sábado, outubro 29, 2016

Quando Todo o Tempo é Pouco

Recordo-me do vulto súbito no meio da estrada, da guinada no volante e do chiar agressivo dos pneus... Num segundo fazíamos um agradável passeio nocturno, no outro despistávamo-nos para fora da estrada, contra o tronco de uma árvore. Um ribombar nos meus ouvidos e em todos os ossos do meu corpo. E depois silêncio.

Aos poucos recuperei a lucidez. Mexi os dedos dos pés à cautela. As dores em todo o corpo - e em especial no pescoço, no sufoco de um colar cervical - acordavam-me numa tortura lenta, ao som de um apito compassado, agudo e robótico. Tentei abrir os olhos logo que retomei o controlo de mim, mas o ardor era tal que desisti da ideia em menos de meio segundo.

Demorei a perceber que estava num hospital. Depois estranhei o colar, as ligaduras, os fios em que estava envolto, o catéter enfiado no meu braço e por fim as próprias dores. Juntei as peças e então recordei o veado na estrada e o nosso acidente... E então pensei nela.

Foi nesse preciso instante que o meu ouvido registou a primeira coisa para além dos bips que me martelavam a cabeça, de um médico para outro: "as lesões na medula são irreversíveis". Não, não, não!, esperem lá... "Confirmaram os resultados?", continuaram eles. Sentia partidos todos os ossos das minhas mãos, dentro das talas metálicas, mas cerrei os maxilares e os olhos com toda a força e cruzei mentalmente os dedos para nos desejar sorte. Talvez estivessem enganados. "Confirmámos, Doutor. Ela não tornará a andar." Ouvi bem. Sim, ouvi bem... Ela, a minha Ela, não voltará a andar.

Recuei no tempo sem mais nem ontem, sentindo já uma lágrima, dez lágrimas, a deslizar-me pela cara. Conheci-a aos 24, aquela doçura de miúda. Iniciámos o namoro aos 25, de borboletas na barriga, casámos aos 27, ela absolutamente magnífica, e aos 28, enquanto falávamos de ter um primeiro filho, tivemos um acidente de carro.

O tempo pára à tua volta e a tua bússola genética perde o norte e gira mil vezes sobre ti mesmo, para no fim te dizer que não sabe que caminho deves seguir. O teu mundo desaba pedra sobre pedra ao teu lado e tu nem consegues ouvi-lo ruir. Mas tens, queira Deus que te salvou desta, pelo menos quarenta anos pela frente e a tua mulher nunca mais voltará a andar.

Consegui abrir os olhos finalmente, para na cama ao lado encontrar os dela, já em lágrimas, postos em mim. Li-lhe neles quase um pedido de desculpas, como se houvesse nela qualquer tipo de culpa ou ressentimento. Como se não tivesse sido eu a virar o volante e a atirar-nos para estas camas de hospital e ela para uma cadeira de rodas para o resto da vida dela.

Lembro o nosso casamento como se tivesse sido não ontem, mas hoje de manhã. Lembro as alianças que trocámos, a aliança que lhe pus no dedo no dia mais feliz da minha vida. Lembro os votos dela, lembro os meus votos. E lembro que, ao enlaçar nela o meu amor, me comprometi com ela na saúde e na doença, até que a morte nos separe.

Então estendi-lhe a mão, apertei a dela nas minhas talas e abafando um grunhido de dor abanei a cabeça. Daqui não saio. Daqui não saio e carregar-te-ei para onde quiseres ir, até que as minhas peles se me engelhem na cara e no corpo e me faltem as forças. Dar-te-ei banho, pequeno-almoço, almoço e jantar, dentro e fora, e todo o amor em excesso que tenho para te dar, até que também eu, já de velho, deixe de poder andar.

E aí teremos todo o tempo do mundo.

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