quarta-feira, dezembro 23, 2015

A Casa Onde Cresci

Voltei à casa onde cresci.

Há muito que já ninguém habitava aquele prédio velho. O elevador parara para sempre entre o segundo e o terceiro andar, suspenso como um corpo enforcado sobre o fosso, e os degraus empoeirados que se enrolavam em torno dele rangiam e estalavam ao som da minha passada cautelosa. O pó erguia-se do chão em espirais e encaracolava-se no feixe de luz da minha lanterna, antes de desaparecer para a escuridão como um peixe escondendo-se entre as rochas no fundo do oceano.

Cheguei ao quinto andar.
Levantei a lanterna e detive-me à porta, hesitante, vasculhando nas profundezas da minha mente todas as memórias que ela encerrava. Depois, alcancei as chaves no fundo do bolso e lancei-as à fechadura, como fizera tantas outras vezes naqueles dias. Mas agora tudo era diferente... até o próprio gesto de abrir aquela porta era já estranho ao meu corpo.

A porta balançou para trás num rangido desconcertante, a que não estava habituado, com as chaves tinindo nervosamente na fechadura. Convidava-me a entrar na nova extensão de negrume.

Inspirei duas e três vezes antes de avançar a medo. Não haveria nada a temer; nada senão eu próprio, nada senão o medo dos meus medos, os medos que ali tivera, e da ausência de tudo o que da minha vida um dia parte fizera. E contudo, esse medo existia e eu sentia-o bem presente, pulsando-me no peito e na garganta.

Não sabia como esperava encontrar a casa. Imaginava teias de aranha a cada canto, os quadros tortos nas paredes, por um fio, desbotados e sem vida, os candeeiros caídos, os tapetes torcidos... Mas tudo estava no seu lugar, tal como os meus pais o haviam deixado. Havia apenas pó. Pó, silêncio e saudade.

Já não sentia aquele lugar como casa. Tinha até dificuldade em dizê-lo familiar. Mas, sem que o pudesse evitar, aquelas paredes pareciam falar-me à medida que lhes apontava a minha lanterna.

Murmuravam-me imagens dos meus pais rindo e dançando em dias felizes, do meu pai bebendo um copo no seu canto nos dias mais pesados, dos meus irmãos e dos meus primos gatinhando atabalhoadamente nos seus pijamas de corpo inteiro, tropeçando desajeitadamente aqui e acolá, dos meus avós e tios reunidos na Consoada, do alvoroço na troca de prendas de Natal, da lareira crepitando lá ao fundo, dos filmes e jogos de cartas em família...

Tudo isso vive ali, naquela penumbra solitária.
Fora dela, a realidade é outra bem diferente, porque nenhuma daquelas pessoas está já entre nós. É irónico... Tento lembrar-me por que motivo foi que deixámos de nos falar, por que nos zangámos, e não consigo.

Por estupidez minha é tarde demais, mas dava tudo para voltar todos os dias atrás no tempo e refazer o que fizemos de errado. Voltar todos os dias a este prédio e a esta sala só para vos ver e para vos ouvir novamente. Para conhecer crescidos os irmãos que apenas conheci bebés. Para vos abraçar uma última vez. Para vos pedir perdão. Para poder despedir-me pessoalmente de cada um de vocês no vosso último dia.

Se há um milagre de Natal, que seja tudo isto não passar de um pesadelo e amanhã acordarmos de novo aqui, juntos, com uma segunda oportunidade aguardando debaixo do pinheiro. Nesta vida ou na próxima.

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