eras. Deixei de viver o valor que tens, porque quis agarrar-me ao valor que eu tinha idealizado para ti. E desde então todos os teus passos e gestos caíram em mim como facas enterrando-se-me entre as costelas e girando e torcendo-se em desapontamento.
Sem culpa tua, os resquícios de ti sedimentaram sob a forma de dor. E por isso, para minha própria protecção e sobrevivência, bloqueei-te de mim e afastei-te para longe. Recolhi-me na minha carapaça, corri a cortina e fechei-te a porta para não tornares a entrar.
Se me perguntasses hoje, teria adorado conscientemente aceder ao teu convite e conhecer quem eras, à data. A versão actual de ti mesma, com todos os teus defeitos, sem mudar uma vírgula ou um cabelo. E, pergunto-me, talvez tivesse resultado. Porque essa será sempre, sem sombra de dúvidas, a melhor versão de ti mesma. (Que é, como te disse há meses, linda da cabeça aos pés.)
Apaixonei-me por alguém que tu não és, alguém que existe apenas na minha cabeça, e isso matou todas as minhas hipóteses com a pessoa que tu és de verdade e eu vou ter de viver com isso para o resto dos meus dias.
Não tenho papel para muito mais. Não é muito, mas espero que dê para experimentares um pouco da loucura que é ser-se prisioneiro deste corpo e dono desta cabeça. Um pouco do que é ser-se eu.
Desculpa-me.
E é em segredo que te respondo, atirando ao mar as palavras que escrevo, na vã esperança de que um dia cheguem até ti. Pragmaticamente, sei que não vão chegar nunca, que vão apenas flutuar até ao horizonte e continuar flutuando por esse mundo fora, mas sonhar nunca fez mal a ninguém. Além disso, embora queira muito pegar-te pelas mãos decerto frias e dizer-to, não tenho a certeza se quero que oiças ou leias o que tenho para te dizer. E, por isso, do alto da minha timidez, deixar ao acaso a mensagem soou-me bem.
Disseste querer saber como é ser-se eu. Reflectindo um pouco sobre a questão, depreendi que era tema para falarmos durante horas a fio. Dias, talvez. Teria tanto para contar-te que não haveria neste barco - neste em que vivo entre lá e cá - pergaminhos ou tinta suficientes para te responder completamente. Tenho papel e tinta, contudo, para clarificar o ponto que levantas, sobre eu fechar-te a porta e trancar-me à chave:
Ser-se eu é ser-se infinitamente atento, com uma sensibilidade acutilante, ao pormenor de tudo e de todas as coisas. Das imagens, dos sons, das cores, dos objectos, das pessoas, das palavras e dos gestos. Dos maiores aos mais pequenos; dos visíveis aos invisíveis. E então, ser-se eu é perigoso. É perigoso, em particular, porque quando eu olho para ti o meu olhar não se fica pela tua pele, pelo teu corpo, pelo teu rosto... Não. Quando eu olho para ti perfuro o que vejo e entro de rompante pelo teu olhar até ao fundo de ti. Quando eu olho para ti vejo bater o teu coração, frágil, exposto. Vejo-o rir, vejo-o chorar. Analiso-o milimetricamente, de todos os ângulos, e logo listo para mim as dez mil coisas boas, à imagem egoísta das minhas crenças e dos meus valores, que poderias vir a ser.
Imagino que não entendas onde reside o perigo nisso, mas eu explico-te:
Quando lês no coração de alguém um tal conjunto de atributos não efectivos, a imediata consequência é tentares convencer-te de que essa pessoa tenderá naturalmente para se transformar, com o tempo, nessa versão melhorada - aos teus olhos - de si mesma. O que é perfeitamente ilógico na medida em que, na grande maioria dos casos, nem a própria pessoa tem conhecimento ou noção desse seu potencial para algo maior. Pior ainda, estabeleces com essa versão melhorada de alguém uma ligação inviolável e começas a tomá-la como a verdadeira versão da pessoa que respira à tua frente, mas que tu nem vês. E é aqui que reside o perigo, bem iminente: deixas de ver, como se enfeitiçado por algo que só tu vês, mas que na verdade nem está realmente lá.
