terça-feira, janeiro 29, 2019

Baixios

Eu juro que estava curado.

Estava finalmente curado de ti.
Já não pensava em ti de dia e de noite deixei de sonhar sonhos teus. Deixou de me incomodar o perfume a que cheiras e esqueci a forma do teu corpo nos meus braços e na minha roupa. Deixei de sentir o teu coração no meu peito e nos meus ouvidos. Deixei de ouvir a tua voz no meu silêncio.

Mas porra. A tua música faz vibrar todas as cordas em mim. Todas as cordas sem excepção. Vibro e vibro e vibro e, de súbito, dou por mim sem forças nas pernas, entregue e rendido, entregue e perdido, a tudo o que foste e tudo o que fomos juntos.

A música toca e vibro mais um pouco e sou atirado de volta à primeira sala de cinema onde tímidos e envergonhados chorámos juntos. Onde a própria alegria de estar contigo, na essência mais pura e mais humilde do amor, me fazia chorar também, de pêlos eriçados e pele arrepiada, desde o duche que te antecipava em música e borboletas em êxtase ao deitar de coração bem entregue e em paz.

E vibro e sinto de novo, aqui e agora, a tua mão na minha, de dedos entrelaçados, sempre fria à procura de calor em mim. Da mão na mão aos braços nos abraços. Aos abraços que, de tão doce e fragilmente apertados, me roubavam o ar que me restava daquele que perdi no dia em que te conheci.

E a música entra mais em mim e eu vibro e sou agora sugado para os passeios à beira-rio, sob as também frias luzes de Natal, ao som das ondas que se vão atirando contra o cais. E vibro e estremeço nova vez e sou inundado pelo teu perfume que agora sei nunca ter esquecido e sinto-o na roupa, na pele e até nos lábios, como que acabado de roubar do teu pescoço.

E soa mais um acorde e mais uma nota no ponto, no meu ponto, na minha frequência, e eu estilhaço mais um pouco quando sinto agora os teus lábios de novo, quentes, vivos, nesses tantos milhares de pores-do-sol mundo fora, doces e salgados nos vários prados e praias que quisemos explorar só a dois.

A música atinge o clímax e em vício e veneno de ti eu não me atrevo a separar-me dela, como cola, como se na dor fossem os últimos segundos de ti que me eram permitidos antes da derradeira ressaca da droga que me foste. E aí vibro com ainda maior intensidade e vibro e vibro, e fragmentos de mim chocalhando e chovendo a toda a volta em pó e fragmentos de ti, fugazes, disparando em flash diante dos meus olhos como se bem aqui estivesses, anos em mil fracções, ribombando a cada acorde e cada corda e toda a voz dela ressoando e tinindo em mim e de repente em nós, agora já nos últimos nanossegundos que me sobram de novo de ti.

E depois silêncio.
No ar e em mim.

Silêncio, uma lágrima e um vazio.


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