O mundo dela era sombrio.
Por fora andorinha em constante migração, por dentro prisioneira de guerra encarcerada numa masmorra. De mordaça na boca e envolta em mil grilhões. Suspensa pelos pés. Todos os dias ela respirava a custo dentro do seu próprio colete de forças, observando o mundo lá fora do avesso. De que serve a liberdade exterior quando se é escravo e refém de si próprio?
O mundo dela era um inferno. Todos os dias a vida dela pegava fogo e ela via o mundo incendiar-se à sua volta e desfazer-se a seus pés. Mas era ela o fósforo, a gasolina e o oxigénio. O calor, o combustível e o comburente. E sufocava no seu fumo.
O mundo dela era um programa de computador. Zeros e uns. Um pára-arranca. Um tic-tac oscilando entre o ser e o não ser. O ir e o ficar. O querer e o não querer. O viver morto e o morrer acordado. Na batalha entre ela e ela mesma, quem quer que desse a última estocada era ela que morria.
E ela um dia disse-me que há portas para lá da vida que eu não compreendia. E não compreendi. Mas a maior guerra é aquela que decorre no nosso interior, no nosso silêncio vagabundo.
É aí que começa a revolução.
quinta-feira, fevereiro 11, 2016
domingo, fevereiro 07, 2016
Meia Dose de Verão
Tenho sede do Verão.
Tenho sede do calor. Sede do céu azul, do sol quente lá no alto e do bafo que paira no ar. Faltam-me as t-shirts, o calção de banho e as havaianas. A mochila às costas, o chapéu de sol ao ombro e a toalha debaixo do braço.
Falta-me a areia entrelaçar-se entre os dedos dos meus pés. Falta-me guerrear com a areia para enterrar o chapéu. Falta-me estender a toalha, deitar-me e remexer-me nela até moldar a areia ao meu corpo. Falta-me o cheiro a protector solar e a minha mãe perguntando a cada dois minutos se já pusemos nova dose.
Falta-me o caminho até ao mar a escaldar os pés. Falta-me o congelar dos ossos dos pés ao entrar na água. Falta-me a frescura da água que me percorre ao mergulhar e a frescura dos teus lábios depois de um mergulho. Falta-me o sabor a sal na boca. Falta-me o meio quilo de areia na cabeça e os cinquenta no fato-de-banho. Falta-me deixar que o sol me evapore a água do corpo. Falta-me o bronze na pele.
Falta-me o livro na toalha e depois na sombra do chapéu. Faltam-me as cartadas em família e o vólei à beira-mar. Falta-me uma imperial fresquinha na esplanada. Falta-me fugir à pressa da maré que sobe sem aviso. Falta-me o pôr-do-sol. Faltam-me as gaivotas que gozam os últimos minutos de sol junto da rebentação. Faltam-me as sestas na praia ao final da tarde. Falta-me a música das ondas, o som do mar.
Falta-me sacudir a areia das pernas e dos pés. Falta-me o mergulho na piscina ao chegar a casa. Falta-me a caipirinha ou o gin tónico na varanda. Falta-me a vermelhidão do sol nas maçãs do rosto. Falta-me o cansaço ao fim do longo dia de praia. A pele ressequida e o banho revigorante ao anoitecer. Faltam-me as jantaradas sem hora marcada e nova cartada noite fora. Falta-me o Verão.
Mas lá fora chove a potes.
Tenho sede do calor. Sede do céu azul, do sol quente lá no alto e do bafo que paira no ar. Faltam-me as t-shirts, o calção de banho e as havaianas. A mochila às costas, o chapéu de sol ao ombro e a toalha debaixo do braço.
Falta-me a areia entrelaçar-se entre os dedos dos meus pés. Falta-me guerrear com a areia para enterrar o chapéu. Falta-me estender a toalha, deitar-me e remexer-me nela até moldar a areia ao meu corpo. Falta-me o cheiro a protector solar e a minha mãe perguntando a cada dois minutos se já pusemos nova dose.