E isso traz-nos, por fim, a ti e ao meu silêncio. Apaixonei-me por ti. Cometi esse erro crasso. E, não te iludas, queria vezes de mais cometê-lo de novo. Todavia, entendi há uns dias que não foi por ti que me apaixonei, realmente. Por ti pela pessoa que és. Foi, sim, pela pessoa que eu imaginava em ti, pela versão de ti que talvez pudesses vir a ser um dia. Mas que, em todos os campos e parâmetros, não eras. Deixei de viver o valor que tens, porque quis agarrar-me ao valor que eu tinha idealizado para ti. E desde então todos os teus passos e gestos caíram em mim como facas enterrando-se-me entre as costelas e girando e torcendo-se em desapontamento.
Sem culpa tua, os resquícios de ti sedimentaram sob a forma de dor. E por isso, para minha própria protecção e sobrevivência, bloqueei-te de mim e afastei-te para longe. Recolhi-me na minha carapaça, corri a cortina e fechei-te a porta para não tornares a entrar.
Se me perguntasses hoje, teria adorado conscientemente aceder ao teu convite e conhecer quem eras, à data. A versão actual de ti mesma, com todos os teus defeitos, sem mudar uma vírgula ou um cabelo. E, pergunto-me, talvez tivesse resultado. Porque essa será sempre, sem sombra de dúvidas, a melhor versão de ti mesma. (Que é, como te disse há meses, linda da cabeça aos pés.)
Apaixonei-me por alguém que tu não és, alguém que existe apenas na minha cabeça, e isso matou todas as minhas hipóteses com a pessoa que tu és de verdade e eu vou ter de viver com isso para o resto dos meus dias.
Não tenho papel para muito mais. Não é muito, mas espero que dê para experimentares um pouco da loucura que é ser-se prisioneiro deste corpo e dono desta cabeça. Um pouco do que é ser-se eu.
Desculpa-me.
segunda-feira, fevereiro 12, 2018
Como é Ser-se Tu?
Sou doida por ele, mas não sei quem ele é.
Calma, não me julgues louca.
Sei-lhe - é claro - o nome, sei-lhe os traços do rosto, o jeito como apara a barba e o perfume que usa. Sei o que faz durante o dia, sei que reflecte na companhia de um cigarro e que gosta de beber um copo com os amigos. Mas não sei quem ele é, realmente.
Noutros tempos não me faria diferença essa questão. Catalogava as pessoas por aquilo que via e ouvia delas numa base diária e isso, sendo honesta, chegava-me. Mas há uns meses - anos, sei lá - sugeriram-me, até em contexto profissional, que fizesse um teste com as pessoas com quem, por força das circunstâncias, partilhava diariamente o meu espaço e o ar que respiro. E o teste era tão simples quanto perguntar às pessoas algo nas linhas de "Como é ser-se tu?" e, desse momento em diante, ouvir. Escutar e absorver cada palavra, até entrar completamente na pele e nos sapatos de quem fala.
E eu, não obediente mas psicossociologicamente curiosa, assim fiz. Claro que ouvir, apenas, não me trouxe muitos resultados, a início. Nos casos em que não me ignoravam ou não me achavam lunática ou invasiva, conseguia apenas que partilhassem uma primeira camada da sua vida mais pessoal, do seu Eu mais genuíno, e morria aí o assunto.
Aprendi com o tempo a mudar um pouco as regras do jogo e após escutar comecei a introduzir mais uma e outra pergunta, sempre breves, estabelecendo assim o fio condutor da conversa. E foi assim que, a pouco e pouco, comecei a atravessar as várias camadas de cada uma dessas pessoas e a conseguir ver a vida através de olhares tão diferentes do meu. A conseguir ver as pessoas por quem realmente são, na sua mais pura versão, com as suas qualidades, feitios, defeitos e inseguranças. E que coisas maravilhosas, Deus, há por encontrar nesse lugar fora de nós...!
E é aí que entra ele e a minha angústia. O nome, o rosto e o perfume todos conhecem. Mas que história de vida tem ele? Que passado e que dores traz às costas, que feridas e cicatrizes carrega no corpo e no coração, e de que forma isso se lhe traduz na forma de ver o mundo e a Vida e a Morte e o amor e as pessoas?
Não consigo conhecer-lhe isso. Quero muito, mas sempre que tento aproximar-me ele afasta-me; repele-me de imediato do espaço dele, daquele perímetro de segurança em que se barrica, muitas vezes sem precisar sequer de proferir uma palavra. É como se lhe sentisse a carapaça invisível a fechar-se sobre si próprio, uma cortina que corre de imediato para me separar do que se esconde atrás dela. Fecha-me a porta e tranca-se lá dentro, para que eu nem tente girar a maçaneta.
