Sou doida por ele, mas não sei quem ele é.
Calma, não me julgues louca.
Sei-lhe - é claro - o nome, sei-lhe os traços do rosto, o jeito como apara a barba e o perfume que usa. Sei o que faz durante o dia, sei que reflecte na companhia de um cigarro e que gosta de beber um copo com os amigos. Mas não sei quem ele é, realmente.
Noutros tempos não me faria diferença essa questão. Catalogava as pessoas por aquilo que via e ouvia delas numa base diária e isso, sendo honesta, chegava-me. Mas há uns meses - anos, sei lá - sugeriram-me, até em contexto profissional, que fizesse um teste com as pessoas com quem, por força das circunstâncias, partilhava diariamente o meu espaço e o ar que respiro. E o teste era tão simples quanto perguntar às pessoas algo nas linhas de "Como é ser-se tu?" e, desse momento em diante, ouvir. Escutar e absorver cada palavra, até entrar completamente na pele e nos sapatos de quem fala.
E eu, não obediente mas psicossociologicamente curiosa, assim fiz. Claro que ouvir, apenas, não me trouxe muitos resultados, a início. Nos casos em que não me ignoravam ou não me achavam lunática ou invasiva, conseguia apenas que partilhassem uma primeira camada da sua vida mais pessoal, do seu Eu mais genuíno, e morria aí o assunto.
Aprendi com o tempo a mudar um pouco as regras do jogo e após escutar comecei a introduzir mais uma e outra pergunta, sempre breves, estabelecendo assim o fio condutor da conversa. E foi assim que, a pouco e pouco, comecei a atravessar as várias camadas de cada uma dessas pessoas e a conseguir ver a vida através de olhares tão diferentes do meu. A conseguir ver as pessoas por quem realmente são, na sua mais pura versão, com as suas qualidades, feitios, defeitos e inseguranças. E que coisas maravilhosas, Deus, há por encontrar nesse lugar fora de nós...!
E é aí que entra ele e a minha angústia. O nome, o rosto e o perfume todos conhecem. Mas que história de vida tem ele? Que passado e que dores traz às costas, que feridas e cicatrizes carrega no corpo e no coração, e de que forma isso se lhe traduz na forma de ver o mundo e a Vida e a Morte e o amor e as pessoas?
Não consigo conhecer-lhe isso. Quero muito, mas sempre que tento aproximar-me ele afasta-me; repele-me de imediato do espaço dele, daquele perímetro de segurança em que se barrica, muitas vezes sem precisar sequer de proferir uma palavra. É como se lhe sentisse a carapaça invisível a fechar-se sobre si próprio, uma cortina que corre de imediato para me separar do que se esconde atrás dela. Fecha-me a porta e tranca-se lá dentro, para que eu nem tente girar a maçaneta.
Fico frustrada. Até porque gostava, reciprocamente, de me dar a conhecer. De lhe dar nota de que, como ele, não deixo a minha porta aberta a muita gente. De lhe explicar que não sou estranha, mas sim que carrego em mim marcas profundas - que a maioria das pessoas não tem como compreender - e que opto, por isso, por me afastar para não lhes deixar nem um vislumbre delas. De lhe confessar que não sou calada, mas sim que tenho demasiado ruído em mim. E demasiada música, também!
E então chego finalmente a este impasse: se me mantiver quieta, ficaremos exactamente no mesmo sítio, a uma distância infinita de nos conhecermos. Eu aqui, ele no mundo dele. Se avançar, passo em falso, corro o risco de ele fugir de novo e de se fechar de vez. Sou doida por ele e preciso de medir e calcular ao milímetro cada passo a partir de agora.
É exactamente como uma dança.
Só que eu nunca tive muito jeito para dançar.
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