Falta-me o caminho até ao mar a escaldar os pés. Falta-me o congelar dos ossos dos pés ao entrar na água. Falta-me a frescura da água que me percorre ao mergulhar e a frescura dos teus lábios depois de um mergulho. Falta-me o sabor a sal na boca. Falta-me o meio quilo de areia na cabeça e os cinquenta no fato-de-banho. Falta-me deixar que o sol me evapore a água do corpo. Falta-me o bronze na pele.
Falta-me o livro na toalha e depois na sombra do chapéu. Faltam-me as cartadas em família e o vólei à beira-mar. Falta-me uma imperial fresquinha na esplanada. Falta-me fugir à pressa da maré que sobe sem aviso. Falta-me o pôr-do-sol. Faltam-me as gaivotas que gozam os últimos minutos de sol junto da rebentação. Faltam-me as sestas na praia ao final da tarde. Falta-me a música das ondas, o som do mar.
Falta-me sacudir a areia das pernas e dos pés. Falta-me o mergulho na piscina ao chegar a casa. Falta-me a caipirinha ou o gin tónico na varanda. Falta-me a vermelhidão do sol nas maçãs do rosto. Falta-me o cansaço ao fim do longo dia de praia. A pele ressequida e o banho revigorante ao anoitecer. Faltam-me as jantaradas sem hora marcada e nova cartada noite fora. Falta-me o Verão.
Mas lá fora chove a potes.
sexta-feira, fevereiro 05, 2016
Sirenes na Noite
Ainda vejo as luzes das sirenes.
Mesmo quando fecho os olhos.
Não há som: a vida perdeu a música daquele troço de auto-estrada para a frente. Nem sirenes, nem buzinas, nem gritos lá fora, nem rádio, nem motor do carro, nem pastilhas dos travões, nem borracha de pneus a galgar alcatrão e depois a trilhar gravilha. Nada. Zero som. Apenas um inferno de luzes azuis rodopiando freneticamente num ciclo vicioso. E um helicóptero no ar, uma enchente de bombeiros, enfermeiros e polícias a afluir ao local, uma fila interminável de carros atrás deles, até onde a A5 se fundia com o horizonte.
Fui em piloto automático o resto do caminho até casa, focado em escutar o bater indignado do meu coração. Só quando puxei o travão de mão já na garagem estacionei de novo em mim. Voltava-me aos ouvidos, num zumbido, o som do mundo. Recordo que terminava na rádio o Sporting, com nova vitória numa reviravolta que eu nem ouvi.
Corri para a televisão. Estava em todos os canais. Entrevistas à GNR e depois às testemunhas. E de fundo o alvoroço da assistência médica. Perdi a conta às macas que passaram diante das câmaras, com os corpos cobertos. E intercaladamente a panorâmica do céu, do helicóptero; de novo o espectáculo de luzes giratórias, agora num prenúncio de morte.
Diziam as testemunhas, que aparentemente seguiam de perto os sinistrados, que um dos carros envolvidos se atirou para a faixa da esquerda sem mais nem ontem, intersectando a toda a largura a passagem a uma mota que aí vinha. Primeiro apontam para o que sobrava da mota, um acordeão de metal encastrado no separador central e uma roda quase intacta, e depois gesticulam para o outro lado da auto-estrada, dando a entender o destino infeliz da vítima que a montava. Vinte e dois anos. Tinha vinte e dois anos o sangue com que o condutor do automóvel, de quarenta, sujara as mãos. E esse estava algures lá atrás, junto à ambulância, queixando-se da cara dorida do airbag. (Dá para acreditar...?)
Claro que aquilo, como A5 que é, não ficou por ali... Não. O tempo de reacção das primeira, segunda e terceira linhas de automóveis que seguiam atrás foi demorado demais e o choque em cadeia, qual dominó, foi inevitável. Mais umas vidas perdidas aí. E uns minutos após a manobra formidável do primeiro automóvel, e por sorte após o condutor se esgueirar pela porta do pendura até à berma da estrada, um Audi surge "a pelo menos 200 à hora" na faixa da esquerda e enfaixa-se de frente naquele caos de carros e gente. Morte imediata para os tripulantes e morte por encomenda para as pessoas que, não tendo morrido no acidente, saíam dos carros aos tropeções em busca de abrigo e de um chá quente.