Fico frustrada. Até porque gostava, reciprocamente, de me dar a conhecer. De lhe dar nota de que, como ele, não deixo a minha porta aberta a muita gente. De lhe explicar que não sou estranha, mas sim que carrego em mim marcas profundas - que a maioria das pessoas não tem como compreender - e que opto, por isso, por me afastar para não lhes deixar nem um vislumbre delas. De lhe confessar que não sou calada, mas sim que tenho demasiado ruído em mim. E demasiada música, também!
E então chego finalmente a este impasse: se me mantiver quieta, ficaremos exactamente no mesmo sítio, a uma distância infinita de nos conhecermos. Eu aqui, ele no mundo dele. Se avançar, passo em falso, corro o risco de ele fugir de novo e de se fechar de vez. Sou doida por ele e preciso de medir e calcular ao milímetro cada passo a partir de agora.
É exactamente como uma dança.
Só que eu nunca tive muito jeito para dançar.
Calma, não me julgues louca.
Sei-lhe - é claro - o nome, sei-lhe os traços do rosto, o jeito como apara a barba e o perfume que usa. Sei o que faz durante o dia, sei que reflecte na companhia de um cigarro e que gosta de beber um copo com os amigos. Mas não sei quem ele é, realmente.
Noutros tempos não me faria diferença essa questão. Catalogava as pessoas por aquilo que via e ouvia delas numa base diária e isso, sendo honesta, chegava-me. Mas há uns meses - anos, sei lá - sugeriram-me, até em contexto profissional, que fizesse um teste com as pessoas com quem, por força das circunstâncias, partilhava diariamente o meu espaço e o ar que respiro. E o teste era tão simples quanto perguntar às pessoas algo nas linhas de "Como é ser-se tu?" e, desse momento em diante, ouvir. Escutar e absorver cada palavra, até entrar completamente na pele e nos sapatos de quem fala.
E eu, não obediente mas psicossociologicamente curiosa, assim fiz. Claro que ouvir, apenas, não me trouxe muitos resultados, a início. Nos casos em que não me ignoravam ou não me achavam lunática ou invasiva, conseguia apenas que partilhassem uma primeira camada da sua vida mais pessoal, do seu Eu mais genuíno, e morria aí o assunto.
Aprendi com o tempo a mudar um pouco as regras do jogo e após escutar comecei a introduzir mais uma e outra pergunta, sempre breves, estabelecendo assim o fio condutor da conversa. E foi assim que, a pouco e pouco, comecei a atravessar as várias camadas de cada uma dessas pessoas e a conseguir ver a vida através de olhares tão diferentes do meu. A conseguir ver as pessoas por quem realmente são, na sua mais pura versão, com as suas qualidades, feitios, defeitos e inseguranças. E que coisas maravilhosas, Deus, há por encontrar nesse lugar fora de nós...!
E é aí que entra ele e a minha angústia. O nome, o rosto e o perfume todos conhecem. Mas que história de vida tem ele? Que passado e que dores traz às costas, que feridas e cicatrizes carrega no corpo e no coração, e de que forma isso se lhe traduz na forma de ver o mundo e a Vida e a Morte e o amor e as pessoas?
Não consigo conhecer-lhe isso. Quero muito, mas sempre que tento aproximar-me ele afasta-me; repele-me de imediato do espaço dele, daquele perímetro de segurança em que se barrica, muitas vezes sem precisar sequer de proferir uma palavra. É como se lhe sentisse a carapaça invisível a fechar-se sobre si próprio, uma cortina que corre de imediato para me separar do que se esconde atrás dela. Fecha-me a porta e tranca-se lá dentro, para que eu nem tente girar a maçaneta.
Fico frustrada. Até porque gostava, reciprocamente, de me dar a conhecer. De lhe dar nota de que, como ele, não deixo a minha porta aberta a muita gente. De lhe explicar que não sou estranha, mas sim que carrego em mim marcas profundas - que a maioria das pessoas não tem como compreender - e que opto, por isso, por me afastar para não lhes deixar nem um vislumbre delas. De lhe confessar que não sou calada, mas sim que tenho demasiado ruído em mim. E demasiada música, também!
