"Home is where the heart is."
"Casa é onde o coração está", diz a frase feita. Mas o problema das frases feitas é não terem um traço teu, pessoal, íntimo.
Quero partilhar um segredo contigo. Quero discordar, quero mudar-te um pouco a perspectiva das coisas e, quem sabe, fazer-te pensar. Em ti, para dentro de ti. Porque para mim - e para ti, se não me atraiçoa a intuição -, casa não é onde o coração está. Casa é onde o coração está... em paz.
Acabei de aterrar em Lisboa.
Acabei de arrumar no meu coração mais uma viagem, mais um salto a outra parte do mundo e a outro recanto de mim mesmo. Acabei de guardar um novo álbum de memórias com amigos de longa data - e outros de data mais curta -, e este vem tão cheio: de viagens estrada fora, de cantorias e desafinos, de gargalhadas, de história, de cultura, de gastronomia, de música, de fotografia e até de magia e sonhos de criança.
Acabei de chegar a casa. E, no entanto e no fim de tudo, acabei de não a sentir casa.
Porque casa só é casa se nela o teu coração está em paz. E o meu, por alguma razão, não consegue encontrá-la aqui. Não me perguntes porquê; não saberei responder-te em verdade. É como se a paz do meu coração andasse algures por esse mundo fora, à espera de ser encontrada, a escapar-lhe malandramente por entre os dedos. Como se eu não pertencesse aqui, ou só aqui pelo menos, e precisasse de ir em busca das outras partes de mim, partes que nem conheço ainda, espalhadas por aí ao vento.
Talvez isso justifique, sem eu saber, este impulso incontrolável de querer sair e sair e sair, de querer ir sem nunca saber se quero voltar, de querer explorar o mundo e ver tudo o que houver para ver com os meus próprios olhos, de querer sentir tudo em primeira mão, à flor da pele, desde o Tejo na pátria-mãe, ao frio de Nova Iorque, ao cinzento dos céus de Inglaterra, à neve na Irlanda, à História nas paredes da Alemanha, ao calor intenso de África, à transparência do Mar Adriático na Croácia, ao aroma do incenso nas ruas da Indonésia... Esta sede insaciável de querer trazer comigo um pouco de todo mundo e deixar nele um pouco de mim.
E, assim sem querer, sem rascunho prévio enquanto escrevo, acabo de recordar Exupéry e o seu Principezinho, que por sua vez me lembram forçosamente de ti, na ideia de que "Aqueles que passam por nós não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós." Encaixa-me no coração como uma luva.
Então talvez seja esse o jogo a que ando a jogar, por aqui e por ali, de avião e barco e comboio e autocarro, para trás e para diante, pelas ruas desse mundo. À procura de um equilíbrio, o meu equilíbrio, em busca da minha paz, da minha casa.
À descoberta da medida certa entre aquilo que ganho e aquilo que deixo de mim.
segunda-feira, agosto 27, 2018
segunda-feira, agosto 20, 2018
Vela em Dia de Chuva
(Não sei quando comecei a tratar-te por Tu. Tenho escrito tanto sobre ti, sempre Tu, e só pensei nisso há pouco quando me voltaste de novo à mente. Agora já vou tarde, mas espero que me perdoes.)
Está a trovejar. Chove forte contra as vidraças das janelas como quando eu era pequeno e tu eras a minha companhia, a luz na minha noite. Fiquei sem electricidade de repente. E isso atirou-me de volta para ti, para a tua Vida, para o teu conforto que tanto me sabia a casa. Atirou-me, em concreto, para o dia da pior tempestade que alguma vez assolou a nossa terra; os nossos campos cultivados, o bosque lá ao fundo e a nossa humilde casinha. Lembras-te?
Voltei a sentir-me pequeno na minha pequenez, sentado no chão abraçado aos joelhos, enquanto a chuva e o vento fustigavam as nossas paredes e os trovões faziam tremer e rugir o chão de madeira. Recordei a luz da lareira ao canto, eu ao meio da sala brincando, tu na mesa logo ao lado, a corrigir provas de Desenho dos teus alunos, quando lá fora ainda havia apenas chuva. Recordei o primeiro relâmpago, fugaz fulminante, irrompendo abruptamente pelas janelas e arrancando-me do meu mundo só meu. E depois o primeiro trovão troando tão perto, ensurdecedor a toda a volta, entrando em mim por todos os meus poros e trocando o passo ao ritmo do meu coração miúdo.
