sexta-feira, fevereiro 05, 2016

Sirenes na Noite

Ainda vejo as luzes das sirenes.
Mesmo quando fecho os olhos.

Não há som: a vida perdeu a música daquele troço de auto-estrada para a frente. Nem sirenes, nem buzinas, nem gritos lá fora, nem rádio, nem motor do carro, nem pastilhas dos travões, nem borracha de pneus a galgar alcatrão e depois a trilhar gravilha. Nada. Zero som. Apenas um inferno de luzes azuis rodopiando freneticamente num ciclo vicioso. E um helicóptero no ar, uma enchente de bombeiros, enfermeiros e polícias a afluir ao local, uma fila interminável de carros atrás deles, até onde a A5 se fundia com o horizonte.

Fui em piloto automático o resto do caminho até casa, focado em escutar o bater indignado do meu coração. Só quando puxei o travão de mão já na garagem estacionei de novo em mim. Voltava-me aos ouvidos, num zumbido, o som do mundo. Recordo que terminava na rádio o Sporting, com nova vitória numa reviravolta que eu nem ouvi.

Corri para a televisão. Estava em todos os canais. Entrevistas à GNR e depois às testemunhas. E de fundo o alvoroço da assistência médica. Perdi a conta às macas que passaram diante das câmaras, com os corpos cobertos. E intercaladamente a panorâmica do céu, do helicóptero; de novo o espectáculo de luzes giratórias, agora num prenúncio de morte.

Diziam as testemunhas, que aparentemente seguiam de perto os sinistrados, que um dos carros envolvidos se atirou para a faixa da esquerda sem mais nem ontem, intersectando a toda a largura a passagem a uma mota que aí vinha. Primeiro apontam para o que sobrava da mota, um acordeão de metal encastrado no separador central e uma roda quase intacta, e depois gesticulam para o outro lado da auto-estrada, dando a entender o destino infeliz da vítima que a montava. Vinte e dois anos. Tinha vinte e dois anos o sangue com que o condutor do automóvel, de quarenta, sujara as mãos. E esse estava algures lá atrás, junto à ambulância, queixando-se da cara dorida do airbag. (Dá para acreditar...?)

Claro que aquilo, como A5 que é, não ficou por ali... Não. O tempo de reacção das primeira, segunda e terceira linhas de automóveis que seguiam atrás foi demorado demais e o choque em cadeia, qual dominó, foi inevitável. Mais umas vidas perdidas aí. E uns minutos após a manobra formidável do primeiro automóvel, e por sorte após o condutor se esgueirar pela porta do pendura até à berma da estrada, um Audi surge "a pelo menos 200 à hora" na faixa da esquerda e enfaixa-se de frente naquele caos de carros e gente. Morte imediata para os tripulantes e morte por encomenda para as pessoas que, não tendo morrido no acidente, saíam dos carros aos tropeções em busca de abrigo e de um chá quente.

É incrível - e ao mesmo tempo aterradora - a fragilidade da nossa vida, não é? Ainda há dias lia no Facebook o post de um rapaz que perdeu a irmã mais nova num acidente igualmente estúpido, atropelada numa passadeira. Parece que a nossa estupidez não tem fim... Especialmente na estrada.

Há sempre alguém com mais pressa que os outros, há sempre alguém com mais privilégios que os outros, há sempre alguém que tolera mais um copo de álcool que os outros, há sempre alguém com um carro mais rápido que os outros - e que tem de o mostrar - e há sempre alguém demasiado importante para fazer bom uso dos piscas (também conhecidos curiosamente como "sinais de mudança de direcção")... Há sempre alguém.

Os outros? Os outros que se amanhem. Até que lhes toque a miúda na passadeira e o motociclista - e todos os que nessa noite cobriram o chão da A5 - serem os filhos deles.

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