E então chego finalmente a este impasse: se me mantiver quieta, ficaremos exactamente no mesmo sítio, a uma distância infinita de nos conhecermos. Eu aqui, ele no mundo dele. Se avançar, passo em falso, corro o risco de ele fugir de novo e de se fechar de vez. Sou doida por ele e preciso de medir e calcular ao milímetro cada passo a partir de agora.
É exactamente como uma dança.
Só que eu nunca tive muito jeito para dançar.
sexta-feira, fevereiro 09, 2018
Amor à Segunda Primeira Vista
Suspeitei pelo teu último olhar, pela última palavra que não disseste, que desta vez a Vida ia levar-nos por caminhos opostos. Confirmei-o uns tempos depois, quando te vi perderes-te no sorriso dele e afogares-te num abraço que não era o meu. E aí entendi que desta vez era para sempre.
Quebrei por dentro.
Não era para sempre; era para nunca.
A início quis odiar-te, sou franco. E tentei-o com todas as minhas forças. Procurei dar-me a mim próprio todos os argumentos lógicos para te odiar. Tentei e tentei e tentei. Mas falou sempre mais alto o meu amor por ti. Palpitava-me na mente a memória do teu sorriso, um vislumbre dele ao longe, e todo eu cedia.
Então, quis odiá-lo a ele, o teu Ele, escolhido por ti a dedo para ocupar o lugar que eu queria para mim. A mão que eu queria para mim. A pessoa que eu queria para mim. Mas como se odeia alguém que se compromete a tomar conta de Ti, o meu amor para a vida toda, para o resto dos seus dias?
Desisti do ódio e resignei-me, ainda que não entendesse as voltas que dá a Vida. Respirei fundo e sentei-me sozinho no meu canto, no banco do meu jardim que carrego em mim para toda a parte, e deixei que o mundo girasse.
Não espero que ainda me leias (aprendi-te o bastante para te saber Mulher decidida e entender que, quando te propões a seguir caminho, não mais olhas para trás), mas conto todavia que, de tudo o que falámos, te recordes do longo debate sobre a religião, as almas e o sentido da Vida. E de que, de toda essa argumentação, foi sobre as almas que mais nos debruçámos. Em concreto, sobre a quase poética hipótese da reencarnação, da renovação da alma entre duas vidas materiais, corpóreas, distintas. A hipótese, por outras palavras, de uma mesma alma habitar vários corpos diferentes em tempos diferentes, vivendo assim mais do que uma vida ao longo do seu tempo útil - seja ele qual for.
Foi esse o pensamento que me despertou da minha meditação, que se prolongava desde o dia em que viraste costas. Até então, eu costumava pensar que era uma alma velha, experiente e cansada, mas percebi que, em boa verdade, tudo à minha volta sabia e cheirava a novo, como se a alma que em mim habita fosse apenas jovem, adolescente talvez. Conheci-te nesta vida, num nervoso miudinho, e conhecia-te fazia muito pouco tempo, era essa a verdade... Não houve tempo para crescer perto de ti, para nos aproximarmos gradualmente de um terreno comum, a meio caminho dos dois, e para nos cativarmos.
Pensei então para mim que talvez tudo pudesse ser diferente numa próxima vida. Que talvez pudéssemos lançar de novo os dados e que pudéssemos também nós ser diferentes. Na próxima vida, a minha alma saberá já que existes e poderá procurar-te desde o primeiro dia em que tornar ao mundo e respirar fundo pela segunda primeira vez.
A ideia reconforta-me o espírito.
O coração bate compassado.
Vejo-te numa próxima vida, talvez?
Quebrei por dentro.
Não era para sempre; era para nunca.
A início quis odiar-te, sou franco. E tentei-o com todas as minhas forças. Procurei dar-me a mim próprio todos os argumentos lógicos para te odiar. Tentei e tentei e tentei. Mas falou sempre mais alto o meu amor por ti. Palpitava-me na mente a memória do teu sorriso, um vislumbre dele ao longe, e todo eu cedia.
Então, quis odiá-lo a ele, o teu Ele, escolhido por ti a dedo para ocupar o lugar que eu queria para mim. A mão que eu queria para mim. A pessoa que eu queria para mim. Mas como se odeia alguém que se compromete a tomar conta de Ti, o meu amor para a vida toda, para o resto dos seus dias?