É incrível - e ao mesmo tempo aterradora - a fragilidade da nossa vida, não é? Ainda há dias lia no Facebook o post de um rapaz que perdeu a irmã mais nova num acidente igualmente estúpido, atropelada numa passadeira. Parece que a nossa estupidez não tem fim... Especialmente na estrada.
Há sempre alguém com mais pressa que os outros, há sempre alguém com mais privilégios que os outros, há sempre alguém que tolera mais um copo de álcool que os outros, há sempre alguém com um carro mais rápido que os outros - e que tem de o mostrar - e há sempre alguém demasiado importante para fazer bom uso dos piscas (também conhecidos curiosamente como "sinais de mudança de direcção")... Há sempre alguém.
Os outros? Os outros que se amanhem. Até que lhes toque a miúda na passadeira e o motociclista - e todos os que nessa noite cobriram o chão da A5 - serem os filhos deles.
Mesmo quando fecho os olhos.
Não há som: a vida perdeu a música daquele troço de auto-estrada para a frente. Nem sirenes, nem buzinas, nem gritos lá fora, nem rádio, nem motor do carro, nem pastilhas dos travões, nem borracha de pneus a galgar alcatrão e depois a trilhar gravilha. Nada. Zero som. Apenas um inferno de luzes azuis rodopiando freneticamente num ciclo vicioso. E um helicóptero no ar, uma enchente de bombeiros, enfermeiros e polícias a afluir ao local, uma fila interminável de carros atrás deles, até onde a A5 se fundia com o horizonte.
Fui em piloto automático o resto do caminho até casa, focado em escutar o bater indignado do meu coração. Só quando puxei o travão de mão já na garagem estacionei de novo em mim. Voltava-me aos ouvidos, num zumbido, o som do mundo. Recordo que terminava na rádio o Sporting, com nova vitória numa reviravolta que eu nem ouvi.
Corri para a televisão. Estava em todos os canais. Entrevistas à GNR e depois às testemunhas. E de fundo o alvoroço da assistência médica. Perdi a conta às macas que passaram diante das câmaras, com os corpos cobertos. E intercaladamente a panorâmica do céu, do helicóptero; de novo o espectáculo de luzes giratórias, agora num prenúncio de morte.
Diziam as testemunhas, que aparentemente seguiam de perto os sinistrados, que um dos carros envolvidos se atirou para a faixa da esquerda sem mais nem ontem, intersectando a toda a largura a passagem a uma mota que aí vinha. Primeiro apontam para o que sobrava da mota, um acordeão de metal encastrado no separador central e uma roda quase intacta, e depois gesticulam para o outro lado da auto-estrada, dando a entender o destino infeliz da vítima que a montava. Vinte e dois anos. Tinha vinte e dois anos o sangue com que o condutor do automóvel, de quarenta, sujara as mãos. E esse estava algures lá atrás, junto à ambulância, queixando-se da cara dorida do airbag. (Dá para acreditar...?)
Claro que aquilo, como A5 que é, não ficou por ali... Não. O tempo de reacção das primeira, segunda e terceira linhas de automóveis que seguiam atrás foi demorado demais e o choque em cadeia, qual dominó, foi inevitável. Mais umas vidas perdidas aí. E uns minutos após a manobra formidável do primeiro automóvel, e por sorte após o condutor se esgueirar pela porta do pendura até à berma da estrada, um Audi surge "a pelo menos 200 à hora" na faixa da esquerda e enfaixa-se de frente naquele caos de carros e gente. Morte imediata para os tripulantes e morte por encomenda para as pessoas que, não tendo morrido no acidente, saíam dos carros aos tropeções em busca de abrigo e de um chá quente.
É incrível - e ao mesmo tempo aterradora - a fragilidade da nossa vida, não é? Ainda há dias lia no Facebook o post de um rapaz que perdeu a irmã mais nova num acidente igualmente estúpido, atropelada numa passadeira. Parece que a nossa estupidez não tem fim... Especialmente na estrada.
