segunda-feira, agosto 20, 2018

Vela em Dia de Chuva

(Não sei quando comecei a tratar-te por Tu. Tenho escrito tanto sobre ti, sempre Tu, e só pensei nisso há pouco quando me voltaste de novo à mente. Agora já vou tarde, mas espero que me perdoes.)

Está a trovejar. Chove forte contra as vidraças das janelas como quando eu era pequeno e tu eras a minha companhia, a luz na minha noite. Fiquei sem electricidade de repente. E isso atirou-me de volta para ti, para a tua Vida, para o teu conforto que tanto me sabia a casa. Atirou-me, em concreto, para o dia da pior tempestade que alguma vez assolou a nossa terra; os nossos campos cultivados, o bosque lá ao fundo e a nossa humilde casinha. Lembras-te?

Voltei a sentir-me pequeno na minha pequenez, sentado no chão abraçado aos joelhos, enquanto a chuva e o vento fustigavam as nossas paredes e os trovões faziam tremer e rugir o chão de madeira. Recordei a luz da lareira ao canto, eu ao meio da sala brincando, tu na mesa logo ao lado, a corrigir provas de Desenho dos teus alunos, quando lá fora ainda havia apenas chuva. Recordei o primeiro relâmpago, fugaz fulminante, irrompendo abruptamente pelas janelas e arrancando-me do meu mundo só meu. E depois o primeiro trovão troando tão perto, ensurdecedor a toda a volta, entrando em mim por todos os meus poros e trocando o passo ao ritmo do meu coração miúdo.

Ficámos sem luz. Abateu-se uma escuridão súbita, afastada gradualmente tão somente pelas chamas da lareira. Comecei a chorar, tenho a certeza, embora não seja capaz de recordar esse detalhe. Recordo, contudo, que não tardaste a pousar o teu lápis e a levantares-te, não para me aconchegares no imediato, mas para ires recolher todas as velas que viviam espalhadas pela casa e as trazeres de volta à sala. No meu pranto, recordo o teu vulto, sombra recortada na lareira, andando para trás e para diante, distribuindo estrategicamente todas as velas em redor. Depois, um clique seco no ar e o teu rosto surgiu, por detrás dos teus óculos meia-lua, iluminado pelo fósforo que acabaras de acender para dar fogo às velas. E uma a uma elas foram acendendo e dançando à minha volta, afastando a pouco e pouco os meus anseios. Quando acabaste, e quando em toda a sala havia luz, não voltaste para a tua mesa e para as tuas provas de Desenho. Vieste, antes, para junto de mim, sentar-te no chão a meu lado, de pernas cruzadas à chinês, como mero colega de escola meu. De igual para igual, mas com mais umas ruguinhas e umas histórias para contar.

(Era sobretudo isso que tu eras para mim, para além de Avó e de professora de Desenho e de pessoa que tudo sobre a Vida sabia. Eras uma contadora de histórias. E como eu gostava de ficar enfeitiçado pelas tuas palavras...!)

A chuva e os trovões ribombavam lá fora e o chão continuava tremendo, mas a tua voz saía segura e doce, serena, como uma melodia que eu adorava ouvir. Os meus olhos colaram-se aos teus, nos tons alaranjados que a lareira e as velas lhes conferiam, e o meu coração abrandou. Colocaste o braço sobre os meus ombros e encostaste-me a ti. Eu encolhia-me e gemia a cada trovão.

"- Às vezes, Tomás, a luz apaga-se."

Foi assim que começaste.

"Apaga-se a luz de nossa casa, a nossa e a dos outros. E apaga-se às vezes porque os dias não são todos iguais e nem sempre faz sol. Porque por vezes há nuvens e há dias cinzentos. Umas vezes faz frio. Outras vezes chove. E outras vezes troveja com tal intensidade que o nosso tecto ameaça desabar e o nosso chão quebrar e ceder sob os nossos pés. Faz parte da Vida. E é normal, ao início, termos medo e ficarmos inseguros. Uma vez e outra e outra a seguir. E não há vergonha nenhuma em mostrar ao mundo que temos medo e que somos inseguros e somos frágeis. Somos pessoas, afinal; somos humanos, e é o teu medo e a tua fragilidade que me dizem que tens um bom coração e que um dia vais também tu saber contar esta história a outrem."

Deixei de ouvir a chuva e os trovões. Sabia que estavam lá ainda, cercando-nos, mas deixei de os escutar. A tua voz entrava em mim a cada palavra e tornava-os mudos.

"Além disso, é também preciso que haja sombra para sabermos apreciar a luz. E é preciso que haja sombra para conhecermos em nós o que não se consegue ver à luz, porque nós somos feitos não só do que é visível, como também do que não se vê. O mais importante, depois de tudo isso, é aprendermos a acender de novo uma luz, por trémula que seja, como uma vela numa noite de chuva e tempestade, para podermos ver onde assentar o pé no nosso próximo passo e, sobretudo, para podermos mostrar aos outros o caminho. Temos de entender que nem todas as pessoas têm velas em casa e que às vezes somos nós a sua única salvação nos dias em que a luz se apaga. Como no dia de hoje. Por isso, vamos os dois ser fortes e aprender a ser uma vela. Que me dizes?"

Recordo a coragem que me brotava no peito ao som da tua voz e a firmeza com que te observava, nos tons laranja vacilantes, seguro de que podia levantar-me naquele instante e ousar ser todas as velas da sala.

É o mesmo olhar com que fito agora a tua fotografia, enquanto acendo a vela ao teu lado e, não escondendo numa lágrima a fragilidade pela tua ausência, me preparo para ser todas as velas da nossa sala e contar esta tua história aos teus bisnetos que agora choram.

Um beijo, com saudade

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