Desisti do ódio e resignei-me, ainda que não entendesse as voltas que dá a Vida. Respirei fundo e sentei-me sozinho no meu canto, no banco do meu jardim que carrego em mim para toda a parte, e deixei que o mundo girasse.
Não espero que ainda me leias (aprendi-te o bastante para te saber Mulher decidida e entender que, quando te propões a seguir caminho, não mais olhas para trás), mas conto todavia que, de tudo o que falámos, te recordes do longo debate sobre a religião, as almas e o sentido da Vida. E de que, de toda essa argumentação, foi sobre as almas que mais nos debruçámos. Em concreto, sobre a quase poética hipótese da reencarnação, da renovação da alma entre duas vidas materiais, corpóreas, distintas. A hipótese, por outras palavras, de uma mesma alma habitar vários corpos diferentes em tempos diferentes, vivendo assim mais do que uma vida ao longo do seu tempo útil - seja ele qual for.
Foi esse o pensamento que me despertou da minha meditação, que se prolongava desde o dia em que viraste costas. Até então, eu costumava pensar que era uma alma velha, experiente e cansada, mas percebi que, em boa verdade, tudo à minha volta sabia e cheirava a novo, como se a alma que em mim habita fosse apenas jovem, adolescente talvez. Conheci-te nesta vida, num nervoso miudinho, e conhecia-te fazia muito pouco tempo, era essa a verdade... Não houve tempo para crescer perto de ti, para nos aproximarmos gradualmente de um terreno comum, a meio caminho dos dois, e para nos cativarmos.
Pensei então para mim que talvez tudo pudesse ser diferente numa próxima vida. Que talvez pudéssemos lançar de novo os dados e que pudéssemos também nós ser diferentes. Na próxima vida, a minha alma saberá já que existes e poderá procurar-te desde o primeiro dia em que tornar ao mundo e respirar fundo pela segunda primeira vez.
A ideia reconforta-me o espírito.
O coração bate compassado.
Vejo-te numa próxima vida, talvez?
sexta-feira, fevereiro 02, 2018
Silêncio no Sangue
A noite fascina-me.
Eu sei que é o dia que traz o sol e a luz e o calor e as cores, o céu azul, os campos verdejantes, a água cristalina, os pássaros nas árvores, a vida a toda a volta. Eu sei. Sei isso tudo. Mas, ainda assim, é a noite que me cativa.
De preferência, se puder escolher, aquelas noites durante a semana de trabalho, porque nessas, bem a meio, sais de mansinho à varanda e escutas o silêncio. Apenas e só. Consegues ouvi-lo: para lá do teu muro, a súbita cessação do caos do dia, pairando no ar como uma melodia muda, suspensa, em pausa indefinida.
Lá no alto, a lua e as estrelas fazem-te sentir que não estás sozinha, ainda que estivesses num deserto. Sussurram-te lá do longe que também elas estão acordadas para te fazerem companhia. Na rua, mais abaixo, os semáforos alternam num jogo de luz e sombra, entre o verde e o amarelo e o vermelho, para um trânsito invisível. Imagino por dois segundos a brisa do ar a parar obedientemente perante o vermelho, atravessando depois o cruzamento sob a luz verde, num pára-arranca ritmado, suave.
A ausência de tudo apazigua a mente e reconforta a alma. Sem o sol, vai-se a luz; sem a luz, vão-se as pessoas; sem as pessoas, vão-se os carros e as lambretas, vai-se o ruído, vai-se a agitação, vai-se a pressa, vai-se a ansiedade. Ficas tu, acordada, e uma paz infinita à tua volta. É desse silêncio e dessa paz que eu mais gosto. Os meus quinze minutos, num dia que dizem ter vinte e quatro horas, só para mim. Eu e os meus botões. Eu e os meus pensamentos. Eu e as minhas reflexões sobre o dia que passou.
Reflectes sobre os pais que estão longe, sobre os avós que estão velhos, sobre os irmãos que constroem as suas vidas pedra sobre pedra, sobre os amigos que vão casando, sobre os problemas dos outros que tomas para ti como teus e, por fim, sobre ti mesma. Sobre os teus sucessos e os teus fracassos, os teus desejos e os teus medos, as tuas ambições e as tuas fragilidades. Especialmente aquelas mais sombrias, que evitas durante o dia, mas de que durante a noite não tens como fugir.