Há sempre alguém com mais pressa que os outros, há sempre alguém com mais privilégios que os outros, há sempre alguém que tolera mais um copo de álcool que os outros, há sempre alguém com um carro mais rápido que os outros - e que tem de o mostrar - e há sempre alguém demasiado importante para fazer bom uso dos piscas (também conhecidos curiosamente como "sinais de mudança de direcção")... Há sempre alguém.
Os outros? Os outros que se amanhem. Até que lhes toque a miúda na passadeira e o motociclista - e todos os que nessa noite cobriram o chão da A5 - serem os filhos deles.
quarta-feira, fevereiro 03, 2016
Lugar dos Cheiros
Há pouco cheirei um lugar.
Sim, leste bem. Um lugar.
Não uma fragrância, mas um lugar, um momento.
Aquela nesga de ar perfumado entrou em mim sem pedir autorização e na mesma fracção de segundo transportou-me para longe daqui. Abandonei o meu corpo e vi-me cirandar indefinidamente por aí, fora de mim, algures no espaço. Algures no tempo, diria também.
Era-me familiar o perfume. De certa forma, cheirava-me a felicidade. A conforto. A infância inocente. Ao colo protector de um Pai. Ao amor de um Avô. A casa. À casa de alguém querido. Aos cabelos ou às roupas da protagonista de um namoro feliz. A um passeio no parque em plena Primavera. À casa de férias de Verão. A um episódio muito particular da minha vida, talvez. Quem sabe...? Mas cheirava. Cheirava-me a algo terno, muito meu, há muito perdido no tempo. E enquanto o inspirei e expirei e tornei a inspirar mantive-me suspenso nesse lugar distante, nesse fragmento anónimo do meu ser, alheio e separado de mim.
E então, no mesmo abrir e fechar de olhos, deixei de o sentir, deixei de o respirar. E sem saber em que lugar e em que tempo estivera, ou quanto tempo estivera ausente, retornei a mim, ao mundo que não tinha parado de girar à minha volta.
O lugar daquele cheiro fechou-se bruscamente como uma gaveta em mim e deu a volta à chave. Quase podia ouvir-lhe o trinco estalar. Perdi-lhe o rasto... Perdi-lho, mas agora estou seguro de que haverá em mim mais uma centena dessas gavetas, um módulo carregado delas, apenas à espera da chave certa para saltar para fora e me levar de novo para o outro lado do mundo, para um tempo de que já mal tenho memória.
Sorrio e aguardo.
Pode ser que te torne a encontrar.
Sim, leste bem. Um lugar.
Não uma fragrância, mas um lugar, um momento.
Aquela nesga de ar perfumado entrou em mim sem pedir autorização e na mesma fracção de segundo transportou-me para longe daqui. Abandonei o meu corpo e vi-me cirandar indefinidamente por aí, fora de mim, algures no espaço. Algures no tempo, diria também.
Era-me familiar o perfume. De certa forma, cheirava-me a felicidade. A conforto. A infância inocente. Ao colo protector de um Pai. Ao amor de um Avô. A casa. À casa de alguém querido. Aos cabelos ou às roupas da protagonista de um namoro feliz. A um passeio no parque em plena Primavera. À casa de férias de Verão. A um episódio muito particular da minha vida, talvez. Quem sabe...? Mas cheirava. Cheirava-me a algo terno, muito meu, há muito perdido no tempo. E enquanto o inspirei e expirei e tornei a inspirar mantive-me suspenso nesse lugar distante, nesse fragmento anónimo do meu ser, alheio e separado de mim.
E então, no mesmo abrir e fechar de olhos, deixei de o sentir, deixei de o respirar. E sem saber em que lugar e em que tempo estivera, ou quanto tempo estivera ausente, retornei a mim, ao mundo que não tinha parado de girar à minha volta.
O lugar daquele cheiro fechou-se bruscamente como uma gaveta em mim e deu a volta à chave. Quase podia ouvir-lhe o trinco estalar. Perdi-lhe o rasto... Perdi-lho, mas agora estou seguro de que haverá em mim mais uma centena dessas gavetas, um módulo carregado delas, apenas à espera da chave certa para saltar para fora e me levar de novo para o outro lado do mundo, para um tempo de que já mal tenho memória.
Sorrio e aguardo.
Pode ser que te torne a encontrar.