sexta-feira, julho 12, 2019

Caminhos de Ferro

Pousei a última pinha e a lareira finalmente pegou. Os invernos na Polónia conseguem ser muito ríspidos, e aquela foi sem dúvida a noite mais fria de todas.

Dei ao lume uns segundos de descanso, um porto seguro de oxigénio, e as primeiras chamas surgiram; tímidas a início, até conquistarem terreno e devolverem ao ar da sala o conforto sugado pelos acontecimentos da noite. Ainda remoía toda aquela cena em mim. Contorcia-se nas minhas entranhas como se contorce um filho, esperneando contra o estômago e contra as costelas, mas desta vez com amargura no lugar de amor. Toda eu tremia.

Decidi ir vê-lo. Tinha esperança de que já se tivesse recomposto e chorado todas as lágrimas que tinha por chorar. Fechara-se no quarto fazia três horas, desde que lhes escapáramos, chorando compulsivamente contra a almofada, num gemido silencioso que só ele compreendia. Não por ter apenas cinco anos e ainda não entender o mundo, mas porque nos meus cinquenta e cinco - eu que via a Guerra pela segunda vez, que perdera para ela um marido, que já fora Avó e agora era forçada a ser Mãe de novo - não conseguira encontrar palavras que descrevessem tamanha dor, ou que perto chegassem disso. A fragilidade inocente, a expressão quebrada, o vazio confuso no olhar, a angústia sem fundo na voz sufocada.

Quis espreitar primeiro de mansinho para me assegurar de que era seguro, de que não interromperia um sono tão desejado, mas não consegui evitar que a porta rangesse sob o peso do meu corpo. Mordi o lábio e detive-me de súbito, paralisada no mesmo lugar. Fechei os olhos e inspirei fundo o ar ainda gelado.

Senti-o encolher-se no escuro, mais e mais sobre si mesmo, e escutei-lhe de novo o soluçar, miudinho, descompassado; a mesma respiração descontrolada, indefesa, e tive a certeza imediata de que não pregara olho por um só segundo. A incompreensão deixava-o à mercê do medo e o medo alimentava-se da sua alma pequenina, corroendo-o até aos ossinhos. Era como se se estilhaçasse em mais mil pedaços a cada expiração.

Engoli em seco. Era duro para os dois, mas ele não compreenderia e eu tinha de ser forte por ele.

"Queres juntar-te à Avó? Acendi a lareira para nós. Podemos ficar juntos a ver dançar as chamas, enquanto a neve cai lá fora. Que te parece?"

Tentei que não fosse evidente o meu esforço para suster a respiração enquanto a resposta não chegava. Esperei com todas as forças que ele não reparasse. E, depois de esperar o que me pareceu uma eternidade, os soluços cessaram por um instante. A voz soou-lhe vacilante e morreu-lhe na garganta; o meu coração apertou-se e eu morri novamente em mim:

"A mamã mentiu. Disse que ia só tomar banho com os senhores e nunca mais voltou."



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