Fez três meses que me morreste. Três.
E, sem que eu soubesse, fez também três meses que morreu muita coisa de mim. Muita coisa do que eu sou; do que eu era, do que fui. Morreu-se-me, entre outros, a música que era viagem de ida e volta do coração às pontas dos meus dedos. Morreu-se-me nos braços a poesia, seca na fonte como secam e murcham e morrem as flores.
Mas aqui estou. A sós na sala, enquanto toda a casa dorme, a falar para ti. Não contigo, desta vez, mas para ti. Sem rascunhos, como o eram as conversas que íamos tendo.
Dei por mim a pensar em ti esta manhã, presa no trânsito debaixo de chuva copiosa, no pára-arranca que tanto te aborrecia. Provavelmente isto parecer-te-á uma palermice, mas não é que estejas cá para fazer pouco de mim e das minhas lamechices, não é?
Pois bem. Entre buzinas e os gemidos dos pára-brisas frenéticos baloiçando para trás e para diante, passava na RFM aquela música de que a Alice tanto gosta. Dá pelo nome de "Às Vezes". O trânsito não andava, de maneira que, sem que ela desse conta, eu observava pelo retrovisor a Alice a trautear a música alegremente. Aliás como sempre, relembrando-me a mim mesma da promessa que fizera de a aprender para a cantarmos juntas (bom, para uma de nós a cantar, pelo menos).
Todavia, quando me entregava a absorver as palavras que a compõem, desta feita detive-me no "às vezes". Assim, solto e só. O resto era névoa e vazio e silêncio e mar a toda a volta. "Às vezes". "Às vezes" em eco, ao longe e depois ao perto, a ressooar em mim de alto a baixo, da cabeça até aos pés e depois subindo e descendo, vibrando, remexendo. Sentia-o de uma forma diferente, de uma forma muito verdadeira. E detive-me, concluí, porque me encontrei nessa verdade, bem no centro dela. Nesse limbo frágil, mas muito real, que é Ser-se "às vezes".
Ser-se às vezes doce, às vezes amarga. Às vezes luz e alegria e às vezes escuridão e tristeza. Às vezes corajosa, farol em noite escura, e às vezes receosa, a requerer salvação. Umas vezes amigos e conversa e, claro, energia e bom ritmo e um pé de dança. Outras vezes, sofá, uma manta e um chá quente entre as mãos. Às vezes desportista, disciplinada e saudável, outras vezes rendida a pizza e Ben & Jerry's num encontro a dois com a Netflix. Às vezes em paz, feliz dentro do corpo que habito, outras vezes angustiada pelo meu próprio reflexo. Às vezes um ás magnífico no trabalho; às vezes uma completa fraude seguramente detectada por todos os chefes e colegas num raio de quinhentos quilómetros. Às vezes cegamente apaixonada por Ele, às vezes vendo em tudo dúvida. Às vezes a crença de ser uma Mãe formidável. Outras vezes, a certeza de ser a pior Mãe do mundo.
Pano para mangas, mas tu percebes a ideia.
Mais importante do que isso, no entanto, foi deter-me, naquele instante, na percepção de que às vezes esqueço que, às vezes - ou de todas as vezes -, também os outros são assim. De que também os outros, todos os outros, são "às vezes". Às vezes preto, às vezes branco. E às vezes, outras tantas vezes, todo o espectro de cinzentos e, bolas, até um arco-íris com toda a paleta de cores. E como era bom lembrar-me mais disso, às vezes...!
Enquanto a Alice murmurava a letra que hoje eu não soube ouvir, quis guardar para mim (e trazer-te nestas palavras) que, lá no fundo, por debaixo e para lá de todos os teus pretos e brancos, eras também (muito mais do que gostavas de confessar), alguém muito "às vezes". E quis sussurrar-te baixinho, aqui que ninguém nos ouve, que, afinal, Ser-se "às vezes" é muito mais do que apenas um limbo. É uma balança. E é, sobretudo, um equilíbrio.
E está tudo bem.
Um abraço apertado
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