Ficámos sem luz. Abateu-se uma escuridão súbita, afastada gradualmente tão somente pelas chamas da lareira. Comecei a chorar, tenho a certeza, embora não seja capaz de recordar esse detalhe. Recordo, contudo, que não tardaste a pousar o teu lápis e a levantares-te, não para me aconchegares no imediato, mas para ires recolher todas as velas que viviam espalhadas pela casa e as trazeres de volta à sala. No meu pranto, recordo o teu vulto, sombra recortada na lareira, andando para trás e para diante, distribuindo estrategicamente todas as velas em redor. Depois, um clique seco no ar e o teu rosto surgiu, por detrás dos teus óculos meia-lua, iluminado pelo fósforo que acabaras de acender para dar fogo às velas. E uma a uma elas foram acendendo e dançando à minha volta, afastando a pouco e pouco os meus anseios. Quando acabaste, e quando em toda a sala havia luz, não voltaste para a tua mesa e para as tuas provas de Desenho. Vieste, antes, para junto de mim, sentar-te no chão a meu lado, de pernas cruzadas à chinês, como mero colega de escola meu. De igual para igual, mas com mais umas ruguinhas e umas histórias para contar.
(Era sobretudo isso que tu eras para mim, para além de Avó e de professora de Desenho e de pessoa que tudo sobre a Vida sabia. Eras uma contadora de histórias. E como eu gostava de ficar enfeitiçado pelas tuas palavras...!)
A chuva e os trovões ribombavam lá fora e o chão continuava tremendo, mas a tua voz saía segura e doce, serena, como uma melodia que eu adorava ouvir. Os meus olhos colaram-se aos teus, nos tons alaranjados que a lareira e as velas lhes conferiam, e o meu coração abrandou. Colocaste o braço sobre os meus ombros e encostaste-me a ti. Eu encolhia-me e gemia a cada trovão.
"- Às vezes, Tomás, a luz apaga-se."
Foi assim que começaste.
"Apaga-se a luz de nossa casa, a nossa e a dos outros. E apaga-se às vezes porque os dias não são todos iguais e nem sempre faz sol. Porque por vezes há nuvens e há dias cinzentos. Umas vezes faz frio. Outras vezes chove. E outras vezes troveja com tal intensidade que o nosso tecto ameaça desabar e o nosso chão quebrar e ceder sob os nossos pés. Faz parte da Vida. E é normal, ao início, termos medo e ficarmos inseguros. Uma vez e outra e outra a seguir. E não há vergonha nenhuma em mostrar ao mundo que temos medo e que somos inseguros e somos frágeis. Somos pessoas, afinal; somos humanos, e é o teu medo e a tua fragilidade que me dizem que tens um bom coração e que um dia vais também tu saber contar esta história a outrem."
Deixei de ouvir a chuva e os trovões. Sabia que estavam lá ainda, cercando-nos, mas deixei de os escutar. A tua voz entrava em mim a cada palavra e tornava-os mudos.
"Além disso, é também preciso que haja sombra para sabermos apreciar a luz. E é preciso que haja sombra para conhecermos em nós o que não se consegue ver à luz, porque nós somos feitos não só do que é visível, como também do que não se vê. O mais importante, depois de tudo isso, é aprendermos a acender de novo uma luz, por trémula que seja, como uma vela numa noite de chuva e tempestade, para podermos ver onde assentar o pé no nosso próximo passo e, sobretudo, para podermos mostrar aos outros o caminho. Temos de entender que nem todas as pessoas têm velas em casa e que às vezes somos nós a sua única salvação nos dias em que a luz se apaga. Como no dia de hoje. Por isso, vamos os dois ser fortes e aprender a ser uma vela. Que me dizes?"
Recordo a coragem que me brotava no peito ao som da tua voz e a firmeza com que te observava, nos tons laranja vacilantes, seguro de que podia levantar-me naquele instante e ousar ser todas as velas da sala.
É o mesmo olhar com que fito agora a tua fotografia, enquanto acendo a vela ao teu lado e, não escondendo numa lágrima a fragilidade pela tua ausência, me preparo para ser todas as velas da nossa sala e contar esta tua história aos teus bisnetos que agora choram.
Um beijo, com saudade
Está a trovejar. Chove forte contra as vidraças das janelas como quando eu era pequeno e tu eras a minha companhia, a luz na minha noite. Fiquei sem electricidade de repente. E isso atirou-me de volta para ti, para a tua Vida, para o teu conforto que tanto me sabia a casa. Atirou-me, em concreto, para o dia da pior tempestade que alguma vez assolou a nossa terra; os nossos campos cultivados, o bosque lá ao fundo e a nossa humilde casinha. Lembras-te?