Depois, medes o valor do dia que terminou pela soma ponderada de todas essas parcelas e pela forma como, por fim, isso se reflectiu em ti, bem no fundo do teu ser; no fundo do teu coração de que não falas e não revelas a ninguém. Fica em teu segredo, de ti para ti, entre as estrelas e a lua e os semáforos que continuam piscando. E é por isso que tanto me cativa a noite, porque conhecer a noite é conheceres cantos de ti que nunca conheceste; é ires mais longe e é ires mais fundo ao centro de quem és e é, por tudo isso, conheceres e aprenderes a conviver em paz com cada traço de ti, os bons e os menos bons. Aqueles de que gostas, aqueles que desprezas e aqueles que odeias.
Na noite seguinte tornas a esgueirar-te lá para fora em plena madrugada e o silêncio apodera-se de ti como droga no sangue. A experiência torna-se hábito, depois rotina e pouco depois vício. Não contas a ninguém, mas o dia seguinte nasce e tu só fazes figas para que passe depressa e a noite regresse, para te sentares de novo na varanda, à mesa com o silêncio, frente a frente contigo própria.
Eu sei que é o dia que traz o sol e a luz e o calor e as cores, o céu azul, os campos verdejantes, a água cristalina, os pássaros nas árvores, a vida a toda a volta. Eu sei. Sei isso tudo. Mas, ainda assim, é a noite que me cativa.
De preferência, se puder escolher, aquelas noites durante a semana de trabalho, porque nessas, bem a meio, sais de mansinho à varanda e escutas o silêncio. Apenas e só. Consegues ouvi-lo: para lá do teu muro, a súbita cessação do caos do dia, pairando no ar como uma melodia muda, suspensa, em pausa indefinida.
Lá no alto, a lua e as estrelas fazem-te sentir que não estás sozinha, ainda que estivesses num deserto. Sussurram-te lá do longe que também elas estão acordadas para te fazerem companhia. Na rua, mais abaixo, os semáforos alternam num jogo de luz e sombra, entre o verde e o amarelo e o vermelho, para um trânsito invisível. Imagino por dois segundos a brisa do ar a parar obedientemente perante o vermelho, atravessando depois o cruzamento sob a luz verde, num pára-arranca ritmado, suave.
A ausência de tudo apazigua a mente e reconforta a alma. Sem o sol, vai-se a luz; sem a luz, vão-se as pessoas; sem as pessoas, vão-se os carros e as lambretas, vai-se o ruído, vai-se a agitação, vai-se a pressa, vai-se a ansiedade. Ficas tu, acordada, e uma paz infinita à tua volta. É desse silêncio e dessa paz que eu mais gosto. Os meus quinze minutos, num dia que dizem ter vinte e quatro horas, só para mim. Eu e os meus botões. Eu e os meus pensamentos. Eu e as minhas reflexões sobre o dia que passou.
Reflectes sobre os pais que estão longe, sobre os avós que estão velhos, sobre os irmãos que constroem as suas vidas pedra sobre pedra, sobre os amigos que vão casando, sobre os problemas dos outros que tomas para ti como teus e, por fim, sobre ti mesma. Sobre os teus sucessos e os teus fracassos, os teus desejos e os teus medos, as tuas ambições e as tuas fragilidades. Especialmente aquelas mais sombrias, que evitas durante o dia, mas de que durante a noite não tens como fugir.
Depois, medes o valor do dia que terminou pela soma ponderada de todas essas parcelas e pela forma como, por fim, isso se reflectiu em ti, bem no fundo do teu ser; no fundo do teu coração de que não falas e não revelas a ninguém. Fica em teu segredo, de ti para ti, entre as estrelas e a lua e os semáforos que continuam piscando. E é por isso que tanto me cativa a noite, porque conhecer a noite é conheceres cantos de ti que nunca conheceste; é ires mais longe e é ires mais fundo ao centro de quem és e é, por tudo isso, conheceres e aprenderes a conviver em paz com cada traço de ti, os bons e os menos bons. Aqueles de que gostas, aqueles que desprezas e aqueles que odeias.
Na noite seguinte tornas a esgueirar-te lá para fora em plena madrugada e o silêncio apodera-se de ti como droga no sangue. A experiência torna-se hábito, depois rotina e pouco depois vício. Não contas a ninguém, mas o dia seguinte nasce e tu só fazes figas para que passe depressa e a noite regresse, para te sentares de novo na varanda, à mesa com o silêncio, frente a frente contigo própria.