O frio cortante cumprimentou-me com um beijo terno quando desci do autocarro, de regresso à terra que me viu nascer. Demorou-se num abraço saudoso, espalhando-se lentamente por mim enquanto me acolhia.
A minha mãe esperava-me junto ao carro, a alegria desenhando-se-lhe timidamente nos lábios, na fragilidade vulnerável de mãe que é Mãe. Tínhamos saudades uma da outra e nem tínhamos dado conta, depois de todo este tempo. Esqueci por dois minutos o frio e aconcheguei-me contra o peito dela. Deixei-me perder no melhor abraço que alguma vez terei.
Depois, ela apressou-se a enrolar-me num gigante cachecol de malha e empurrou-me para dentro do carro.
O nosso carro ainda era o mesmo, tal como me lembrava dele. A ventoinha crepitante do aquecedor abafado e o cheiro dos estofos, o motor tremido, cansado. Nada tinha mudado, o carro era casa e eu estava finalmente em casa. Senti-me sorrir por dentro, num sorriso que era sobretudo paz.
Ao chegar a casa reconheci os latidos dos nossos cães, agora velhos. E eles, já sem ver, reconheceram também o perfume a que sem cheirar eu cheiro. Senti-lhes a agitação pelo reencontro de uma parte deles que levei comigo no dia em que parti. E mais uma vez senti-me verdadeiramente em casa, senti-me verdadeiramente Eu.
É evidente que, embora nada tivesse mudado, tudo era diferente. O pai já não estava cá. O avô e a avó também não. Agora, vigiavam-nos os três do alto das fotografias suspensas no hall, também eles de sorriso terno nos lábios, como a minha mãe junto ao carro – como os lembro, como os guardo.
A salamandra na cozinha esperava-me acesa. O misto de calor e frio no ar a toda a volta caía e sedimentava em mim as memórias vivas desses outros tempos. Quando a chuva se precipitou no pátio, em estalidos intermitentes para lá das janelas, tornei a sentir no ar o aroma dos biscoitos da avó acabados de sair do forno. Vi de novo, é claro, o avô esgueirar-se na cozinha e piscar-me o olho enquanto se apropriava de um deles em segredo. E vislumbrei a avó, ainda de avental, de óculos na ponta do nariz, entrando de rompante e dando-lhe o habitual raspanete.
Mais tarde, ainda perdida no tempo, senti o pai, quente, esticado ao meu lado na minha cama, eu pequena e ele com talvez o triplo do meu tamanho, de livro infantil em punho, em luta contra o cansaço e, muito mais ainda, contra os pesadelos dos meus sonhos. Lembro-lhe a voz embalando-me e afugentando para o frio da rua os meus medos enquanto adormecia... Recordo-lhe vagamente as mãos ásperas puxando-me até ao pescoço os espessos cobertores e afagando-me os cabelos, antes de sentir na nuca um beijo de boa noite já distante.
Respirei fundo e embrulhei a minha mãe num abraço mais apertado do que o último. O frio de Inverno era casa. O frio de Inverno era calor.
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