A noite fascina-me.
Eu sei que é o dia que traz o sol e a luz e o calor e as cores, o céu azul, os campos verdejantes, a água cristalina, os pássaros nas árvores, a vida a toda a volta. Eu sei. Sei isso tudo. Mas, ainda assim, é a noite que me cativa.
De preferência, se puder escolher, aquelas noites durante a semana de trabalho, porque nessas, bem a meio, sais de mansinho à varanda e escutas o silêncio. Apenas e só. Consegues ouvi-lo: para lá do teu muro, a súbita cessação do caos do dia, pairando no ar como uma melodia muda, suspensa, em pausa indefinida.
Lá no alto, a lua e as estrelas fazem-te sentir que não estás sozinha, ainda que estivesses num deserto. Sussurram-te lá do longe que também elas estão acordadas para te fazerem companhia. Na rua, mais abaixo, os semáforos alternam num jogo de luz e sombra, entre o verde e o amarelo e o vermelho, para um trânsito invisível. Imagino por dois segundos a brisa do ar a parar obedientemente perante o vermelho, atravessando depois o cruzamento sob a luz verde, num pára-arranca ritmado, suave.
A ausência de tudo apazigua a mente e reconforta a alma. Sem o sol, vai-se a luz; sem a luz, vão-se as pessoas; sem as pessoas, vão-se os carros e as lambretas, vai-se o ruído, vai-se a agitação, vai-se a pressa, vai-se a ansiedade. Ficas tu, acordada, e uma paz infinita à tua volta. É desse silêncio e dessa paz que eu mais gosto. Os meus quinze minutos, num dia que dizem ter vinte e quatro horas, só para mim. Eu e os meus botões. Eu e os meus pensamentos. Eu e as minhas reflexões sobre o dia que passou.
Reflectes sobre os pais que estão longe, sobre os avós que estão velhos, sobre os irmãos que constroem as suas vidas pedra sobre pedra, sobre os amigos que vão casando, sobre os problemas dos outros que tomas para ti como teus e, por fim, sobre ti mesma. Sobre os teus sucessos e os teus fracassos, os teus desejos e os teus medos, as tuas ambições e as tuas fragilidades. Especialmente aquelas mais sombrias, que evitas durante o dia, mas de que durante a noite não tens como fugir.
Depois, medes o valor do dia que terminou pela soma ponderada de todas essas parcelas e pela forma como, por fim, isso se reflectiu em ti, bem no fundo do teu ser; no fundo do teu coração de que não falas e não revelas a ninguém. Fica em teu segredo, de ti para ti, entre as estrelas e a lua e os semáforos que continuam piscando. E é por isso que tanto me cativa a noite, porque conhecer a noite é conheceres cantos de ti que nunca conheceste; é ires mais longe e é ires mais fundo ao centro de quem és e é, por tudo isso, conheceres e aprenderes a conviver em paz com cada traço de ti, os bons e os menos bons. Aqueles de que gostas, aqueles que desprezas e aqueles que odeias.
Na noite seguinte tornas a esgueirar-te lá para fora em plena madrugada e o silêncio apodera-se de ti como droga no sangue. A experiência torna-se hábito, depois rotina e pouco depois vício. Não contas a ninguém, mas o dia seguinte nasce e tu só fazes figas para que passe depressa e a noite regresse, para te sentares de novo na varanda, à mesa com o silêncio, frente a frente contigo própria.
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