sábado, janeiro 02, 2016

A Carta que Nunca te Escrevi

Não me sai da cabeça a guerra.
Não me sai do corpo. Está em todo o lado, em cada osso, em cada fibra de cada músculo. Rasteja-me debaixo da pele, entope-me todos os poros. Vejo guerra, oiço guerra e respiro guerra. Vejo mortos, oiço tiros, detonações e gritos e respiro sangue e pó. Mesmo quando não vejo, não oiço e não cheiro coisa alguma.

Penso em ti sempre.
A minha pedra basilar. Seguro-me à minha espingarda com a vida, como se isso me segurasse a ti e a nós para sempre. Apertar entre os dedos este punho na calamidade que aqui se vive é apertar no coração, à distância, o nosso lar e a segurança e o conforto de aí estar.

Penso no miúdo.
Aqui há dias pensei que já deve ter a altura da minha espingarda de pé e ainda me ri sozinho à conta disso. Rir neste inferno, imagina tu. Estou ansioso por poder dar-lhe a conhecer e ensinar-lhe as coisas boas da vida, como um bom Big Mac, um sundae de caramelo, fazer xixi de pé, andar de bicicleta, conduzir o trator do Avô à socapa lá na quinta, um ou dois palavrões de homem a sério, dar um bom gancho de direita para as ocasiões, engatar a futura mulher num pub ao tropeçar "acidentalmente" em si próprio, pedir a mulher mais espectacular do mundo em casamento num pôr-do-sol no topo do Rockefeller... Essas coisas normais de ser-se pai.

Por falar nisso, dá um beijo aos meus pais.

Tenho saudades tuas.
Tenho saudades vossas e esta é a carta que eu escreveria se não tivesse sido atingido na cabeça e no peito esta madrugada.

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