Voltei a sentir-me pequeno na minha pequenez, sentado no chão abraçado aos joelhos, enquanto a chuva e o vento fustigavam as nossas paredes e os trovões faziam tremer e rugir o chão de madeira. Recordei a luz da lareira ao canto, eu ao meio da sala brincando, tu na mesa logo ao lado, a corrigir provas de Desenho dos teus alunos, quando lá fora ainda havia apenas chuva. Recordei o primeiro relâmpago, fugaz fulminante, irrompendo abruptamente pelas janelas e arrancando-me do meu mundo só meu. E depois o primeiro trovão troando tão perto, ensurdecedor a toda a volta, entrando em mim por todos os meus poros e trocando o passo ao ritmo do meu coração miúdo.
Ficámos sem luz. Abateu-se uma escuridão súbita, afastada gradualmente tão somente pelas chamas da lareira. Comecei a chorar, tenho a certeza, embora não seja capaz de recordar esse detalhe. Recordo, contudo, que não tardaste a pousar o teu lápis e a levantares-te, não para me aconchegares no imediato, mas para ires recolher todas as velas que viviam espalhadas pela casa e as trazeres de volta à sala. No meu pranto, recordo o teu vulto, sombra recortada na lareira, andando para trás e para diante, distribuindo estrategicamente todas as velas em redor. Depois, um clique seco no ar e o teu rosto surgiu, por detrás dos teus óculos meia-lua, iluminado pelo fósforo que acabaras de acender para dar fogo às velas. E uma a uma elas foram acendendo e dançando à minha volta, afastando a pouco e pouco os meus anseios. Quando acabaste, e quando em toda a sala havia luz, não voltaste para a tua mesa e para as tuas provas de Desenho. Vieste, antes, para junto de mim, sentar-te no chão a meu lado, de pernas cruzadas à chinês, como mero colega de escola meu. De igual para igual, mas com mais umas ruguinhas e umas histórias para contar.
(Era sobretudo isso que tu eras para mim, para além de Avó e de professora de Desenho e de pessoa que tudo sobre a Vida sabia. Eras uma contadora de histórias. E como eu gostava de ficar enfeitiçado pelas tuas palavras...!)
A chuva e os trovões ribombavam lá fora e o chão continuava tremendo, mas a tua voz saía segura e doce, serena, como uma melodia que eu adorava ouvir. Os meus olhos colaram-se aos teus, nos tons alaranjados que a lareira e as velas lhes conferiam, e o meu coração abrandou. Colocaste o braço sobre os meus ombros e encostaste-me a ti. Eu encolhia-me e gemia a cada trovão.
"- Às vezes, Tomás, a luz apaga-se."
Foi assim que começaste.
"Apaga-se a luz de nossa casa, a nossa e a dos outros. E apaga-se às vezes porque os dias não são todos iguais e nem sempre faz sol. Porque por vezes há nuvens e há dias cinzentos. Umas vezes faz frio. Outras vezes chove. E outras vezes troveja com tal intensidade que o nosso tecto ameaça desabar e o nosso chão quebrar e ceder sob os nossos pés. Faz parte da Vida. E é normal, ao início, termos medo e ficarmos inseguros. Uma vez e outra e outra a seguir. E não há vergonha nenhuma em mostrar ao mundo que temos medo e que somos inseguros e somos frágeis. Somos pessoas, afinal; somos humanos, e é o teu medo e a tua fragilidade que me dizem que tens um bom coração e que um dia vais também tu saber contar esta história a outrem."
Deixei de ouvir a chuva e os trovões. Sabia que estavam lá ainda, cercando-nos, mas deixei de os escutar. A tua voz entrava em mim a cada palavra e tornava-os mudos.
"Além disso, é também preciso que haja sombra para sabermos apreciar a luz. E é preciso que haja sombra para conhecermos em nós o que não se consegue ver à luz, porque nós somos feitos não só do que é visível, como também do que não se vê. O mais importante, depois de tudo isso, é aprendermos a acender de novo uma luz, por trémula que seja, como uma vela numa noite de chuva e tempestade, para podermos ver onde assentar o pé no nosso próximo passo e, sobretudo, para podermos mostrar aos outros o caminho. Temos de entender que nem todas as pessoas têm velas em casa e que às vezes somos nós a sua única salvação nos dias em que a luz se apaga. Como no dia de hoje. Por isso, vamos os dois ser fortes e aprender a ser uma vela. Que me dizes?"
Recordo a coragem que me brotava no peito ao som da tua voz e a firmeza com que te observava, nos tons laranja vacilantes, seguro de que podia levantar-me naquele instante e ousar ser todas as velas da sala.
É o mesmo olhar com que fito agora a tua fotografia, enquanto acendo a vela ao teu lado e, não escondendo numa lágrima a fragilidade pela tua ausência, me preparo para ser todas as velas da nossa sala e contar esta tua história aos teus bisnetos que agora choram.
Um beijo, com saudade