segunda-feira, fevereiro 19, 2018

Sem título

E se eu te contasse que tenho um tumor?

Se te confidenciasse que há cinco anos que isso interfere com o meu quotidiano? Se te contasse que, de ano para ano, de dia para dia, vou tendo menos energia, menos esperança, menos vontade? Se te contasse, já agora, que mais dia menos dia isso há-de me matar?

Não quero que sintas pena. Não preciso que sintas pena. Mas preciso - e tu precisas mais ainda - que entendas que nem tudo é como tu gostas de imaginar. Como tu teimosamente achas que sabes. Flores e borboletas e cores bonitas por toda a parte e quando o vento sopra de um ângulo mais estranho, que não te é familiar, tu queixas-te e lamentas-te e revoltas-te contra a Vida e contra o mundo. Tu, de todas as pessoas.

Desculpa, não podemos todos ter a vida perfeitinha que tu tens (a sorte de ter). Tomara eu. Tomara eu e eu já nem pedia tudo o que tu tens; um terço bastava-me. Um décimo! Saúde bastava, aliás. E desculpa-me se, perante isso, não conseguimos todos ser fortes todos os dias, firmes e hirtos como rochas, de braços e ouvidos abertos para te oferecer um ombro onde chorares e de seguida escutar os teus dilemas diários. Desculpa-me se não conseguimos ser todos quentes e amáveis a toda a hora, prontos a dar-te a palavra amiga e doce que vens procurar. Compreensivos, sorridentes e alegres a todos os minutos.

Antes pelo contrário; é fodido sê-lo um minuto que seja. Não te passa pela cabeça quão difícil é encontrares na tua dor e no teu desespero a força para te lembrares de como se esboça um sorriso. De como fazê-lo parecer credível. E, no entanto, aqui me tens, após 26 anos em esforço para que nunca o soubesses. Interrompo o exercício que me consome a vitalidade a cada dia porque é hora de acabares com este teu modelo em que o teu umbigo e os teus problemas são o centro do Universo e em que tudo o resto à volta é poeira espacial, à deriva para usares a teu bel-prazer na senda do teu capricho.

Eu tenho problemas sérios. Eu e provavelmente mais vinte pessoas com quem desabafas ao longo dos teus dias. E eu, por mim, cansei-me de ser um peão no teu jogo egoísta para de seguida ser pisado e tratado a chuto. Não podias adivinhar, claro que não; ninguém pode adivinhar a história que se esconde por detrás de um rosto. Mas a lição que tens a aprender urgentemente é a de que, não podendo adivinhar, é estupidez pura e dura assumires que a conheces e tratares quem te rodeia como se a conhecesses.

Quando te deitares hoje, à data em que me leres, imagina por dez minutos o que é viver com um tumor e ter os dias contados. Faz esse exercício e imagina todas as implicações que isso traria. Pensa bem, em tudo. Absorve-as e sente-as na pele. Sente o medo no estômago e a ansiedade nos pulmões. Sente a angústia entalada na garganta. Sente a cabeça tão à roda que só te apetece vomitar. E à luz disso, caso consigas senti-lo, olha de novo para ti e compara-o com aquilo a que tu insistes em chamar de problemas.

E amanhã, se o meu telefone ainda tocar, aguardo o teu telefonema para tomarmos um último café.

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